quinta-feira, maio 19, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Noites de Cocaína» de J.G. Ballard (II)

Como transformar uma sociedade tornada abúlica pelos diferentes tipos de alienações suscitadas pela sua forma de organização e pelos meios de comunicação numa alternativa bem mais viva, em que as pessoas sintam vontade em partilhar experiências, sociabilizando-se no melhor sentido da expressão?
Através do crime, é o que Charles descobre na sua visita a Estrella de Mar para indagar da autoria do incêndio criminoso, que ceifou cinco vidas, e de cuja autoria se reclama Frank, o seu irmão mais novo. À partida o seu aspeto não poderia ser mais convencional: “Construída, nos anos 70, por um consórcio anglo-holandês, Estrella de Mar era um retiro residencial destinado aos profissionais liberais do Norte da Europa. A estância voltara as costas ao turismo de massas, e não se viam ali os arranha-céus que desfeiam a faixa costeira em Benalmadena ou Torremolinos. A antiga povoação, junto ao porto, fora agradavelmente remodelada, e as casas dos pescadores convertidas em bares ou lojas de antiguidades.” (pág. 31)
Não tarda que Charles conheça as personagens mais eminentes da estância: David Hennessy, que geria o Clube Náutico e contratara Frank; Bobby Crawford, o tenista apostado em liderar todo o entretenimento da comunidade; e Elisabeth Shand, a mulher de negócios, que preza acima de tudo a rentabilidade dos seus investimentos imobiliários.
No funeral de uma das vítimas do incêndio na mansão Hollinger, Charles estranha a presença de um homem, que está visivelmente marginalizado pelo resto dos presentes: é o psiquiatra Irwin Sanger, que acusam à boca calada de dormir com as pacientes mais jovens. Mas as surpresas ainda mal estão a começar: no parque de estacionamento o recém-chegado vê uma tentativa de violação quase consumar-se perante a passividade dos que a ela assistem, quase como se se tratasse de uma diversão.
Nesses primeiros dias em Estrella de Mar, Charles sente-se a andar à volta de um círculo fechado sem nele conseguir entrar: “Nada do que até então descobrira me dava a mais pequena pista sobre as razões que poderiam ter levado o meu irmão, pela primeira vez na vida em casa e em paz, a tornar-se um incendiário e um assassino. Mas se não fora o Frank a pegar fogo à casa dos Hollinger, quem fora? (…)
Sob muitos aspetos, Estrella de Mar era a Grã-Bretanha das cidadezinhas-halcyon dos míticos anos 30, ressuscitada e transplantada para sul e para o sol. Ali não havia bandos de adolescentes mortos de tédio, não havia subúrbios desenraizados onde os vizinhos quase não se conheciam uns aos outros e a única lealdade cívica que conservavam era para com o hipermercado mais próximo. Como ninguém se cansava de dizer, Estrella de Mar era uma verdadeira comunidade, com escolas para as crianças britânicas e francesas, uma próspera igreja anglicana e um conselho local de membros eleitos que reunia no Club Nautico. Ainda que modestamente, um século XX mais feliz redescobrira-se a si mesmo naquele canto da Costa dei Sol.
Só uma sombra maculava as suas placas e avenidas: o incêndio em casa dos Hollinger. Ao fim da tarde, quando o Sol passava por cima da península e ia pôr-se atrás de Gibraltar, a silhueta da mansão esventrada rastejava pelas ruas ladeadas de palmeiras, escurecendo os passeios e as paredes das villas, envolvendo silenciosamente a povoação num negro sudário.” (pág. 60-61)

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