segunda-feira, março 31, 2025

Distopias bradburianas

 

Os contos de Ray Bradbury, que vou lendo em doses homeopáticas, vão-mo confirmando como hábil na capacidade de criar personagens consistentes quanto à forma como representam algumas ideias dele reconhecíveis.

Por exemplo o conformismo perante circunstâncias, que extravasam a vontade de quem delas será vítima, como sucede nas três bordadeiras sentadas num alpendre, e  cientes da forte probabilidade de não terem futuro daí a alguns minutos, quando soar a hora prevista para uma explosão nuclear. 

Ou o não haver como não serem (racistas) os brancos, donos, quadros superiores ou clientes do resort, onde anualmente organizam um jogo de basebol contra os empregados de cor, e não suportam quando são eles a ganharem.

Ou ainda a inevitabilidade de se alterar o presente, quando vai-se ao longínquo passado numa máquina do tempo com o lúdico propósito de se matar um tiranossauro.

Ou, enfim, quando é a inveja o único propósito de se escreverem cartas, mesmo não sabendo-se ler (nem verdadeiramente querendo-se aprender!), só porque a vizinha as recebe e a caixa de correio da protagonista teima em ficar vazia.

Não é auspiciosa a realidade descrita pelo autor de As Maçãs Douradas do Sol, que dá dos seres humanos as características de conformistas, racistas, fúteis ou invejosos.

Não admira que o futuro distópico se lhe tenha quase sempre apresentado como o mais provável. 

segunda-feira, março 24, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Leituras ligeiras ou não tanto assim!

 

A opção não é nova, se  nos lembrarmos do Sunset Boulevard do Billy Wilder, quando, logo à partida, percebíamos que a história de Norma Desmond seria contada pelo amante, um argumenista afogado na sua piscina.

Em Indignação o Philip Roth usa artifício semelhante para contar a história de Marcus Messner, um jovem judeu de Newark, que vai estudar para o Ohio e aí conhece quem acabará por lhe determinar a morte precoce.

Para um empedernido ateu não haverá nenhuma existência para além do momento do finamento, mas Roth coloca uma questão com alguma piada: e se ficasse de nós a memória, perdida num limbo intemporal em que tudo voltaria a ser equacionado para procurar entendimento sobre o que se acertou ou errou? O que deixaria para pessoas como a Elza uma questão pertinente: onde estaria essa memória algures perdida na intima e perdida guerra com o cérebro disfuncional? Quem me dera ter a resposta!

Noutra leitura, concluída por estes dias, tive o comissário Guido Brunetti a concluir mais um caso sem conseguir a devida punição do(s) assassino(s) de uma vítima merecedora da sua comovida consideração. Em A Rapariga dos seus sonhos a morta é uma miúda cigana de dez anos sujeita a uma vida terrível - já sexualizada na comunidade, como o indicia a gonorreia detetada na autópsia, e forçada a ganhar o sustento da família nos assaltos a casas com o gangue de cúmplices da mesma idade.

Colateralmente Donna Leon denuncia a corrupção na cidade dos doges, que a fazem tão pouco estimada nessa Itália para onde há muito foi viver, e exemplar demonstração de uma desigualdade gritante entre os muito ricos e os que tão pouco têm...

Leituras ligeiras num e noutro caso. Mas com muito que se lhes diga se as ponderarmos para além do nível mais básico da sua apreciação. 

sábado, março 22, 2025

Despudoradamente, preconceituoso me confesso!

 

O filme do Francisco Manso dedicado a Ruy Cinatti - O Voo do Crocodilo - teve o mérito de dar-me informações sobre um poeta de quem quase só conhecia o nome e o que uma exposição no Museu da Etnologia sugerira relativamente à ligação afetiva a Timor. Mas também me alimentou os reiterados preconceitos para quem era conservador, se não mesmo alinhado ideologicamente com o regime salazarista, e católico. 

Em suma, se vi o documentário com o interesse de colmatar uma ignorância, que não sentia indesculpável, também não alimentou o impulso para lhe procurar os poemas incensados pelos seus exegetas entre os quais Joaquim Manuel Magalhães. Até porque o 25 de abril, para além do incómodo com as alternativas progressistas à realidade lusa, não terá causado um sobressalto significativo na sua mundivisão por muito que o trabalho antropológico  continue a ser relevante para melhor conhecer os usos e costumes das populações nativas da antiga colónia lusa na Oceânia. Nesse sentido o seu trabalho será mais relevante em Dili do que neste cantinho à beira-mar plantado só afetivamente ligado ao que foi um passado cada vez mais submerso na História. 

quinta-feira, março 20, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: As dúbias ilusões heroicas

 

Ao ouvir Gouveia e Melo a elogiar Sacadura Cabral e Gago Coutinho num making of  da série a eles dedicada pela RTP confirmei-o como homem velho, desfasado deste tempo de “heróis” cada vez mais desajustados da realidade e paradigmas de ilusões, que disso não passam. O que não admira dada a conhecida propensão para se promover enquanto espécime de “príncipe perfeito” do nosso tempo.

Não é que as figuras dos dois navegadores aéreos desmereça admiração: eles demonstraram a determinação e o saber que permitiu salvarem-se de um projeto quase suicidário, porque falho de investimento bastante para o concretizar nas mais básicas condições.  Mas a campanha mediática em seu torno teve muito de catarse de um país  ainda iludido quanto à dimensão e importância do seu fantasmagórico império e que continuaria a ser sobre isso vigarizado pela contínua propaganda salazarista.

A monarquia lusa já demonstrara a pequenez, quando a Inglaterra a humilhou com o episódio do ultimato, que pôs fiz à ambição de concretizar o mapa cor-de-rosa. Depois, foi com o pretexto de manter as colónias africanas, que Afonso Costa mobilizou o país para as trincheiras da Flandres. E, cereja podre em cima do bolo, foi para preservar essa fraude, que Salazar mandou gerações de jovens avançar em força para Angola e, depois, para a Guiné-Bissau e Moçambique, quando a Europa estava a transformar em exploração económica neocolonial a que assentara em dominação política.

Na fundamentação de Sacadura Cabral junto do governo, que lhe esportulou uns dinheiros para o projeto, era óbvia a intenção de dar crédito à ideia imperial. Mas, fosse país economicamente forte e ele teria sido cumprido facilmente mediante os saberes dos dois aviadores. Não se justificaria explorar a veia “heroica” para o concretizar.

É essa a lição a tirar: baseemo-nos nas competências, ajustemo-las a objetivos tangíveis e potenciemos o retorno. Caso contrário, e se nos fundamentarmos no exclusivo voluntarismo, os resultados trágicos tornam-se prováveis. A menos que, como sucedeu com os aviadores, a sorte continue a enganar quem por ela queira ser enganado...

terça-feira, março 18, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Monstros míticos e/ou íntimos

 

1. A Sirene de Nevoeiro é o primeiro conto do livro de Ray Bradbury com que encetei a procura do mesmo interesse em tempos despertado pelo Fahrenheit 451 ou pelas Crónicas Marcianas.

Confesso um início desconcertante, porque há algo de lovecraftiano nessa estória em que um monstro pré-histórico vem das profundezas oceânicas para destruir o farol onde McDunn e Johnny são os faroleiros. Com uma periodicidade regular ele vem anualmente  dar conta da persistência de um distante passado, que não se percebe bem por que vem assombrar o atual presente.

Essa faceta fantástica não era algo que suspeitasse incluída nas efabulações do autor. Razão para aguardar a descoberta de mais umas páginas para melhor ajuizar as intenções do autor..

2. Nunca nutri grande simpatia por Val Kilmer como ator, tanto mais que foram-se somando muitas notícias sobre conflitos com realizadores dos filmes para que foi sendo contratado. O feitio difícil pareceria condizer com os caprichos associados às operáticas prima donas.

Reconfigurei a opinião  a seu respeito ao ver o documentário Val, assinado por Leo Scott em 2021, adivinha-se que muito corealizado pelo ator. Ele surge-nos numa caricatura da imagem esbelta do passado e a voz degradada pelos efeitos do cancro, que lhe afetou a garganta, falando abertamente das suas perdas - a mais traumática terá sido a de Wesley, o irmão de quem mais próximo se sentia, e afogado num jacúzi por uma crise de epilepsia, quando tinha quinze anos.

É claro que não sinto empatia pela fé religiosa, que lhe serve de suporte, mas o documentário revela-se suficiente para reapreciar os seus desempenhos com outro olhar, menos afetado pelo preconceito, que me sugeria. 

sábado, março 15, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Ser ou não ser cobarde perante a conjuntura social

 

Aquando da estreia de As Melhores Amigas o Libération  lamentou a opção da realizadora, Marion  Desseigne Ravel, pelo final conformista. Perante um contexto social, o das periferias urbanas, duas jovens magrebinas, Nedjma e Zina, optavam por adotar um comportamento convencional junto dos amigos e colegas de escola, optando por viverem a paixão sáfica no clandestino recato do terraço do prédio onde moram.

Para o crítico do filme seria mais reconfortante que, a exemplo de outros conhecidos pares românticos, de que Romeu e Julieta foram os mais glosados, tivessem a coragem de levar a mutua paixão até à rutura com os valores circunstanciais do seu contexto. Mas fica a questão: terá esse desejo de rutura verosimilhança com as vivências dos espectadores? Não estão eles habituados a silenciarem a revolta perante os insultos e humilhações, vindos de quem exerce sobre eles algum tipo de poder - no emprego, na escola, na igreja, nas ruas?

Às vezes gostaríamos que os filmes servissem de catarse para mitigarmos a frustração pelas pequenas cobardias a que nos sujeitámos, ou continuamos a sujeitar. Mas a vida real é outra coisa... 

quarta-feira, março 05, 2025

LABORATÓRIO DE IDEIAS: O pódio dos biltres

 

Contrariando o concurso, que erigiu Salazar como o mais idolatrado português do Século XX - caso de polícia, que deveria ter identificado quem pagou para uns quantos idiotas ligarem vezes a fio para o número de telefone destinado a consagrar essa vigarice! - não seria árdua a tarefa de alinhar argumentos para o consagrar como maior Biltre  português desse período. À miséria e à ignorância das populações, que se encarregou de impor, acrescentar-se-iam os muitos crimes cometidos pelos seus braços armados na Pide, na Legião e nas forças militarizadas, que assassinaram milhares de portugueses e africanos em nome de uma ideia de país ultramontano e beato.

Mas, se quisermos acolitar Salazar no pódio dos facínoras do luso século transato não podemos esquecer Sidónio Pais cuja ânsia de poder não conheceu limites, apossando-se do poder com a vontade de nele se comportar como um Rei absoluto.

O seu assassinato no Rossio dá coerência à possibilidade de existirem crimes políticos legítimos quando perpetrados contra quem tão ilegitimamente se comporta. Por exemplo poderia justificar-se o sugerido por estes dias por quem procura um Lee Oswald capaz de travar a distopia para que evolui a dita “democracia” norte-americana e, com ela, a sustentabilidade do planeta.

Quanto ao terceiro lugar no pódio não desdenharia ali ver “consagrado” um outro arrivista vindo de Boliqueime por constituir o mais sombrio legado destes últimos cinquenta anos. As suas malfeitorias confirmam o que em tantos ditadores se confirma: a catarse do complexo de inferioridade por terem nascido na remendada pequena-burguesia e ansiarem pelo conúbio com a endinheirada gente de cujos interesses se fazem provedores.

Basta ver em que tipo de berços nasceram Salazar, Sidónio ou Cavaco!