quinta-feira, julho 30, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Memórias de um genocídio

A experiência de repórter de guerra no Ruanda foi tão marcante para Jean Hatzfeld, que, vinte anos depois, ele continua assombrado por ela publicando sucessivos livros, que o ajudem a exorciza-la.
Infelizmente os livros do antigo jornalista do «Libération» não têm chegado a Portugal nos últimos anos. A exceção já tem mais de uma década e intitulava-se «Tempo das Catanas».
Ao contrário do que se possa considerar o massacre dos tutsis ruandeses pelos vizinhos hutis não é assunto que se deva arrumar na prateleira dos fenómenos circunscritos à região centro-africana onde ocorreram.
Entre abril e julho de 1994, desde os alvores da manhã até às  três da tarde, turbas de  assassinos juntavam-se em grupos ruidosos para massacrar e roubar os vizinhos, não se privando de, no entretanto, violar as mulheres que lhes caíssem no cerco.
Muitos desses assassinos eram comandados pelos seus padres católicos, que não lhes vedavam a entrada nas igrejas onde os perseguidos buscavam inútil refúgio. Pelo contrário até os instigavam a praticar os crimes no espaço sagrado.
Hatzfeld, que era de origem judaica, não deixou de evocar a similitude entre o comportamento das vítimas ruandesas com a dos judeus chacinados nos campos de concentração, quer pela incompreensível passividade, quer pela sensação posterior de culpabilidade dos sobreviventes por, precisamente, terem escapado com vida de toda aquela tragédia.
Semelhança igualmente entre os algozes hutis e os nazis: a mesma arrogância de quem se julga investido de um direito quase divino para negar ao Outro o direito a existir.
Ao entrevistar alguns desses assassinos, Hatzfeld surpreendeu-se pelo facto de não expressarem a posteriori qualquer vestígio de arrependimento. Se o assumiam era por não terem concluído o “trabalho”, erradicando os tutsis da face da Terra.
Nos relatos de Hatzfeld sobra ainda a crítica para o comportamento dos europeus, que facilitaram o genocídio retirando os “capacetes azuis” da região, quando parecia iminente o massacre e divulgando nos jornais de língua francesa uma versão mentirosa dos factos, dando dos tutsis uma imagem de criminosos e dos hutis a de injustiçados.
A exemplo do que sugerira Hannah Arendt sobre Eichmann, existe uma banalidade do mal nos assassinos, que reagiam de acordo com o que entendiam esperar-se deles  jamais abrindo campo para o seu próprio questionamento.
A grande lição transmitida por Hatzfeld, até por também ter sido repórter de guerra na antiga Jugoslávia, é que assume a dimensão de um terrível engano a apreciação de uma paisagem humana como sendo pacífica. Basta nela soltarem-se os piores demónios e ei-la a servir de cenário aos instintos mais hediondos...

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