sábado, novembro 14, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Terroristas, misticismos e milagres

Estava longe de imaginar o que aconteceria em França a noite passada quando, horas antes, iniciei a leitura do mais recente título de Rui Zink: «OssO»: até me ri com gosto do primeiro dos contos do livro, onde damos com um terrorista simpático, a ser interrogado por um dos polícias incumbidos de lhe preparar o processo-crime.
Nesta história, o homem justifica a sua benignidade ao não ter feito deflagrar a bomba, que trazia à cintura, porquanto só utilizara o disfarce de terrorista para entrar no país.
Se fosse um candidato a refugiado não passaria das instalações do aeroporto, sendo repatriado para donde viera. Assim, como suposto terrorista, não só deixara aquele perímetro da chegada, como fora trazido para uma prisão da capital. E ele até dá conselho a quem o interroga: como na sua cultura a mentira é vista como altamente desonrosa, as autoridades só teriam de dar a preencher aos passageiros um formulário onde assinalariam se a sua deslocação era motivada por negócios, turismo … ou terrorismo.
Segundo afiançava não haveria terrorista que não assinalasse o verdadeiro motivo da sua viagem até ali. Era tudo uma questão de “forma”, palavra que dá título ao conto.
Que não é bem assim, assim e comprovou nos terríveis atentados, que mataram tantas pessoas em tão reduzido número de horas.
Mais condizente com os absurdos atentados de Paris, foi o outro livro de contos, que também iniciei: «Os Antípodas e o Século» do mexicano Ignacio Padilla.
Na história que dá título ao livro sabemos de caravanas perdidas no deserto mongol, porque demandavam Edimburgo sem fazer a mínima ideia onde se situaria essa mítica metrópole, para onde se congregavam todos os seus desejos. Mas há também um arquiteto escocês, que vai  ao encontro da Muralha da China, acompanha uma dessas expedições pelas inóspitas paisagens quirguizes e acaba por criar um culto místico à sua volta, capaz de atrair milhares de pessoas.
Quando, moribundo, Campbell pede que o levem até ao alto da colina mais próxima e sua casa: “daí pode o arquiteto chorar a sua felicidade perante as ondas do Mar do Norte enquanto os seus discípulos amados viam formar-se ao longe um raquítico torvelinho de areia, primícia talvez de uma tempestade que em breve arrasaria o século até o sepultar debaixo de uma duna gigantesca e muda.”
Na mesma lógica do absurdo o conto seguinte, «Memorial da Segunda Peste», conta a história de uma missão na Amazónia onde, a uma epidemia de peste, seguiu-se outra não menos devastadora, mas em que as vítimas passavam a ser extremamente saudáveis, sem qualquer sinal de doença.
Apenas conhecida pelo relatório de um médico chamado Richard de Veelt, que descreveu uma “leprosaria cujos pestíferos felizes, sujos e disformes teriam um dia começado a chorar uma dor que os revitalizasse”, essa peste justifica a primazia índia sobre aquela vasta região amazónica.
Temos assim que, perante a crueza de uma realidade inquietante, vi-me a dela me ausentar com histórias de terroristas simpáticos, escoceses místicos e índios felizes.

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