sábado, janeiro 23, 2021

(DL) Esta foi a semana do centenário de nascimento de Patricia Highsmith

 


Nos meus tempos de marinheiro ainda nas graças do mar fiz-me frequentemente acompanhar de romances de Patricia Highsmith, muitos deles adquiridos na coleção dos Livres de Poche que, a determinada altura, os publicou com assinalável prodigalidade.

Que prazer extraí de tais leituras naquelas noites em que me fechava no camarote, tinha o som das máquinas a funcionarem certinhas como um relógio lá em baixo e o oceano se aplanava, potenciando a concentração nas histórias lidas. Fosse Tom Ripley ou qualquer dos seus outros personagens, que fascínio o de me debater com quem fazia o mal, tirava disso prazer e proveito, nada lhe acontecendo como preço a pagar. Não admira que a escritora tenha-se amofinado com René Clément por, no seu Plein Soleil, ter modificado o final de forma a que o protagonista fosse castigado! Quão contrária era a sua intenção narrativa que Graham Greene classificou como produto da angústia, mais que do medo.

Era um universo baseado nas formas e convenções do romance policial mas delas diferindo na máxima distensão do tempo da narração para empurrar o leitor para um contexto equívoco marcado pelo desdobramento das personalidades. Talvez, porque Patrícia viu-se em circunstâncias similares numa infância em que só conheceria o pai aos doze anos, indagando nesse desconhecido o homem capaz de abandonar a mulher quando ela estava grávida de quatro meses.  Mary Patricia nasceu em 1921 em Fort Worth no Texas e ficou à guarda da avó até aos três anos, altura em que a mãe regressou já casada em segundas núpcias com Stanley Highsmith, que aperfilhou a criança e lhe deu o seu apelido. Partem, então, para Nova Iorque, mas as disputas do casal são tão constantes, que a rapariga procura refúgio na leitura, primeiro de Lewis Carroll e Herman Melville, depois em Henry James e Marcel Proust.

Patricia acaba o liceu, entra na universidade de Columbia e participa ativamente nas manifestações antifascistas durante a Guerra de Espanha. Falhada a primeira tentativa de escrever um primeiro romance, aluga um modesto apartamento na 56ª avenida e começa a publicar contos na Harper’s Bazaar ou a criar argumentos para as bandas desenhadas, mormente de Superman.

Concebe então um romance sobre a troca de homicídios entre dois protagonistas. Propõe o manuscrito a diversos editores, mas nenhum se interessa pela publicação. Truman Capote, que lhe pressente o talento, facilita-lhe a estadia numa residência literária em Saratoga Springs para que ela pegue na história e a trabalhe até ganhar forma literária mais a contento dos editores a quem possa, efetivamente, interessar. A publicação de O Desconhecido do Norte Expresso ocorre em 1950 e Alfred Hitchcock dá-lhe versão cinematográfica no ano seguinte.

A história conta-se em poucas linhas: um jovem arquiteto, Guy Haines, dirige-se a Metcalf para negociar o divórcio com Miriam, a esposa. No comboio conhece Charles Bruno com quem a conversa flui tão facilmente, que chega à troca de confidências. Bruno sugere-lhe implicitamente que poderia livrá-lo de Miriam se, em troca, ele se incumbisse de matar-lhe o pai. Seriam dois crimes sem móbiles aparentes, porque, no momento em que acontecessem, cada um teria alibis inquestionáveis. Julgando tratar-se de um mero exercício académico, Haines não leva a sugestão muito a sério até que Bruno lhe vem anunciar ter cumprido a sua parte do contrato, restando-lhe a ele retribuir-lhe o favor. O romance evolui para a chantagem de Bruno sobre Haines para que cumpra o combinado, mesmo que isso corresponda a uma autêntica descida aos infernos para quem nunca se vira no perfil de um homicida.

Quatro anos depois Highsmith tem novo sucesso com Inocência Perversa em que a lógica dos crimes trocados é substituída pela dos replicados. Melchior Kimmel assassinou a mulher numa paragem de autocarro e logo Walter Stackhouse, advogado de negócios, vê no método o mais expedito para se livrar da sua, sobretudo por vê-lo interpretado como acidente pela imprensa. O problema é que, no itinerário previsto até ao local em que conta matá-la a mulher suicida-se. Ora, comportando-se como um culpado, Stackhouse possibilitará à polícia a compreensão de como concebera o lano, chegando assim a Kimmel. Além da continuidade nas matrizes dos dois romances, ambos têm protagonistas com características psicológicas semelhantes.

Daí por diante foram muitos os romances de Patricia Highsmith fundamentados na dualidade e simetria entre personagens, que alimentam entre si uma relação dominante/ dominado com algo de dostoievskiano.

O êxito garantido pelo filme de Hitchcock dá-lhe o ensejo de viajar por Londres. Paris, Salzburgo, Zurique ou Maiorca até decidir que fixaria residência em Positano, perto de Nápoles. Será aí que cria Tom Ripley, o protagonista de cinco romances levados ao cinema por René Clément, Wim Wenders e  Anthony Minghella.

A perda de interesse dos editores norte-americanos pelos seus romances decide-a a instalar-se definitivamente na Europa onde o número de leitores crescia a olhos vistos. A evolução das histórias iam ganhando lentidão de forma a mergulhar o leitor num envolvimento identitário com o protagonista numa permanente sensação de perigo. Aquela que me levava a ler as páginas sem vontade de parar e, de quando em quando, a espreitar o sucedido algumas páginas adiante para dar resposta apaziguadora à tensão intensa em que sentíamos a ameaça crescer.

Já a viver em França Patricia afastou-se do género policial para escrever o confessional Diário de Edith, onde reproduz muito do seu imaginário quotidiano com opiniões nem sempre muito consensuais. Um conflito com as autoridades fiscais levam-na a nova mudança de casa, fixando-se em Aurigeno, na Suíça, onde escreve os derradeiros romances, um deles o ultimo com Tom Ripley.

Ao morrer em 1995 legou todos os bens à Fundação onde estivera na tal residência literária para dar forma definitiva ao seu primeiro romance.

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