segunda-feira, abril 09, 2007

«REIS E RAINHA»: PERSONAGENS COM DENSIDADE

Nora tem 35 anos e é mãe de Elias, o miúdo que tivera do seu primeiro marido, esse Pierre precocemente falecido num acidente estúpido do qual a sua responsabilidade não fora totalmente demonstrada.
Agora a vida corre-lhe bem: dirige uma galeria de arte parisiense há seis meses e prepara-se para casar com um namorado imensamente rico.
Para trás deixou, igualmente, um segundo companheiro, Ismael, violetista problemático agora a contas com um internamento coercivo numa instituição psiquiátrica.
Mas a vida está em vias de lhe dar umas inesperadas lições quando acorre a Grenoble para ir buscar o filho, por algumas semanas alojado em casa do avô, e constata que Louis está prestes a morrer, vítima de um cancro generalizado.
Esse reencontro com a morte e os seus rituais vai obrigá-la a recordar esse passado e clarificar as razões porque o próprio pai lhe confessa o desgosto, que lhe causa a evidência do seu egoísmo.
Mas o filme é também sobre Ismael e a forma como ele irá evoluir na sua experiência no manicómio, ora denotando uma tremenda agressividade para com as mulheres - e a terapeuta interpretada por Catherine Deneuve num pequeno papel bem lhe atura as cenas emotivas - , ora sentindo por uma parceira de infortúnio (Arielle) uma notória solidariedade.
E outros personagens complexos se vão sucedendo: Jean Jacques, o impotente noivo de Nora; Elizabeth, a problemática irmã de Ismael, responsável pelo seu internamento, que o acusa de ele ter pretendido obrigá-la a ser outra que não ela; Chloe, a não menos desequilibrada irmã de Nora, que vive no fio da navalha e na maior das indigências; Mammane, o advogado de Ismael, viciado em comprimidos alucinogéneos; Christian, o novo líder do quarteto a que ele pertencia, e decidido a empurrá-lo para o manicómio como forma de eliminá-lo da direcção criativa desse grupo; Virag, o editor de Louis, que é indiferente ao sofrimento e à iminente morte do autor, para só se interessar pelos seus escritos derradeiros, o pai do músico, que domina em Roubaix os mais desesperados delinquentes, quando lhe procuram assaltar a mercearia.
O filme não se reduz, pois às excelentes interpretações de Emmanuelle Devos e de Mathieu Amalric. Todos os personagens, mesmo secundários, têm direito à expressão da sua complexidade própria e ostentam por isso a sua própria substância.
«Reis e Rainha», o filme sobre que aqui escrevo, é um belíssimo título do realizador Arnaud Desplechin. Que dá sobeja demonstração da superioridade do cinema europeu, quando trata as pessoas com o respeito devido à sua consistente realidade íntima…

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