sexta-feira, janeiro 01, 2021

(DL) De que fala afinal a Peste de Camus?

 

Há uns bons anos que me tenho distanciado de Albert Camus na exata proporção em que o vejo enaltecido por gente ideologicamente de direita capaz de o reivindicar como um dos seus. Para que não sobrem dúvidas e apesar do reconhecimento dos muitos erros de análise que cometeu, prefiro largamente Jean Paul Sartre ao autor de O Estrangeiro. Mas, como o ano de pandemia reavivou o interesse por outro dos seus romances, A Peste, voltei a nele deter-me até por ser anterior ao alinhamento do escritor com o colonialismo francês durante a guerra de libertação da Argélia ou ao seu enfeudamento ao anticomunismo primário na altura em que os intelectuais pareciam obrigatoriamente alinhar-se entre as posições de Washington ou as de Moscovo.

Uma das curiosidades, que me tinham passado ao lado enquanto adolescente, foi a possibilidade de ler o romance como metáfora antinazi: a peste que afeta Orão mais não seria do que a representação simbólica de outro mal, la peste brune, como então se designavam as hordas hitlerianas. Aragon contestou essa hipótese, mas convenhamos que o escritor comunista decerto já não morria de amores por Camus, mas este reiterou esse sentido numa correspondência com Roland Barthes.

Tivesse ou não essa intenção política, e para além dos esforços do doutor Rieux para ajudar os seus pacientes acabando a provação com uma perspetiva muito lúcida de quanto acontecera - até a perda da esposa não de peste, mas de tuberculose, depois de ter-se escapado ao fecho da cidade para buscar salvar-se do perigo - ela ajusta-se na perfeição ao futuro próximo, quando o mesmo tipo de peste castanha volta a ameaçar sob a forma dos movimentos e partidos de extrema-direita. Há neles os Paneloux, que consideram justificados todos os males a nós impostos por sermos pecadores à luz das suas ideias religiosas ou ideológicas, mas esses dificilmente encontrarão possibilidades de redenção como o padre conhece ao dar a mão ao miúdo que, ao morrer, jaz na cama como um cristo. Piores os Cottards, que procurarão semear o mal e com ele beneficiar: são eles quem financiam os Venturas e os promovem sem qualquer pejo.

Por aqui se depreende que se a pandemia justifica a releitura do romance, mais pertinente ele se torna se olharmos para os candidatos às presidenciais e depararmos com os populismos malfazejos, que se verificam nas mensagens de alguns deles.

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