E eis que Jean Bosmans chega a provecta idade obcecado pelas suas recordações. De nomes, de lugares e outras referências de um passado, que lhe chegam caoticamente à mente. O que o obriga a estruturá-las, mediante a sua descrição detalhada no moleskine, que o acompanha.
Tais fragmentos de recordações correspondiam aos anos em que a vida lhe parecia uma sucessão de cruzamentos entre tantas alternativas quantas as que lhe suscitavam o embaraço da escolha. Por exemplo, Mérovée, um colega da sua namorada de então, Margaret le Coz, que costumava animar um grupo de foliões auto-designado de «bando alegre». E a quem voltaria a ver à beira de um passeio, muito mais velho e menos animado, quando, anos mais tarde, passava num táxi. Bosmans pensara então que o destino insiste algumas vezes. Cruza-se duas, três vezes com a mesma pessoa. E se não se lhe fala, tanto pior.
Mas as recordações levam-no a focalizar-se nessa Margaret Le Coz a quem conhecera por mero acaso, dando razão a algo que lera a propósito dos primeiros encontros, definidos como uma espécie de ferida. E no seu caso com ela fora-o literalmente, porquanto se tinham agarrado um ao outro num dia de súbito fluxo de manifestantes acossados pela polícia de choque nos corredores do metropolitano aonde ambos transitavam. Margaret ganhara de tal experiência uma pequena lesão numa das sobrancelhas.
Do pouco que ficara a saber dela nesse primeiro encontro, Bosmans retivera que, apesar de bretã, ela nascera em Berlim e trabalhava como secretária na firma Richelieu Interim.
Olhando agora para esse passado, Jean Bosmans retém a sensação de asfixia nesse mergulho de ambos no seio da destrambelhada multidão. Mas também a iminência de uma ameaça terrível, que deixava ambos num estado de permanente inquietação. Para Margaret o receio provinha de um homem do seu passado com quem jamais dormira, mas decidido a assediá-la de formas progressivamente mais ameaçadoras.
E Jean conta com maus encontros com a detestada mãe e seu amante, que sempre se traduziam na espoliação de todo o dinheiro, que consigo transportasse.
Como de costume em Modiano temos em Bosmans e em Margaret dois solitários, que unem esforços num meio urbano hostil donde as agressões podem surgir sem aviso.
À medida que avançam, as evocações do sexagenário, vão acumulando novos dados sobre ele e a tal namorada da sua juventude. Por exemplo o trabalho dele numa livraria dedicada ao ocultismo e onde os clientes rareavam tanto, que lhe davam ensejo de escrever o seu primeiro romance. Ou sobre a estadia anterior de Margaret na Suiça aonde fora governanta de um tal Bergherian, com serviço de ama seca dos filhos e de amante nas noites bem bebidas.
Na segunda metade do romance desfocalizamo-nos de Jean e acompanhamos Margaret através de novas revelações: o seu nascimento como resultado de uma efémera relação da mãe de quem se distanciaria, quando ela lhe arranjara um padrasto execrável na pessoa de um garagista. Ou a juventude passada em Annecy, aonde conhecera o inquietante Boyaval no Café da Estação, quando o frequentava a desoras para iludir a solidão na companhia silenciosa de outros desadaptados.
O namoro de Jean e de Margaret durara alguns meses até ela conhecer involuntários problemas com a polícia graças às actividades ilícitas do casal de osteopatas, de cujo filho se tornara preceptora. A fuga apressada num comboio em direcção à Alemanha funcionara como a única alternativa viável.
Decidido a reencontrá-la e avançando na sua investigação até a identificar em Berlim aonde parece gerir uma pequena livraria, Jean move-se no sentido de um reatamento com o passado, aonde algo de essencial como é o amor, lhe ficara interrompido…
Como se vira no início do romance, o destino deverá ser forçado, sempre que se justifique...
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