Embora desiguais na qualidade, os muitos filmes da carreira de Michael Caine merecem-me a atenção devida, muitas vezes, ao seu sempre competente desempenho.
Tratando-se de um dos atores britânicos (a exemplo de Richard Burton, Sean Connery ou Terence Stamp) provenientes da classe operária, o sotaque "cockney" começou por ser uma das primeiras dificuldades a superar por quem viria até a representar papéis de aristocratas. O seu foco sempre foi o de ser bom no seu percurso profissional, iniciado um pouco por acaso, e por isso escreveu livros destinados a quem viesse a pretender seguir-lhe os passos. Mas, por outro lado, a pobreza da juventude, sempre o tornou mais interessado na conta bancária do que nos posicionamentos cívicos quanto a injustiças sobre as quais não lhe conhecemos qualquer posição.
"Sir Michael Caine: du monde ouvrier aux Oscars de la gloire" (2021), documentário de 53 minutos realizado pela cineasta alemã Margarete Kreuzer, traça um retrato dessa trajetória desde os subúrbios de Londres até ao firmamento hollywoodiano. Realizado por ocasião dos 90 anos do ator (completados em março de 2023), o filme explora como Caine impôs o seu estilo britânico e a sua interpretação contida tanto no teatro como no cinema.
O título original em inglês, "MCaine: An Anagram of Cinema", revela um jogo de palavras que não é apenas engenhoso - é também revelador. Michael Caine tornou-se, de facto, um anagrama do cinema: omnipresente, versátil, adaptável a qualquer género e a qualquer realizador. Desde os thrillers de espionagem ("The Ipcress File", 1965) aos dramas de classe ("Alfie", 1966), das comédias ("Dirty Rotten Scoundrels", 1988) aos filmes de gangsters ("Get Carter", 1971), dos épicos históricos ("Zulu", 1964) aos blockbusters contemporâneos da trilogia "Batman" de Christopher Nolan - Caine esteve em tudo, trabalhou com todos, sobreviveu a todas as modas.
O documentário inclui entrevistas com várias personalidades, como o fotógrafo David Bailey e críticos de cinema alemães, além de imagens de arquivo com figuras históricas como Sean Connery, Alfred Hitchcock, John Huston e colegas de trabalho como Judi Dench e Shirley MacLaine. Mas há também uma dimensão pedagógica interessante: o filme mostra a atriz alemã Katja Riemann e estudantes da Universidade de Música, Teatro e Media de Hannover a praticarem algumas das técnicas de representação de Caine.
Essa dimensão pedagógica não é casual. Michael Caine escreveu livros sobre o ofício de ator - não por vaidade intelectual, mas por pragmatismo profissional. Aprendeu o métier na prática, sem formação académica, e quis partilhar esse conhecimento com quem viesse a seguir-lhe os passos. É um ator-artesão, não um ator-artista. Alguém que encara a representação como um trabalho a ser bem feito, não como uma missão existencial ou política.
E é aí que reside a ambiguidade de Michael Caine. Vindo da classe operária, dos subúrbios pobres de Londres, com aquele sotaque cockney que teve de domesticar para poder representar aristocratas, Caine poderia ter-se tornado uma voz contra as injustiças de classe, um ator politicamente comprometido como alguns dos seus contemporâneos. Mas não o fez. A pobreza da juventude tornou-o mais interessado na conta bancária do que nos posicionamentos cívicos. Trabalhou em bons filmes e em maus filmes com o mesmo profissionalismo, desde que o cachê fosse adequado. Quando criticado por aceitar papéis em produções medíocres, respondeu com pragmatismo desarmante: "I have not seen it, but I have seen the house that it built."
É essa honestidade brutal que torna Michael Caine simultaneamente admirável e dececionante. Admirável porque nunca fingiu ser o que não era, nunca se apresentou como intelectual ou militante, nunca usou a profissão como plataforma política. Dececionante porque, vindo de onde veio, poderia ter usado a sua voz e a sua visibilidade para algo mais do que garantir a próxima casa, o próximo contrato, o próximo milhão.
O documentário de Margarete Kreuzer não esconde essa ambiguidade. Mostra um ator competente, profissional, sobrevivente - mas também um homem que fez da carreira uma empresa, do talento um negócio, da arte um ofício rentável. Michael Caine é cinema, sim. Mas é também o lado comercial do cinema, a indústria sem ilusões românticas, o espetáculo como fonte de rendimento.
E talvez seja por isso que os seus filmes, embora desiguais na qualidade, continuam a merecer atenção. Porque Michael Caine nunca mentiu sobre o que era: um rapaz pobre de Londres que descobriu que sabia representar e que transformou esse talento num bilhete de saída da miséria. Não é uma história de redenção política ou de compromisso social. É apenas a história de alguém que aprendeu a sobreviver fazendo bem o seu trabalho. E, no final de contas, há uma honestidade nessa trajetória que vale tanto quanto qualquer discurso militante.
