sábado, janeiro 21, 2023

Misericórdia

 

Nas entrevistas respeitantes ao livro, que acabou de publicar, Lídia Jorge apresenta Misericórdia como espécie de encomenda legada pela falecida mãe para a qual a compaixão constituiria sentimento a manifestar a quem entrou no crepúsculo da existência. Nesse sentido pareceria ser obra de exceção num conjunto, que tomara por temas outros pretextos narrativos. E, nesse sentido, poderia encarar-se como obra, se não menor, pelo menos à parte, dos títulos anteriores da escritora.

Não fiquei com essa sensação ao conclui-lo. Ao invés considero-o um dos seus romances mais estimulantes, embora o reconheça próximo das preocupações inerentes ao escalão etário a que passei a pertencer. Porque a apreciação que a protagonista Alberta vai construindo a propósito dos que a rodeiam - os residentes e funcionários do lar em que está internada! - coincide com uma diversificada amostragem da sociedade humana: em todas as idades existem pessoas com que simpatizamos e outras, que não enjeitamos considerar crápulas na forma como expressam os preconceitos e egoísmos. Por isso é tão estimulante a leitura das mais de quatrocentas e cinquenta páginas do romance tantas são as vicissitudes por que vão passando as personagens numa vasta galeria caracterizada pelo incessante fluxo de substituição dos que morrem por quantos os substituem no aguardar do mesmo desiderato.

Em Alberta há a curiosidade por tudo ver e analisar, porque o teatro do mundo em que participa surpreende pelas inéditas novidades, culminando nessa pandemia justificativa de se encontrar lógico, mas contrariado desenlace. Quer para a protagonista, quer para nós, seus leitores! E se os lares da terceira idade já tinham sugestionado Valter Hugo Mãe a imaginar A Máquina de Fazer Espanhóis, o romance de Lídia Jorge vem situar esse tipo de espaço no contexto de uma quase apocalítica epidemia. 

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