sábado, agosto 02, 2025

"A Fuga" de Luis Filipe Rocha: Memória, Repressão e Resistência

 

Tivesse o governo de Passos Coelho prosseguido no poder e, apesar da oposição indignada de quem entendia a ideia como uma ofensa à memória histórica antifascista, essa direita extremada levaria por diante a concessão do Forte de Peniche a interesses hoteleiros. Para além de garantir bom negócio a quem constava da sua base social de apoio, também procurava apagar a memória dos crimes ali perpetrados em nome do regime salazarento.

Os governos socialistas dos oito anos seguintes tiveram méritos e deméritos, mas entre os primeiros está decerto a musealização daquele monumento evocativo do tipo de opressão ali concretizada. A Fuga também contribui para que não se esqueça esse passado — por muito que seja essa mesma direita extrema a voltar momentaneamente a abocanhar o poder.

Realizado por Luís Filipe Rocha em 1977, A Fuga é mais do que a reconstituição da evasão de António Dias Lourenço do Forte de Peniche em 1954 — é uma obra de resistência, um gesto cinematográfico que transforma o ato de recordar num ato político. Num país onde a memória da repressão ainda é disputada, o filme assume-se como testemunho visual da coragem dos que enfrentaram o Estado Novo.

Rocha pormenoriza com rigor o espaço do Forte de Peniche, transformando-o num verdadeiro protagonista da narrativa. A arquitetura opressiva — corredores estreitos, celas escuras, zonas de vigilância — é explorada com detalhe, reforçando a sensação de sufoco e controlo. Este espaço não é apenas cenário, mas símbolo da tentativa de aniquilação da liberdade e da dignidade humana.

A atenção ao espaço físico tem um peso político: trata-se de preservar a memória dos locais de sofrimento, tornando visível aquilo que o regime tentou esconder ou normalizar. A musealização posterior do Forte é, nesse sentido, continuação do gesto iniciado por Rocha — impedir que a história seja apagada ou reescrita.

O filme retrata com crueza as rotinas carcerais impostas aos presos políticos: revistas corporais humilhantes, isolamento, tortura psicológica e violência física por parte da PIDE. Estes momentos não são gratuitos — representam fielmente o que muitos viveram, funcionando como denúncia e preservação da memória.

Ao mesmo tempo, A Fuga mostra a solidariedade entre os presos, os gestos de humanidade e resistência que sobrevivem mesmo nas condições mais adversas. Essa dualidade entre opressão e resiliência é central à narrativa.

No início e no fim ouve-se a abertura de Tannhäuser, de Richard Wagner — uma escolha carregada de intenção já que a ópera gira em torno do conflito entre o prazer mundano e a redenção espiritual, e a música reflete essa tensão. Rocha parece querer elevar a fuga de António Dias Lourenço a uma dimensão épica, quase mitológica: um homem contra o sistema, em busca de liberdade.

Ao apropriar-se de uma música associada ao poder e à cultura dominante, Rocha subverte-lhe o significado, transformando-a num hino à resistência. A pompa wagneriana contrasta ironicamente com a brutalidade do cárcere, criando uma tensão estética que reforça a crítica ao regime.

Há também José Viana a interpretar o papel de “Prisioneiro alto” — figura secundária em termos narrativos, mas profundamente simbólica. A presença física e teatral confere ao personagem uma dignidade silenciosa, representando os muitos resistentes anónimos que partilharam o espaço de sofrimento com o protagonista.

Mesmo com poucas falas, Viana marca a cena com intensidade e autenticidade. A sua participação contribui para a densidade emocional do filme, tornando-o peça essencial na construção do retrato coletivo da prisão política em Portugal.

À abordagem quase documental, com planos longos, ritmo contido e uma paleta cromática fria que reforça o ambiente de clausura, associa-se a ausência de dramatizações excessivas resultando numa linguagem visual sóbria, que respeita o peso histórico dos acontecimentos. Cada gesto e cada silêncio têm significado.

A Fuga é um exemplo representativo de como o cinema pode ser instrumento de memória coletiva e denúncia política. Rocha não apenas reconstitui uma fuga histórica, mas também dá voz aos que foram silenciados, transformando o ato de recordar num gesto de resistência.

Num tempo em que forças políticas tentam apagar ou distorcer o passado, obras como A Fuga tornam-se ainda mais pertinentes. São faróis contra o esquecimento — e contra o regresso daquilo que nunca deveria ter voltado.