domingo, outubro 31, 2021

Lola, Rainer Werner Fassbinder, 1981

 

Antes de se matar com uma overdose de cocaína e de barbitúricos, quando tinha apenas trinta e sete anos, Rainer Werner Fassbinder rodou impressivos retratos de três mulheres fortes - Willie em Lili Marleen, Lola e Veronica Voss - perante os constrangimentos do pós-guerra alemão. A sua Lola remete para essoutra, interpretada por Marlene Dietrich, cinquenta anos antes no filme de Sternberg, que transferira ambos para Hollywood: O Anjo Azul.

A exemplo da personagem que replica, a Lola de Fassbinder é a mais bem sucedida prostituta de um cabaré-bordel de Coburgo, onde afluem todos os burgueses com influência na região. A começar pelo seu proxeneta, Schuckert, igualmente o mais ativo empreendedor da região e a cujo mando andam as autoridades civis e policiais. Existem contestatários anarquistas - Esslin, o nome de um dos membros do grupo Baader-Meinhof - mas até esses se deixam corromper pelo poder do dinheiro.

Vindo de fora o escrupuloso Von Bohm não tem ilusões quanto à necessidade de pactuar com os burgueses da cidade para potenciar o dinheiro norte-americano, que fundamenta o milagre alemão nessa segunda metade da década de 50. Mas sem facilitar a corrupção até aí dominante em todos os negócios dos anos anteriores. O problema será a paixão obsessiva, que ganha pela protagonista, primeiro sem imaginar qual a sua verdadeira profissão, depois dividindo-se entre duas atitudes opostas quando Esslin o leva ao prostíbulo. Se a princípio causa calafrios aos poderosos da cidade com uma vingança emotiva, que os poderá levar atrás das grades, logo se deixa corromper desposando Lola, mesmo que ela surja como a verdadeira vencedora de toda a sucessão dos acontecimentos. Porque torna-se dona do bordel, ganha a respeitabilidade de mulher casada e continua a deitar-se com quem melhor lhe aprouver.

Além de um desempenho superlativo de Barbara Sukowa o filme tem uma fotografia determinante para expressar as características dos personagens com os azuis a acompanharem grande parte das cenas com Van Bohn e as vermelhas alaranjadas para as respeitantes a Lola.

sexta-feira, outubro 29, 2021

Tenet, Christopher Nolan, 2020

 

Azar o meu que nunca tive um professor de física, que percebesse alguma coisa de mecânica quântica e passasse pelo crivo estipulado por Richard Feynman para os seus alunos: só perceberiam algo da relatividade ou de outros conceitos pós-newtonianos se os conseguissem explicar às respetivas avós analfabetas e elas os conseguissem compreender. Como já sou avô, esperemos que alguma das minhas netas me venha a dar explicação clara e concisa sobre tais noções, porque, quando andei embrenhado a compreender a teoria das cordas e outras afins fiquei praticamente na mesma. Da Física continuo no tempo em que uma maçã caía da árvore e embatia na atónita cabeça de quem por baixo se encontrava.

Vem isto a propósito de Tenet, o filme aclamado como salvador da indústria cinematográfica no mundo pós-pandemia, mas que se baseava em coisas esdrúxulas como era o caso das entropias reversíveis. Numa sucessão de cenas à James Bond, mas sem a ironia, que constatávamos em muitos desses filmes, vi-me no meio de uma guerra entre alguém do futuro e audazes agentes do presente, que procuravam salvar o mundo de um arquivilão formado na antiga União Soviética e interpretado por Kenneth Branagh. O filho de Denzel Washington faz de protagonista e tem a ajuda de Robert Pattinson, passando igualmente por ali um Michael Caine em versão «encontraram-me ali à esquina e convidaram-me a fazer uma perninha para o filme que estavam a rodar»!

Noutra metáfora possível para descrever o filme é como se me deparasse com vistoso e ruidoso fogo-de-artifício, quase ensurdecendo com tanta chinfrineira - e que cuidados devo ter para não perder o ouvido ainda razoavelmente bom que me resta! - mas de que me ficará escassa lembrança quando mo quiserem recordar daqui a algum tempo.

Manifestamente já não tenho idade nem paciência para filmes apropriados para acompanhamento com pipocas.

quarta-feira, outubro 27, 2021

Em busca de fantasmas

 

1. Em 1903, quando aportou às Ilhas Marquesas, Victor Segalen ambicionava encontrar Paul Gauguin, que muito admirava. Mas o pintor morrera três meses antes e o jovem médico da Marinha francesa não tardou a procurar outros fantasmas, quando decidiu ficar em Tahiti para demandar Mataiea, onde o pintor vivera. E foi a cultura maori a fascina-lo inesperadamente. Porque estava a perder-se, esmagada pelo avanço da europeização, sem contemplações com aquelas tradições orais em vias de extinguirem-se juntamente com os que ainda eram capazes de as transmitirem. Porque havia o álcool, as doenças para que os naturais não tinham defesas e, muito menos, conseguiam contrariar os missionários protestantes que transformavam e destruíam os espaços até então tidos como sagrados pelos que aí viviam.

Para conservar algo dessa civilização Segalen decidiu descrevê-la como se fosse um maori, não podendo evitar a nostalgia e o pessimismo quanto à sua inevitável destruição. Nesse sentido Os Imemoráveis, que publicou em 1907, acaba por ser a evocação possível de um mundo, que a colonização aniquilou.

2. Foi outro fantasma, o que um jovem estudante italiano de 22 anos veio procurar a Lisboa, quando aqui chegou em 1966. Fernando Pessoa, seu persistente mestre, seria uma tal assombração para Antonio Tabucchi, que o tornaria ausente protagonista do seu único romance escrito diretamente em português: Requiem. Trata-se de uma espécie de sonho em que existe um encontro fracassado com o poeta junto ao Cais das Colunas, prosseguido na sua procura por toda a cidade, dando ao narrador a oportunidade de conhecer gente capas de conferir-lhe uma perspetiva singular sobre esta cidade, que adotou como sua, e o fez filho adotivo a ponto de aqui viver boa parte das décadas seguintes até nela morrer em 2012. Há um drogado, um vendedor de bilhetes de lotaria, o guarda de um cemitério ou uma velha cigana. E esse humor fatalista dos portugueses, que revelam-se fascinados pelos paradoxos nos jardins, nas tabernas onde se ouve o fado como eco de um passado, que suscita nostalgia, porque ligado a algo que definitivamente se perdeu. No Guincho, perante a imensidão do oceano, o romance ganha todo o sentido quando o sonho acaba. Por aí melhor sentir-se a homenagem aos que partiram. 

domingo, outubro 24, 2021

Le Babel des enfants perdus, Théo Ivancz, 2019

 

Provavelmente haverá pouco interesse das gerações mais novas relativamente aos documentários sobre a Segunda Guerra Mundial mas sempre os tenho apreciado com grande interesse tendo em conta que, nascido onze anos depois dela cessar, tão próxima ainda me parecia quando dela comecei a ouvir falar nas conversas entre os mais velhos.

À distância de mais de setenta e cinco anos ela continua a revelar-se pertinente nos dias de hoje em muitos dos aspetos menos conhecidos. Por exemplo relativamente ao destino das vinte mil crianças órfãs que, findo o conflito, andaram a vaguear por essa Europa fora sem que houvesse quem as acolhesse. Afinal nada de particularmente diferente do que hoje sucede com as crianças, que atravessam o Sara ou o Rio Grande e procuram a sobrevivência onde ela lhes parece possível, porque negada onde nasceram.

O filme de Ivancz acolhe os testemunhos dos sobreviventes de um campo para mais de um milhar dessas crianças que se viram instaladas num convento abandonado em Indersdorf, nos arredores de Munique, quando corria o verão de 1945. Pioneiros do trabalho humanitário, os responsáveis por esse espaço  procuravam garantir a essas crianças o reencontro com os familiares sobreviventes ou a transferência para Inglaterra, Estados Unidos, Israel ou outros destinos onde lhes fosse possível recomeçarem uma vida esperançosa depois de se ter revestido de tão negros contornos durante os anos da guerra.

Eleanor Roosevelt, que visitou o campo no ano seguinte, não ignorou qual o desafio mais importante que se colocava a Greta Fischer e a outros dos que cuidavam da sua organização: a diluição dos muitos traumas, que persistiam nos aí acolhidos. E que ficaram para a sua vida futura: hoje em dia, muitos dos octogenários que por ali passaram, confessam a tentação de levarem do jantar uma bucha de pão para esconderem debaixo da almofada quando vão dormir. Porque esse era um tesouro, que poderia valer-lhes a sobrevivência, quando andavam perdidos enquanto crianças entregues a si próprias.

Paul Auster e a biografia de um homem em chamas

 

Paul Auster foi um fenómeno literário durante muito tempo e confesso-me seu assíduo leitor desde que lhe descobri a  Trilogia de Nova Iorque. Mesmo o seu volumoso calhamaço de há quatro anos atrás - 4321 -  foi devorado num breve fim-de-semana embora me tenha interessado mais pelo conceito do que pela efetiva empatia pela narrativa em si. Esforço que tenho dúvidas de repetir com Um Homem em Chamas, 800 páginas dedicadas a Stephen Crane, um escritor do final do século XIX  morto de tuberculose aos 29 anos, que lhe serve de tema para uma biografia mesclada de reflexão sobre o ato de escrever.

Não é que o biografado desmereça atenção: além de se tratar de um autor particularmente sensível aos problemas dos mais desfavorecidos do seu tempo merecera de Jack London uma assumida admiração. O que vale para mim como autêntica carta de recomendação. Mas daí a investir mais de vinte horas na leitura de um livro planeado para ter a dimensão de uma novela, e afinal transformado numa tão volumosa obra, é decisão que, embora ainda não fechada em si, também está longe de pertinência favorável.

Na entrevista, que a Visão lhe faz na mais recente edição, Auster diz-se jovem apesar dos 75 anos de idade, mas consciencializa o quanto se está a secundarizar numa realidade literária em perda de fulgor perante tantos estímulos capazes de tornarem pouco atrativos os hábitos de leitura. Há a descrença perante uma dinâmica, que vai sobrevalorizando a imagem em detrimento da palavra. 

sexta-feira, outubro 22, 2021

Violências sociais e identitárias

 

1. Em «O Avesso da Pele» Jefferson Tenório dá conta do racismo estrutural, que grassa na sociedade brasileira traduzido, por exemplo, na possibilidade de um negro continuar a ser assediado por policias, que o forçam a identificar-se, mesmo quando já tem idade para ser pai de muitos dos que o instam a tal e é professor numa escola pública. Assim como não estranha que eles possam incluir quem tem, igualmente, a tez negra porque, vestida a farda, assim se porta o respetivo «monge». Daí que considere a eleição de Bolsonaro dentro dessa lógica: se não fosse ele seria um qualquer outro que viesse dar expressão a esse lado mais sombrio de uma nação onde as desigualdades mediante a cor da pele continuam a ser um dos seus principais problemas, ainda por resolver.

2. Diogo Noivo escreveu um ensaio sobre a história da ETA e confesso-me pouco curioso sobre o resultado dessa investigação. O movimento independentista basco fracassou no intento devido à violência descontrolada de muitos dos seus membros, que não souberam consciencializar quanto ela poderia servir ou não a sua causa. Mas a diabolização dessa organização serve sempre de capa à desculpabilização de um Estado castelhano que, desde o franquismo, sempre usou de ignóbil bestialidade, quando se tratou de manter unida uma soma de nacionalidades desejosas de se centrifugarem para a afirmação das suas distintas identidades.

Não esteve Felipe Gonzalez e a cúpula do PSOE ligada à organização clandestina de um terrorismo estatal personificado nos GAL e cuja guerra suja foi também assinalada por várias mortes? E não desrespeitou Aznar qualquer possibilidade de diálogo com a ETA, porque pressentiu o quanto poderia ganhar politicamente com uma dureza contrabalançada pelo total abandono dos reféns?

Na guerra entre a ETA e o estado castelhano não há espaço para maniqueísmos, porque as zonas cinzentas intercalam-se entre os seus extremos.