sábado, maio 26, 2007

À descoberta do Reino de Gugé

Até agora o Reino de Guge era-nos completamente desconhecido. Foi um documentário do «Odisseia», que nos abriu a mente para o conhecimento desta antiga civilização situada a Ocidente do Tibete, aonde outrora passava o pujante comércio entre a Índia e a China.
O local até era pouco adequado para o estabelecimento de uma comunidade humana. O planalto é desértico, as temperaturas rigorosas. Mas a contínua passagem de mercadores deu-lhe tal dimensão que seria a Oriente, o que a fulgurante Florença significava na mesma época.
E, no entanto, algures no século XVII, quando os primeiros viajantes europeus já tinham dado conta da sua existência, a rivalidade entre dois irmãos - um o seu último rei, o outro o líder religioso do seu principal lamastério, abriu condições para a sua destruição. E esquecimento…até despertar a curiosidade de arqueólogos europeus e norte-americanos, que desde os anos 30 têm procurado descortinar as razões do fulgor expressivo dos seus murais e as da sua súbita destruição.
Em visita à região, a redactora da revista «Rotas & Destinos» Ana Isabel Mineiro, escreveu num número já antigo e agora resgatado na net:
«As mais belas paisagens do planeta estão, provavelmente, aqui. Ninguém fica insensível à imensidão, às formas e às cores deste cenário em constante mudança. A atmosfera é magnética, densa, inexplicável. Padecemos do estado quase doloroso dos apaixonados. Dá ganas de ficar a levitar no silêncio abissal, de rumar à linha inalcançável do horizonte a pé, sobrevivendo apenas do alimento sagrado da errância contemplativa.
São planaltos sem medida, vigiados por montanhas, por onde serpenteia a estrada de terra que, nos passos mais altos, está ornamentada com bandeiras de oração, muros de pedras gravadas (manis), onde se depositam chifres pintados, lenços brancos, roupa, e até cabelo humano. São prados verdes sulcados por riachos, onde pastam iaques, ovelhas e cavalos. Lagos aprisionados por dunas de areia fina, de contornos sensuais, numa colagem fictícia sobre o azul do céu. E rochas de cores estranhas, em formações vanguardistas de escultura. Surgem desertos onde só vivem pequenos roedores, marmotas e pássaros gordos, do tipo dos pardais. No horizonte, montanhas nevadas rompem o algodão espesso das nuvens.
A paisagem humana perde-se nesta amplitude desmesurada. Nómadas acampam em tendas de pano ou de lã, cuidando de milhares de cabeças de gado. Um ou outro cavaleiro parece ir a caminho do nada - uma pincelada animada, na estagnação do tempo. As mulheres, com os aventais listados, os fios coloridos das tranças e as turquesas que enfeitam cintos, brincos e cabelos, são figurantes garridos e sorridentes na monotonia castanha dos planaltos».
Outra fonte de informação sobre este Reino é a Wikipedia na sua versão francesa. Em poucas linhas resuma a informação histórica disponível:
«Situada no vale de Khyunglung, no deserto tibetano, a cidade estado de Gugé abrigou uma das civilizações mais brilhantes da idade de ouro do budismo. O reino de Gugé foi criado em 700 da nossa era e desapareceu em 1630 por razões ainda não totalmente esclarecidas, mas decerto na sequência da intervenção do exército Ladakhi, que acorrera ao pedido das autoridades budistas de Gugé, lideradas pelo principal rival do rei, o seu próprio irmão».
Segundo as lendas passadas de geração em geração e só a sobreviverem por transmissão oral, a razão de ser desse trágico diferendo político até tem nos portugueses um inesperado papel: o casal real estaria a converter-se ao catolicismo por influência de jesuítas nossos compatriotas.
Na sequência desta guerra, o Reino seria anexado à Caxemira.
Um dos mais interessantes aspectos, que resulta das imagens deste documentário é a clara estratificação social subjacente aos edifícios em ruínas: na base da montanha, em grutas escavadas na rocha, ficavam os mais pobres: os camponeses, os pastores, os soldados. Depois, escalando a encosta encontram-se as antigas casas dos comerciantes.
Era no topo da montanha, protegida por muralhas, que ficava a aristocracia e os sacerdotes, que usufruíam de todas as riquezas inerentes à sua condição.
Nos seus antigos palácios descobriram-se os murais, que revelam uma arte muito elaborada e graciosa. O Reino usufruía da presença de muitos artistas, que haviam escapado ao avanço da influência islâmica por toda a região do norte da Índia e do actual Paquistão. Exilados ali, eram convidados pelas estirpes mais favorecidas de Gugé a deixarem espelhado o seu talento nas paredes dos edifícios.
Embora os estudos ainda estejam por definir o que realmente se passou nessa época em que Portugal vivia o jugo filipino, a derrocada do Reino de Gugé é bem elucidativa quanto os povos acabam por ser empurrados para uma espiral de violência e de miséria, quando à política se associam os condimentos das rivalidades religiosas.

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