domingo, novembro 02, 2025

Os predadores diurnos

 

Não é que tenha uma perspetiva anquilosada sobre a preservação maximalista dos modos de vida tradicionais, tanto mais que correspondem muitas vezes a condições difíceis de sobrevivência, mas quando a ganância dos homens civilizados lhes impõe mudanças trágicas ou, no mínimo, incómodas, não deixo de sentir empatia por quem vê, subitamente, o tapete tirado debaixo dos seus pés.

É isso que acontece em "Les loups sortent toujours la nuit" (2024), de Gabrielle Brady, documentário sobre a vida de uma família de pastores nómadas na Mongólia, com a vida virada do avesso pelas alterações climáticas. Quando , na imensidão da estepe mongol, uma terrível tempestade de areia destrói metade do rebanho, a família é forçada a procurar trabalho na capital, deixando para trás a vida nómada que era a única conhecida.

O título do filme tem a ver com o facto de, sem comida num território cada vez mais despovoado das presas, as alcateias aproximarem-se dos rebanhos durante a noite. Os lobos, também eles vítimas das alterações climáticas, tornam-se ameaça adicional num ecossistema em colapso.

Impressiona a demonstração de como as alterações climáticas destroem um modo de vida, mas Dawa e Zaya não conseguem adaptar-se à vida em Ulan Bator, suspirando pelo regresso às estepes, mesmo sabendo quanto essa hipótese é remota. A câmara de Gabrielle Brady, fruto de dois anos de imersão total junto desta família, capta os momentos de rutura que transformam os seus rostos, marcados pela incerteza e pela resiliência de quem resiste a aceitar o irreversível.

Trata-se de um híbrido entre documentário e ficção, onde a realizadora permite descobrir a Mongólia através das experiências de uma família, mas com a liberdade narrativa de quem sabe que às vezes é preciso recriar para melhor captar a verdade emocional. O filme, fruto de cinco anos de esforço, foi recompensado com cerca de trinta prémios internacionais - reconhecimento merecido para uma obra que documenta, em tempo real, a extinção de um modo de vida milenar.

A mesma violência civilizacional, mas com contornos ainda mais sinistros, atravessa "Branco no Branco" (2019), de Théo Court. No início do século XX, Pedro, um fotógrafo, chega à Terra do Fogo - território hostil e violento no meio da neve patagónica - para fotografar o casamento de um poderoso fazendeiro chamado Mr. Porter. A futura esposa, ainda uma criança, torna-se sua obsessão. Tentando capturar a sua beleza, Pedro trai o poder que domina o território. Descoberto e castigado, acaba por participar na sociedade que convive com o genocídio dos nativos Selk'nam.

Gosto sempre de filmes passados nessa região austral, que só pude conhecer a partir dos portos em que estive e me deram tão-só um cheirinho das paisagens encantatórias escondidas para lá dos declives costeiros. Mas "Branco no Branco" não se interessa apenas pela paisagem - interessa-se pela memória de povos exterminados pela expansão dos latifúndios, pelo genocídio sistemático e deliberado que acompanhou a colonização daquele fim do mundo. Protagonizado por Alfredo Castro, foi exibido no Festival de Veneza e recebeu três prémios, incluindo o de melhor filme pela FIPRESCI.

O que une estas duas propostas, separadas por geografia, época e linguagem cinematográfica, é a forma como o modo de vida ancestral de comunidades inteiras é extinto sempre por culpa da ganância dos "civilizados". No caso mongol, a ganância manifesta-se de forma difusa, através de um sistema económico global que provoca alterações climáticas devastadoras. No caso patagónico, a ganância tem rosto, nome e arma: são os fazendeiros que pagam para exterminar os Selk'nam e expandir as propriedades sem obstáculos humanos. Mas o resultado é o mesmo: povos inteiros veem o tapete tirado debaixo dos pés, e o mundo torna-se subitamente irreconhecível, inabitável, impossível. Os lobos saem sempre à noite - mas os verdadeiros predadores, afinal, andam à luz do dia. 



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