sexta-feira, fevereiro 02, 2024

Histórias Exemplares (VIII) - Uma revolução no século XVII

 

Até por termos estado sob a alçada filipina o século XVII não nos é particularmente benquisto. E, no entanto, acontecia então o rescaldo das guerras entre os paladinos da Reforma e os da Contra-Reforma com a Inquisição crescentemente implantada no espaço europeu, que era o nosso.

Na época a arte da Europa católica converteu-se numa ferramenta de propaganda com quadros a exaltarem o dramatismo, o movimento e a teatralidade dos temas. Ao invés, nos Países Baixos, os artistas exploraram o realismo com destaque para Johannes Vermeer, que escolheu as cenas domésticas da classe média como motivos de representação.

Recém-independente da tutela espanhola, a nova República banira as imagens religiosas das igrejas e enfatizara a simplicidade, quer nos rituais de preito divino, quer na decoração. Em rutura com as velhas tradições culturais da monarquia e do catolicismo, os artistas reinventaram-se na busca de novas opções estéticas.

E, no entanto Vermeer até convertera-se ao catolicismo para vencer as resistências da abonada sogra, que se opusera ao casamento com Catherina Bolenes em 1653. Apesar de associado à proscrita religião, Vermeer beneficiou da tolerância com que os Países Baixos assumiram para com o direito à liberdade de pensamento.

Da biografia do pintor pouco mais se sabe: se entre o nascimento em 1632 e o registo do matrimónio nada se conhece, dos anos a este subsequentes só se infere ter vivido sempre na casa dessa sogra, pintado no segundo andar quase toda a obra, e nunca ter arriscado viagens para longe da Delft natal. Calcula-se que tenha assinado cerca de sessenta obras, das quais só 36 sobreviveram até hoje.

Sabe-se, igualmente, que Vermeer e Catherine tiveram 15 filhos dos quais sobreviveram onze. Mas a confusão familiar nunca foi objeto de representação nos seus quadros, apesar da apetência dos potenciais compradores por cenas do dia-a-dia com pessoas comuns a executarem os ofícios, ou divertindo-se de acordo com os usos de então. Nelas consolidava-se a identidade cultural assente na forma como os neerlandeses viam a família, o amor, a moral, os relacionamentos e o dever. Aproveitando o declínio ibérico do comércio mundial tinham ganho rápida primazia na exploração das suas potencialidades e haviam enriquecido.

Ainda assim os burgueses calvinistas enalteciam a frugalidade e a austeridade, como se sentissem vergonha da sua riqueza. Daí o gosto por pequenos quadros com temas laicos, adquiridos por mais vasta clientela do que o sucedido anteriormente, quando eram as igrejas e a aristocracia a encomendarem-nos. Os quadros passaram a afixar-se em lojas, tabernas e casas particulares numa época privilegiada para os artistas, que só se viam rivalizados na ocupação das paredes pelos mapas impulsionadores do desejo de criar uma ordem ditada pela nova potência marítima. 

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