sexta-feira, maio 31, 2019

(DIM) «Shoplifters: uma família de pequenos ladrões» de Hirokazu Kore-eda (2018)


O que é uma família? É a questão subjacente a este filme do japonês Koreeda, que começámos por conhecer através do seu impressionante «Ninguém Sabe». Nesse título de 2004 tínhamos quatro crianças abandonadas por uma mãe solteira, que lhes deixara algum dinheiro e a recomendação ao primogénito, de apenas 12 anos, para que tomasse conta dos irmãos, porque nunca mais daria notícias de si. Em «Shoplifters» temos uma família, que vive na maior das precariedades, sustentando-se com pequenos furtos praticados em lojas da vizinhança e que acolhe uma menina, que era vítima de maus tratos.
Depressa somos confrontados com a questão: faz mais sentido que ela regresse a uma casa mais abastada, mas onde continuará a ser agredida e a sentir-se infeliz, ou ficar com esta família de adoção onde a solidariedade entre os seus membros parece evidente e a alegria sobrepõe-se às privações?
Avançando o filme para a segunda metade somos lentamente confrontados com o facto de não serem tão fidedignas quanto pareciam as conclusões a que, anteriormente, chegáramos.  Mas mantém-se a questão da legitimidade da proveniência biológica para melhor definir-se o que é ou não um bom pai ou uma boa mãe. Nesse sentido «Shoplifters» consegue ser suficientemente perturbador para que se ponham em causa algumas das convicções sociais cristalizadas.
A exemplo de «Parasite» do coreano Bong Joon-ho, que acabou de ganhar a Palma de Ouro em Cannes, o filme que o antecedeu nessa mesma consagração, demonstra como o cinema asiático constitui hoje em dia o melhor alfobre de propostas capazes de nos impressionarem, questionarem e motivarem reflexões fora dos lugares comuns.

(DL) Lendo Susan Sontag, Olivier Rolin e José Gomes Ferreira


1. Mais vale estar errado com eles do que certo com os outros. Encontro esta frase num conto de Susan Sontag - «Velhas Queixas Revisitadas» - em que está em questão a vontade de sair da organização a que estavam vinculados todos quantos conhecia, desde o marido à própria mãe. Porquê, não o explica, mas a intenção vai sendo sempre adiada, porque aquela constatação, formulada quase no início, faz todo o sentido. Por muito que a «organização» tenha errado muitas vezes, conotando-se com práticas, que nunca deveriam ter sido as suas, tem por si a legitimidade de encarnar um corpo teórico de explicação da História e de como ela poderá evoluir, sem equiparação possível com qualquer outro concorrente.
Há perigos em pertencer-lhe, porque a repressão dos governos atiça-se raivosamente contra ela e os seus membros, quando a máscara democrática cai e o sistema de exploração do homem pelo homem adota as vestes da tirania. Mas há uma manifesta superioridade moral em quem consegue interpretar os factos, dar-lhes a substância de decorrerem de causas precisas e suscitarem consequências previsíveis, adotando, momento a momento, a melhor estratégia para apressar um futuro, que sempre tarda.
2. Antipatizo com os fanáticos de um credo que, julgando-se iluminados por uma outra «verdade»,, passam a dizer cobras e lagartos de quanto terão piamente acreditado. Essa transição de um extremo para outro elucida, sobretudo, sobre o carácter (ou a falta dele!) de quem é capaz de trajetos tão lineares entre um ponto bastante afastado de um eixo e o seu exato contrário.
Durão Barroso é o exemplo mais odioso desse tipo de santanário, ora conseguindo ultrapassar todos os maoístas pela esquerda, ora tornando-se tão devoto do capitalismo selvagem, que se tornou no rosto de uma das suas mais odiosas instituições.
Olivier Rolin assemelha-se ao mordomo da Cimeira dos Açores, porque também ele foi um maoísta radical e recorreu ao mesmo tipo de maniqueísmo para escrever uma obra abertamente anti estalinista. Em «O Meteorologista» ele aborda o martírio de Alexei Feodossevitch, o responsável máximo da instituição soviética dedicada à investigação das massas de ar e das correntes marítimas para obter melhor rigor nas previsões do tempo e que acabou fuzilado algures na Sibéria durante o Grande Terror de 1937 e 1938.
Embora tenha a honestidade de reconhecer que a vítima do desvio estalinista sempre manifestou confiança no Partido Bolchevique e no seu projeto de transformação política e social, entendendo a sua situação como um trágico erro a ser esclarecido, Rolin oculta aquilo que, eu próprio, tive ocasião de constatar durante algumas viagens à URSS antes de Gorbatchev a ter conduzido à absurda implosão: que Estaline continuava a ser idolatrado por muitos cidadãos russos e ucranianos nos anos 70, quando Brejnev era odiado por não se revelar suficientemente competente para dar continuidade às expetativas abertas pelo regime nas décadas anteriores.  Tenho bem presente uma discussão em Tuapse em que dois interlocutores afirmavam sem pruridos que  Lenine good! Estaline good! Brejnev niet!
Reduzir a história soviética aos milhões de mortos nesse período trágico da sua existência - com muitos dos algozes a acabarem por conhecer o destino por eles decididos em relação às suas vítimas! - é dar provas de uma grande desonestidade intelectual. Porque, por outro lado, a URSS soube industrializar-se e antecipar-se aos EUA nos primeiros anos da conquista espacial. E esse foi um lado epopeico, que importa assinalar.
Hoje pode concluir-se que o estalinismo foi a implementação perversa de um projeto ideológico, que continua a ser tão pertinente quanto na altura em que Marx e Engels lhe definiram o conhecido Manifesto, muito embora se reconheça, que nunca as circunstâncias sociais, nem o estado de desenvolvimento dos meios de produção, permitiram que a sua concretização tivesse hipóteses de ser bem sucedida. Isso não impede que volte à ordem do dia, quando o esfarrapado capitalismo conhecer o seu definitivo estertor.
3. No primeiro volume do seu «A Memória das Palavras», José Gomes Ferreira confessa o estado de alma em que se encontrava, quando embarcou para a Noruega em 1925 para aí exercer função de cônsul em Trondheim: a pior solidão é a que me espera agora, a de ter de esconder a minha verdadeira personalidade. Ai de mim se não conseguir aparentar a banalidade altiva dos medíocres! Tomar-me-ão por parvo! Ele não suspeitava o quanto o breve interregno na Escandinávia contribuiria para afinar o recurso das palavras e das suas interligações de forma a conferirem-lhe uma identidade poética original.
O que a frase do escritor revela é algo de semelhante ao que Sontag constatava no seu conto: quem detém o conhecimento necessário para olhar globalmente para a realidade e adivinhar-lhe os trilhos para que se torne mais benigna para a enorme maioria dos humilhados e ofendidos, padece o risco da solidão dos que a olham de um patamar donde está excluída a grande generalidade dos seus potenciais convivas. Que se detêm quase sempre nas árvores, que veem à frente do nariz e ignoram o que se passa no conjunto da floresta...

quinta-feira, maio 30, 2019

(VOL) Resistir para existir


(Num dos seus mais recentes programas de Filosofia, Raphäel Einthoven abordou o tema da resistência às circunstâncias sociais e profissionais, que inibem o direito a sermos felizes. Este texto sintetiza algumas notas dele colhidas e algumas conclusões, que apenas ficavam implícitas mas, muito naturalmente, podem e merecer ser valorizadas).
Resistir equivale a procurar a felicidade em todas as ocasiões, porque essa é uma das condições de existir. Numa célebre canção de France Gall há palavras a interligarem-se: existe, resiste, insiste, persiste. A vida passa por ser vivenciada de acordo com o que dela fazemos.
Camus dizia que a solução passa por não nos sujeitarmos às circunstâncias, alterando-as a nosso favor. Evitando, por exemplo, o burn out, uma das ameaças mais frequentes no meio laboral atual. A aceleração dos ritmos de trabalho numa sociedade caracterizada pela competitividade, não só entre empresas, mas também entre os próprios colegas de trabalho, justifica o aparecimento dessa patologia psiquiátrica, traduzida, em muitos casos, numa deriva autodestrutiva passível de se concluir tragicamente.
Segundo o filósofo Pascal Chabot, que se tem debruçado sobre o tema, o sistema inerente a essas situações decorre de três contradições essenciais: o vidro, que separa o interior do exterior do local de trabalho, o ar condicionado da natureza; a cadeira em que se senta quem trabalha e definidora do seu estatuto e da relação com os outros; e o ecrã por onde flui toda a informação, mas é igualmente o veículo de uma transparência a que cada um se expõe e pela qual é julgado.
Como resistir ao sistema sem o contestar o bastante para ser por ele posto à margem? O assédio moral tornou-se uma das formas de repressão mais comuns exercidas sobre quem procura existir dentro desse sistema e que é exercido para anular a individualidade de quem constitui  mera peça de engrenagem instando-o a nada contestar. Como ocorreu no caso da trabalhadora de uma empresa corticeira de Paços de Ferreira empurrada para uma situação revoltante por não aceitar que a impedissem de cumprir os deveres de mãe de um jovem com deficiência.
Resistir equivale assim a provar que se é, se existe! Há quem assim não pense e Adèle Bauville surge como contraponto com quem é impossível concordar, porque aconselha a que se faça exatamente o contrário: abrir as portas e deixá-las completamente franqueadas para que, por ela, transitem todos os medos e inquietações, aceitando-os e aprendendo a viver com eles. Praticando o ioga por exemplo. Mas é proposta inaceitável reveladora de um conformismo, de um encorajamento da resignação, muito conveniente a quem ganha em manter este estado das coisas, esta sociedade desigual e injusta. As modas relacionadas com os espaços dedicados à meditação e a outras disciplinas orientais merecem tanta promoção publicitária por corresponderem ao interesse de quem beneficia com a relação de forças entre quem trabalha e quem dele aufere as mais-valias. Por lhes inibir o direito natural à indignação, esse sim, um ato de quem se orgulha de ser como é e assim querer continuar...

(DL) Estamos no ano do centenário do nascimento de Doris Lessing


Este é o ano em que comemoraremos o centenário do nascimento da escritora Doris Lessing, que foi merecidamente galardoada com o Nobel da Literatura em 2007. Será a oportunidade para recordarmos muitas das suas obras, que abordavam, por um lado, a segregação racial praticada na antiga Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe) e, por outro, as fascinantes paisagens africanas com a savana a perder de vista e os seus animais selvagens.
O pai de Doris Lessing foi um dos iludidos colonos enviados pela Inglaterra para a sua nova colónia africana, quando ela acabara de ser integrada no Império Britânico. Alfred Tayler vira terminada a comissão de serviço num banco do Curdistão - onde ela nascera! - e vira na sua reconversão enquanto agricultor a oportunidade de enriquecer. Não o intimidava o facto de ter uma perna a menos, perdida durante a sua participação da Grande Guerra.
O prometido paraíso transforma-se num desastre doloroso: as secas dão cabo das culturas, apesar da propriedade concessionada a Alfred contar com mil e duzentos hectares. Emily Maude, a mãe, passaria grande parte do tempo afundada na sua permanente depressão, o que significou para a jovem Doris o sentir-se, sobretudo, entregue a si mesma. Daí que se desse ao prazer de explorar as proximidades da propriedade familiar, descobrindo nos vizinhos negros uma cultura completamente diversa da sua, com crenças animistas fazendo das árvores o fulcro da sua veneração.
A jovem também testemunhará a progressiva implantação do apartheid recentemente aplicada na União Sul-Africana nesta colónia sua vizinha, sendo-lhe absurda essa repartição social entre os brancos, que mandavam, e os negros, destinados a servi-los. Não admira que, quando se mudou para Salisbúria (hoje Harare), onde encontrou trabalho como telefonista, Doris se aproximasse dos círculos comunistas aí organizados, conhecendo o seu segundo marido - que lhe valeria o apelido! - um alemão que viria a ser nomeado embaixador da RDA no Uganda logo após a Segunda Guerra.
Mudando-se para a Europa Doris iniciou um percurso literário muito intenso, com dezenas de títulos publicados, quer em contos, novelas, romances ou autobiografias, nalguns casos com recurso ao pseudónimos de Jane Somers.
Proibida de voltar à Rodésia do Sul e de visitar a África do Sul por ter mantido um permanente ativismo anti-apartheid, Doris Lessing nunca deixaria de ter como componente fundamental da sua identidade essa pertença a uma África eterna, que desejaria ter visto capaz de garantir uma convivência pacífica entre as suas diversas comunidades e etnias.

quarta-feira, maio 29, 2019

(VOL) Quando a Ciência elimina a hipótese de existência de um qualquer deus


Cem anos depois de demonstrada a sustentabilidade prática do que Einstein congeminara na teoria ainda impressiona o engenho com que ele foi capaz de conceber uma tão magnifica explicação para as leis com que se organiza o nosso universo. Por muito que surjam esforços meritórios de quem procura explicar-nos a Relatividade Geral com a simplicidade devida à mais analfabeta das avós (ou dos avôs, já agora, que nestas coisas não são mais, nem menos espertos!) só a podemos intuir se adotarmos a atitude de fazer sair o pensamento «fora da caixa», eximindo-nos à tentação de nos deixarmos guiar pelas ilusões dos sentidos.
A comemoração das expedições científicas organizadas por Arthur Eddington há cem anos não suscita apenas a reiteração desse continuado espanto. Há, sobretudo, a curiosidade quanto ao tempo que demorará para algum novo génio da Física apresentar uma tese consistente para conjugar essa teoria de explicação do Cosmos no infinitamente grande, com a que só parece fazer sentido no infinitamente pequeno.
Será que nos anos de vida, que me restam, ainda assistirei a essa conciliação, por ora aparentemente inviável, entre a teoria da Relatividade e a Quântica? Nesta altura existem milhares de físicos a tentarem-no e, pessoalmente, desconfio ser ela o definitivo xeque-mate à persistência de algo tão obsoleto nos imaginários coletivos como o é a existência de um qualquer deus criador. Se o universo - provavelmente se o número infinito de universos existentes, desaparecidos e ainda por nascerem! - tem alguma conotação com uma qualquer transcendência é a de, na nossa dimensão da realidade, tudo depender de fórmulas químicas e equações matemáticas, que consubstanciam uma Física omnipotente e omnipresente. Quanto à omnisciência é coisa que nunca é alcançada, mesmo pela mais poderosa das criaturas. Aquela que tem a inconsistência de um qualquer super-herói!

(DIM) «Os Castelos Medievais» de Martin Becker e Sabine Bier (2018)


Ao chegar à adolescência, nos finais da década de sessenta do século passado, estava a ser disponibilizada uma interessante coleção de livros de divulgação sobre como era a vida quotidiana num muito diversificado número de civilizações desde a Grécia Antiga à Roma Imperial, não esquecendo as sempre exaltantes sociedades egípcias no tempo dos faraós ou da Inglaterra na época de Shakespeare.
Recordei esses livros a propósito deste documentário de mais de hora e meia, dividido em duas partes, em que se percorrem os quatro cantos da Europa para revelar como era o modo de construir e viver nas dezenas de milhares de castelos por ela disseminados ao longo da Idade Média.
Infelizmente os autores do documentário não vieram para cá dos Pirenéus perdendo a oportunidade para recorrerem a construções capazes de lhes reiterarem as teses.
Os primeiros castelos eram feitos de madeira e o senhor feudal, os membros da família, os artesãos e os servos ainda partilhavam o espaço exíguo no primeiro piso, dado que o térreo destinava-se aos animais por estes proporcionarem o aquecimento por condução e convexão muito útil nos meses mais frios do ano. As torres começaram depois a emergir para, do seu alto, os castelões demonstrarem o estatuto social acima de todos os demais, e aproveitando para delas acautelarem as possíveis ameaças vindas das vizinhanças do domínio.
A violência incrementou-se com a chegada do novo milénio: os senhores feudais guerreavam-se constantemente entre si para aumentarem a dimensão dos domínios, e contestarem os propósitos centralizadores dos autoproclamados imperadores, reis ou outros títulos nobiliárquicos, que apostassem em acrescentá-los ao número dos seus vassalos. Os castelos ganharam sofisticação e complexidade, até porque as armas capazes de os destruírem tornaram-se bastante mais eficazes. Às tantas não bastavam as sólidas muralhas, os fossos em seu redor e as pontes levadiças para que as catapultas e os canhões demonstrassem a iminência de uma nova era, aquela em que a autonomia dos senhores feudais se subordinaria ao poder central sob pena de se verem esmagados.
Entrados na segunda metade do milénio os castelos deixam de ser relevantes, porque todas as decisões são transferidas para as cidades, que florescem por todo o lado. Abandonados em grande parte, os castelos só voltarão a recuperar importância, quando os escritores do romantismo novecentista os vieram mistificar enquanto locais admiráveis, dignos dos maiores encantamentos.