quarta-feira, janeiro 22, 2025

O BELO E A CONSOLAÇÂO: Até a assimetria inicial dá razão aos ateus

 

Somos as sobras do Big Bang, dizia Leon Lederman no gabinete do FermiLab, perto de Chicago, onde desenvolveu boa parte das suas experiências de física experimental.

Desafiado a imaginar o universo nos momentos iniciais de há 13,8 bilhões de anos, ele via-o como uma quantidade ilimitada de partículas a entrechocarem-se. A energia multiplicava-se em partículas de matéria e antimatéria que, neutralizando-se, alavancavam ainda mais a sua quantidade inicial.

Podemos aí ver mais uma demonstração da inexistência de deus porque, na atávica perfeição, ele imporia a simetria absoluta e as partículas e antipartículas acabariam por neutralizarem-se totalmente, deixando um rasto de radiação. Ora, foi pelo desajustamento da quantidade de umas e outras, que nasceram as rochas, os peixes, os seres humanos. Uma boa razão para Leon Lederman considerar bela e consoladora essa assimetria primitiva.

E, mesmo nunca tendo visto uma delas - nem sequer o mais banal dos átomos, apenas lhes ouvindo milhares de vezes os clics no ciclotrão! - desde adolescente soube serem esses domínios invisíveis sobre, que a sua mente só poderia especular, a servirem-lhe de projeto de vida. O doutoramento já as teve como tema da sua tese.

E, mesmo restringindo-se a comprovar o que a imaginação lhe ia sugerindo, sempre partiu de um pressuposto inabalável: mesmo no momento da explosão inicial o universo sempre terá funcionado de acordo com as leis da natureza, a que dedicou toda a vida para as descortinar e comprovar. 

terça-feira, janeiro 21, 2025

NOTAS DE RODAPÉ: Não tenho paciência para o zarolho

 

Sei não tratar-se de opinião popular, mas as coisas são como são: por muito que lhe reconheça o mérito não conto vir a perder mais tempo precioso a revisitar os Lusíadas. Por isso nem sequer tenho olhado para as propostas televisivas, que surgem a propósito do quinto centenário do nascimento do poeta, mesmo que algumas das atrizes contratadas para lhe recitarem os versos sejam das que mais respeito entre as que estão ativas.

Há mérito, decerto, na organização de toda a obra em oitavas feitas de decassílabos (e a tortura que foi obrigarem-me a comprovar essa divisão em esforço absurdo para que não vi qualquer sentido!) e não ignoro o lado subversivo da Ilha dos Amores embora imaginar os façanhudos “descobridores” a enrolarem-se nas belas ninfas constitui exercício, que só justifica a pena por tão belas criaturas ficarem entregues a tão bárbara gente.

Subscrevendo o que Rui Zink disse sobre o vate - um lambe-botas para com um fraco rei de quem pretendia receber tença - critico, sobretudo, a mistificação histórica que fez dos nossos antepassados uns heróis, quando eram afinal uns gananciosos assassinos, que andavam a “expandir a fé e o Império” desde que isso lhes garantisse a riqueza, que não tinham, nem viriam a ter.

Quem deles deu a verdadeira caracterização foi Fernão Mendes Pinto, também visitante das Ásias nessa mesma altura e que os mostrou como violadores, assassinos, ladrões e cobardes. Por isso, a bem da verdade histórica estou muito mais propenso a reler a obra do mais fiel cronista dos ditos descobridores por muito que quisessem-no crismar de mentiroso. Com o mérito suplementar de ter morrido almadense... 

segunda-feira, janeiro 13, 2025

HISTÓRIAS EXEMPLARES: Epifania à beira de um vulcão

 

Epifania pode classificar-se o que Le Corbusier conheceu na juventude ao visitar as ruínas de Pompeia. Se a arquitetura romana não o impressionara, por muito que viesse a influenciar-lhe a obra posterior, o enquadramento dos edifícios do século I d.C. com o Vesúvio, deu-lhe conta de quanto a construção de um edifício tem obrigatoriamente de considerar o espaço à sua volta.

Tanto terá bastado para olhar com outra perspetiva o exemplo de planeamento urbano ali implementado e como se traduzira na arquitetura doméstica e no espaço público. O recurso á luz natural inspiraria os ambientes claros e arejados dos seus mais emblemáticos edifícios, onde as plantas livres e flexíveis não desdenhavam dos átrios e peristilos vistos à beira do vulcão, nem tão pouco das proporções harmoniosas tão características da arquitetura clássica.

Para Le Corbusier a cidade romana foi um laboratório a céu aberto onde pode estudar as relações entre os espaços internos e externos e a adaptação da arquitetura ao clima e ao terreno. E assim ajudou a revolucionar aquela que, desde a Antiguidade, é uma das mais reconhecidas artes...

Na mesma viagem, Le Corbusier olhou para a vizinha Nápoles como um museu, que o interessoupelos seus palácios barrocos, igrejas e edifícios populares, muitos deles a garantirem-lhe um acervo de soluções espaciais e construtivas, que aplicaria abundantemente na obra prestes a revelar-se.

sábado, janeiro 11, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Uma porta de luz rodeada de sombras

 

Diálogo de Sombras de Júlio Alves: de 2021 os ecos da retrospetiva organizada há meia dúzia de anos em Serralves. Passaporte para um projeto artístico, que sempre surpreende nas formas e conteúdos, um estilo só seu.

A cinefilia a valorizar filmes de um passado em que tinham importância artística, social e, ao mesmo tempo, chegaram a ser entretenimento popular.

Hitchcock, Fritz Lang, Hawks, Straub & Huillet, António Reis & Margarida Cordeiro, Eisenstein, Ford, Chaplin, Akerman, Godard, Dmytrik, Stroheim, Resnais, Dovjenko, Franju, Cocteau, Bresson, Tati, Tourneur, Griffith, Ozu, Dreyer, Borzage. Tantos com quem se estabeleceram pontes na escuridão das salas de cinema.

Mas também as pinturas, fotografias ou esculturas de Géricault, Picasso, Rui Chafes, Walter Evans, Nozolino, João Queirós e tantos outros, porque a sétima das artes não se dissocia de todas as outras. Ou, não menos importante, a carta escrita por Robert Desnos  no campo de Terezin onde morreu.

A montagem a potenciar conteúdos mediante o preciso instante do corte de cada plano, do seu enquadramento.

Os grandes planos a trazerem-nos o íntimo dos personagens. Príncipes de uma dinastia perdida como alguém os definiu?

As lutas de classes: de emigrantes enganados por patrões e pelos sonhos desfeitos. Camponeses em greve esmagados por polícias transportados em comboios, traídos pelos ferroviários, que não se solidarizaram com eles.

O efeito de coro de um conjunto de ecrãs donde as imagens e sons, que apelam à transformação do mundo, comprovado o lastimoso estado em que ele se encontra.

Costuma ser dado como obra exigente, que afasta quem procura a ligeireza do que não incomode. Mas nela entrando como sair do seu sortilégio? 

quinta-feira, janeiro 09, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: O linchamento mediático de Arthur Rambo

 

Há oito anos o universo mediático francês foi agitado pelo caso Mehdi Meklat, jovem jornalista de um blogue e cronista da France Inter, que da breve fama regressou ao anonimato de onde ascendera arduamente, porque foram revelados tweets seus escandalosamente homofóbicos, antissemitas e misóginos.

Sempre apostado em apalpar o pulso ao estado das lutas de classes numa sociedade entre elas dividida, Laurent Cantet representa esse Mehdi em Arthur Rambo, 2021) dando-lhe o nome de Karim D. e a pele de um jovem escritor em vias de conhecer um enorme êxito de vendas com o primeiro livro sobre a própria mãe e a sua luta pela integração num contexto de ostracização racista dos emigrantes.

De passagem, Cantet aproveita para mostrar o apodrecimento dos valores éticos pela utilização de objetos tecnológicos apostados em estandardizarem as reações dos que frequentam as influentes redes sociais. Por ser o rasto deixado nessas redes, que serve de instrumento de desqualificação dos que pareciam bem encaminhados para ascenderem socialmente e voltam a ser empurrados para a condição de origem por serem, de acordo com os cérebros racistas dessa estratégia, o lugar que lhes cabe.

Daí que quarenta e oito horas bastem para Karim D. ir das ovações no centro do palco para os insultos e as ameaças mais veementes. A transição da adulação para o ódio dura só um instante!

Pode-se considerar que, com tão palpitante material (a fachosfera, a rapidez com que se fazem julgamentos sumários e as dificuldades de integração das jovens gerações nascidas na Europa, mas de pais emigrantes), Cantet não tenha mostrado melhor inspiração: se na primeira metade do filme a câmara movimenta-se eloquentemente entre grandes planos e outros de quem, nos transportes públicos, vive agarrado ao telemóvel, o filme vai-se banalizando num drama convencional à medida que se produz o esperado desenlace. Mas convenhamos que, entre um filme assim e os destinados aos trituradores de pipocas não há dúvidas quanto a qual preferir! 

segunda-feira, janeiro 06, 2025

ALGUMAS COISAS QUE DELE SEI: As deambulações de um escaravelho

 

Ao avançar no tronco da árvore um escaravelho pode julgar-se num piso direito, mas a curvatura tende-o a desviar de acordo com a efetiva realidade. Assim somos nós julgando-nos capazes de irmos daqui para acolá pelo caminho mais curto, mas condicionados pelo arqueamento do espaço-tempo em que nos vemos.

Terá sido uma observação desse tipo, confirmada por outras colhidas nos frequentes passeios pelos campos e florestas, que tornou Einstein no protagonista do grande momento da cosmologia moderna. Para escândalo de alguns dos cientistas mais velhos da Academia Prussiana de Ciências, um modesto funcionário do Escritório de Patentes suíço mandava às malvas a irrefutável Teoria de Gravitação Universal mediante cálculos matemáticos, quase cabalísticos.

Se a reação dos presentes se dividiu entre o ceticismo quanto à validade da Teoria da Relatividade Geral, e a curiosidade de quem se revelava disponível para a ver testada, depressa esta segunda atitude ganhou aceitação, quando os telescópios confirmaram o desvio da órbita de Mercúrio, e com ele a insuficiência da tese newtoniana que fazia depender a atração dos corpos exclusivamente das suas massas.

A gravidade passava a ajustar-se à geometria do binómio  do espaço e do tempo  possibilitando outras descobertas fundamentais sobre como olhamos agora para o Universo: a sua imparável expansão, a existência de buracos negros.

E esta descoberta poderá ter começado pela deslocação de um coleóptero numa árvore, havendo quem dela depreendesse a semelhança com a condição de quem avança à velocidade de 29,8 quilómetros por segundo em torno do sol e não se apercebe de tão vertiginosa viagem...

sábado, janeiro 04, 2025

ALGUMAS COISAS QUE DELE SEI: As grandezas e misérias de um génio

 

Olhamos para as imagens  da chegada de Albert Einstein aos Estados Unidos, em 1933, e logo simpatizamos com o feitio bonacheirão de quem, às perguntas dos jornalistas, responde ser-lhe indiferente a Lei Seca, porque não bebe, mas apressa-se a confessar o estímulo da nova casa tendo em conta ver-se rodeado de algumas beldades, que acorreram a dar-lhe as boas vindas.

Associamo-lo facilmente à imagem em que deita a língua de fora para o fotógrafo e a todas as provocações em que foi exímio por nunca abdicar de dizer o que lhe vinha a cabeça por saber-se admirado o bastante para ninguém se atrever a contestá-lo.

Estava-se em 1933 e, previdente perante a ascensão dos nazis ao poder, tomou a decisão de não regressar a uma Alemanha, depressa entendida como lugar inadequado para quem tivesse filiação judaica.  E, no entanto, a vivenda por ele mandada construir perto de Potsdam junto à floresta de Brandeburgo, onde tanto gostara de passear, fora porventura o sítio mais aprazível de todos em que vivera. Afinal só por três anos usufruíra do conforto por ela proporcionado e os passeios propícios à reflexão, concretizados à sua beira.

Por essa altura os trabalhos científicos mais importantes já tinham sido publicados e ele era um professor excêntrico reformado a quem a Academia pagava para prosseguir as investigações no domicílio fazendo-o precursor do atual teletrabalho. Em vez de se deslocar a Berlim, que ficava a uma trintena de quilómetros, eram os colegas, admiradores, assistentes e alunos a deslocarem-se onde residia.

Melhor do que qualquer dos contemporâneos ele encarnava a grandeza de um século, que contaria igualmente com as suas misérias, E, convenhamos que, como marido e pai, ele não se livrou de alguns motivos de censura, que os detratores acentuaram, quando os incomodou o seu papel como pacifista, que reivindicava um código ético humanista contra quem gostaria de o ter como aliado para as suas predisposições imperiais... 

APONTAMENTOS CINÉFILOS : As Albas de Sebastião

 

A Elza deu-mo há mais de vinte anos, por ocasião da sua publicação, mas nunca me dediquei a ler Albas com a merecida atenção. Folheei-o, li esparsamente algumas páginas mas pu-lo de lado para uma maior disponibilidade, que nunca para ele se orientou.

O documentário de Inês Leitão Ninguém como nós conhece o sol (2020) vem lembrar-me algumas razões para o reiterado adiamento dessa leitura: embora fosse inteligente e muito culto, Dinis Gonçalves (verdadeiro nome de Sebastião Alba) desde cedo eximiu-se de acomodada rendição às convenções personificando um espírito libertário, que o levou à prisão durante o período colonial por, em atitude teimosamente pacifista, escusar-se a cumprir os “deveres” militares.

Depois, nos primeiros anos de independência de Moçambique ainda integrou o gabinete de um alto responsável da Frelimo, mas a incapacidade para submeter-se a uma disciplina partidária, depressa vocacionou ao fracasso essa possível opção de vida.

Virando costas à família - embora alegrassem-no os reencontros com os irmãos! -, foi escrevendo uma caótica obra literária em suportes precários, muitos dos quais se perderam. Até porque, a exemplo das aves de arribação, nunca ficava muito tempo no mesmo sítio, numa existência de sem abrigo andrajoso, que surpreendia quem o não conhecia pelo tom de voz doce e vocabulário de quem, mesmo se quisesse, não poderia iludir a educação recebida e a cultura que a consolidara.

Atropelado em Lisboa só foi identificado na morgue semanas depois, porque a polícia nem sequer se deu ao trabalho de ler os papéis de que sempre se fazia acompanhar com os contactos da família a quem deveria informar acaso algo lhe acontecesse.

Fim trágico de alguém que interpela quanto à razão, que levou quem tinha capacidade para confortável modo de vida pequeno-burguês a preferir a mais despojada liberdade. 

quarta-feira, janeiro 01, 2025

APONTAMENTOS CINÉFILOS: Um western modernaço

 

Iniciei os anos 70 a tentar compreender o mundo em que vivíamos e confesso que, meio século depois, ainda procuro fazê-lo, mas já sem as veleidades quanto ao meu contributo para transformá-lo. Se mal o interpretei - embora já o sabendo eivado de três males convergentes (fascismo, colonialismo, imperialismo), quase em condição semelhante o deixarei daqui a não muitos anos.

Vem isto a propósito do canal franco-alemão ARTE repetir esta tarde a apresentação de Dois Homens e um Destino, filme que muito me agradou nesse longínquo passado, quando as Quinzenas no Monumental ao fim da tarde iam servindo de minicinemateca para quem tanto gostava de filmes.

Na época passaram-me ao lado as críticas negativas por causa da infidelidade de George Roy Hill à verdade histórica sobre os verdadeiros Butch Cassidy e Sundance Kid ou o clima meio-hippie da  cavalgada até à Bolívia, onde teria fim a carreira de ambos como assaltantes de bancos e de comboios. Mas sobravam, e continuam a sobrar, argumentos para considerar especial um título, que associo logo à canção de Burt Bacharach quando vemos Paul Newman a passear Katharine Ross de bicicleta (Raindrops keeo fallin’on my head).

Reconheço que sem o trio de atores, que o protagonizaram, o filme seria coisa menor sobre a camaradagem masculina e algumas das suas virtudes. Mas Newman, Redford e a namorada de Dustin Hoffman em A Primeira Noite alavancam-no a um outro patamar. Mesmo que, como será hoje o caso, os tenhamos de apreciar na dobragem em francês.