Poderá alguém ser suficientemente manipulador, que altere completamente os objetivos e os próprios valores de alguém, que chega a um espaço desconhecido e nele se tenta adaptar?
Chegados ao último terço do romance de J. G. Ballard o tema principal clarifica-se cada vez mais. Como é possível abandonarmos os nossos escrúpulos e sermos muito diferentes do que fomos até aí?
Trata-se de um tema pertinente ou não assistamos com demasiada frequência à assunção de comportamentos e ideias, que reputaríamos repugnantes, mas facilmente integráveis num imaginário coletivo. A tal psicologia de massas, que redundou em diversos regimes fascistas e a quem o psicanalista Wilhelm Reich deu particular atenção.
Pouco a pouca a aparência de normalidade em que os dias pareciam passar-se em Estrella de Mar começa a revelar o seu lado sombrio: Bibi Jansen, a antiga toxicómana, que encontrara abrigo na mansão Hollinger, estava grávida de Bobby Crwford, que se confirma ser o sol reluzente à volta do qual todos parecem rodopiar. Até chamuscarem as asas e tombarem. Até mesmo Andersson, que trabalha na manutenção dos barcos na marina e a amava, e só pode culpabilizar-se por não a ter conseguido salvar.
Mas Charles também cai nesse redemoinho, que a todos fascina ou intimida, quando não mesmo mistura em cada uma das duas reações: levando-o num passeio a Costasol, Bobby Crawford fá-lo encontrar o tipo de ambiente anteriormente existente em Estrella de Mar quando ainda ali não aplicara a sua “receita”.
“Os residentes de Costasol, como os dos aldeamentos de reformados ao longo da costa, tinham-se retirado para as suas salas escurecidas, os seus bunkers panorâmicos, precisando apenas daquela parte do mundo exterior que lhes chegava destilada do céu via antenas de televisão. Vazios ao sol, o clube de desportos e o Centre Social, como as restantes amenidades introduzidas no complexo pelos consultores suíços, pareciam os adereços abandonados de um filme cuja produção fora interrompida.” (pág. 204)
A razão do passeio, que o levara a rejeitar o convite de Paula para acompanhá-la na visita ao irmão no cárcere, depressa se esclarece: tal como Frank fora muito útil para transformar Estrella de Mar desse mesmo marasmo no aldeamento vibrante e convivencial em que se tornara, a intenção de Bobby Crawford é convencer Charles para que aceite a mesma função de gestor do Clube a partir do qual toda a animação futura daquele espaço irradiará.
“Podemos falhar, mas vale a pena tentar. A Residência Costasol é um cárcere, nem mais nem menos do que a prisão de Zarzuella. Estamos a construir prisões por todo o mundo e a chamar-Ihes condomínios de luxo. E o espantoso é que as chaves estão todas do lado de dentro. Eu posso ajudar as pessoas a rebentar as fechaduras e voltar ao mundo real. Pense, Charles... se resultar, pode escrever um livro a respeito disto, um aviso ao resto do mundo.” (pág. 207)
Quando Paula toma conhecimento dessa possibilidade alerta Charles: será um ingénuo se acreditar que aceitando o emprego chegará mais facilmente à descoberta do que esteve por trás do incêndio da mansão e do aprisionamento de Frank. Até mais: classifica-o de cego perante as movimentações, que se estão a passar-lhe à frente do nariz sem que delas se aperceba.
Mas mesmo sabendo-o um criminoso - não sobram dúvidas quanto a quem quase o estrangulou no apartamento de Frank - Charles não consegue resistir à capacidade persuasiva de Bobby, quando ele lhe diz: “Preciso de si, Charles... É difícil fazer isto sozinho. A Betty Shand e o Hennessy só estão interessados no dinheiro. Mas o Charles consegue ver para lá disso e descobrir um horizonte mais vasto. O que aconteceu em Estrella de Mar vai acontecer aqui, e depois vai alastrar costa abaixo. Pense em todos aqueles aldeamentos a voltarem à vida. Estamos a libertar as pessoas, Charles, a devolvê-las aos seus verdadeiros eus.” (pág. 226)
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