terça-feira, outubro 15, 2019

Diário de Leituras: A febre Ferrante e o desaparecimento de Harold Bloom


Ao ler romances de Elena Ferrante encontrei aquilo que Jonathan Franzen descreveu num documentário de Giacomo Durzi como uma reação pouco racional: planeava lê-los durante alguns dias, vi-os encurtados para metade, senão menos. Porque a escritora italiana tem o talento inexplicável de nos agarrar às estórias logo de início sendo difícil delas desligar. Daí que faça todo o sentido o título desse filme realizado há dois anos, mas só agora objeto da minha atenção: a Febre Ferrante.
Entrevistam-se muitos ferrantianos, desde Roberto Saviano a Elizabeth Strout com a sua tradutora norte-americana pelo meio. E existe o bom gosto de secundarizar-se a questão da autora manter-se clandestina, ciosa da sua privacidade. Porque importa a obra, independentemente de quem a escreveu, e os temas em si valem por si mesmos como indo ao encontro dos seus leitores: a família, mormente as relações entre as mães e as filhas, ou as amizades femininas. Sempre escusando-se aos estereótipos comummente associados a quem os toma como fulcro da sua criatividade, redundando quantas vezes na entediante literatura cor-de-rosa.
Sempre me incomodou nos romances de Ferrante foi o alheamento explicito a quaisquer preocupações sociais e políticas, como se as personagens nelas não estivessem imersas. Mas isso sou eu que quero ver a Política em tudo, porque, de facto, a sei presente no que mesmo dela parece mais distanciada. E, nesse sentido, após a primeira impressão, os livros em causa até suscitam leituras múltiplas e interessantes.
O que quase tenho por certa é a total ausência no cânone literário ocidental tal qual Harold Bloom o ditou num conhecido ensaio em que adotava essa definição como título. O crítico, agora desaparecido aos 89 anos, quando permanecia em plena atividade - dera aula na Universidade de Yale quatro dias antes! - era assumidamente antimarxista, antifeminista e antimulticulturalista, pelo que Ferrante não se enquadraria certamente nos autores, que valorizava. Mas nunca se sabe, porque ele conseguia ser contraditório nas apreciações,: colocando Shakespeare como bitola maior de comparação com todos quantos prezava - e entre eles estava Fernando Pessoa ou Camões! - reconhecia o assumido marxista José Saramago como o maior ficcionista do seu tempo. Algo que deverá ter custado mais umas noites de insónia ao tal invejoso, esta semana a contas com mais uma desfeita os jurados de Estocolmo. 

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