sábado, abril 29, 2017

(DL) «Soldados de Salamina» de Javier Cercas

Rafael Sanchez Mazas não era flor que se cheirasse: ainda andava Franco a iniciar a carreira militar, já ele e José Antonio Primo de Rivera estavam a inventar o fascismo à espanhola, criando  a mal afamada Falange.
Rivera foi morto durante a breve República nunca chegando a antever o sucesso das ideias excêntricas, que quase ninguém acreditava virem a ser aplicadas a uma Espanha às avessas com a instituição monárquica. Mas, morto Sanjurjo, que era quem se previa liderar o golpe militar de 1936, e sem ideias próprias que lhe jorrassem da cabeça, o futuro tirano espanhol “comprou” as da Falange e adaptou-as de acordo com as suas conveniências pessoais.
Quando a  ditadura prevaleceu, Mazas ainda conseguiu ser ministro, mas acabou depois nomeado para aquele tipo de cargos inócuos, que iludiam os detentores quanto ao seu poder, mas nada representavam na nova realidade. Com tempo livre o ideólogo dedicou-se à Literatura, com estilo datado, mas com algum talento, até reconhecido por quem engrossava as hostes oposicionistas.
Mazas também gostava de contar o seu caso pessoal: no fim da Guerra, quando os franquistas empurravam as hostes republicanas para além Pirinéus,  estas decidiram organizar um fuzilamento de vinte peixes graúdos dos adversários entre os quais se contava ele próprio.
Conseguindo escapar com meros ferimentos, fugiu para bosque próximo, onde os falhados carrascos o perseguiram. Um deles encontrou-o escondido num buraco, pensou um instante e, quando de perto lhe perguntaram se estava por ali o foragido, negou. Mazas devera, pois, a salvação a um soldado vermelho.
Esta história interessou Javier Cercas, que dela quis fazer um ensaio ou um romance tão próximo quanto possível com o sucedido. Por isso mesmo, com a ajuda de outro escritor, Roberto Bolaño, partiu à procura desse soldado para lhe perguntar o motivo daquele gesto compassivo.
Após porfiada busca encontra-o num lar de idosos em Dijon e temos assim a oportunidade de conhecer Miralles, um homem notável que não lhe bastara  lutar pela liberdade na sua terra, também integrara as hostes de desertores da Legião Francesa, que se tinham revoltado contra as autoridades de Vichy e haviam conquistado vários fortins no deserto, naquelas que terão sido das primeiras vitórias aliadas no norte de África. Não contente com tais feitos seria dos primeiros a entrar na País liberta em 1945 num dos tanques de Leclerc.
O romance de Javier Cercas consegue prender pela sua natureza ficcional inovadora: além de conhecermos personagens notáveis, que viveram de facto, também acompanhamos a construção progressiva da estrutura narrativa.
Deixa assim de ser mais um romance sobre a Guerra Civil Espanhola para se tornar numa dissertação sobre os motivos que levam os homens a agirem tão contrariamente ao que deles se espera nas alturas mais críticas.

sexta-feira, abril 28, 2017

(A) Voltar para trás 130 anos... e apreciar!

Esta tarde fomos viajar no tempo subindo ao topo de Seinpostduin, então a maior duna de Scheveningen. Do alto do miradouro, olhámos para a praia tal qual se apresentava aos observadores de 1881. Virando-nos 180º estava a cidade de Haia na mesma altura.
O trompe l’oeil revelou-se tão bem conseguido que, após a ilusão inicial, olhámos melhor para o enorme telão que nos rodeava e confirmámo-lo como uma pintura imensa a ocupar 1600 m2, com 14 metros de altura, outros tantos de areias da praia a separarem-nos dele e um diâmetro total de 120 metros nos seus 360º.
Apeteceu ali ficar para uma apreciação demorada de cada pormenor: os barcos na praia, os que navegavam ao largo, o exercício de um batalhão de Cavalaria, a mulher do autor instalada no areal com o seu cavalete e protegida do sol pela sombrinha branca, as aves (enormes em evidente erro de perspetiva) a sobrevoarem-nos nos céus, as cenas do quotidiano nos bairros de pescadores, os hotéis de luxo já instalados a norte. E tantos, tantos outros detalhes, que Hendrik Willem Mesdag , a esposa Sientje  e um conjunto de  colaboradores ligados à Escola de Haia, levaram quatro meses a criar.
Logo na abertura ao público o Panorama Mesdag foi visitado por um atento Vincent van Gogh, que comentou:  "A única coisa errada sobre esta pintura é que não há nada de errado com ela."
Hendrik e Seintje só tinham tido um filho que, aos oito anos, morreu de difteria. O que levara a jovem mãe a iniciar-se na pintura, que até então só deixara como atividade exclusiva do esposo, tornando-se-lhe doravante ativa colaboradora. Este tomara como tema de estimação dos quadros os motivos marítimos, mas de forma muito distinta de Turner, que era bem mais epopeico e possuía paleta de cores bem mais expressiva.
Quer com a chegada dos navios a porto, quer com os efeitos de uma tempestade nos que estavam na praia, quer enfim na muito glosada cena de naufrágio, Mesdag ficou para a História da Arte como um pré-impressionista com particulares ligações à escola de Barbizon.
Embora criticado como artista menor nos Países Baixos do seu tempo uma medalha de ouro conseguida no Salão de Paris tirou espaço de maledicência aos detratores, que passaram a reconhecer-lhe o valor.
Quer nos quadros expostos no rés-do-chão, quer depois no acesso ao «miradouro» do primeiro andar é inevitável confirmar esse talento e a atenção dedicada aos pormenores mais imaginativos para credibilizar a hábil utilização da perspetiva na eficaz ilusão de tridimensionalidade.
Curioso ainda o filme projetado no percurso para a saída sobre o restauro operado no telão a partir de 2010. A degradação, acelerada pela construção do adjacente Hotel Hilton, ameaçava-o colapsar.
Se Mesdag e os colaboradores mal tinham passado os cento e vinte dias na sua criação, a recuperação da obra com recurso aos mais avançados recursos tecnológicos, demorou vários anos. O que cumpre a velha regra de ser muito mais difícil, caro e demorado a recuperação do que se estragou, do que o tempo levado a construi-lo...


(DL) Dos labirintos rodoviários às pocilgas da margem sul com brancuras assassinas de permeio

Há decisões suscetíveis de nos serem fatais, mesmo se ponderadas nos seus riscos e oportunidades. Se fosse a Razão a comandar-nos não hesitaríamos em apostar na prudência, no recuo. Só que as emoções também contam e são elas a orientarem-nos na direção errada. Seguir em frente, mesmo que as consequências se tornem imprevisíveis.
Essa teimosia era muito minha no tempo em que, regularmente, fazíamos em família longas viagens de carro para além-Pirinéus. E, numa dessas vezes, quando pretendia chegar a casa nessa mesma noite, perdi-me na saída de Madrid tomando a direção das Astúrias sempre a desejar que milagrosa placa de direção nos devolvesse à ocidental praia lusitana. Era na época em que não existiam ainda telefones portáteis nem computadores pessoais, quanto mais GPS’s. O único apoio residia nos confusos mapas onde as cores das estradas todas se sobrepunham.
Resultado: foi uma das primeiras vezes na vida em que, a contragosto, me vi obrigado a recuar. Mas já a viagem se transformava num martírio, mesmo partilhando o esforço ao volante com a cara metade.
Em Mérida parámos uns minutos para descansar, mas estávamos ambos naquele estado em que nem conseguíamos verdadeiramente descansar (até pelos mitos urbanos sobre os assaltos a carros durante a noite) nem aguentávamos os olhos abertos por muito tempo.
Ainda distante o tempo de contarmos com autoestradas lá atravessámos a fronteira, prosseguindo madrugada fora. Quando, enfim, apanhámos o troço entre a Marateca e Lisboa, julgámos facilitada a tarefa com a atenção cingida ao trânsito nas nossas costas. Doce engano: na área de serviço de Setúbal voltámos a parar para lavar a cara com o que julgávamos ser a água resultante do gelo derretido da pequena arca em que trouxéramos o que beber e comer durante a viagem. Não demos pelo facto de uma garrafa de sumol se ter aberto e misturado com o precioso líquido. O resultado foi chegarmos à Costa da Caparica com a cara peganhenta num agravamento insuportável do nosso incómodo.
Vem isto a propósito do filme rodado pelo islandês Baltasar Kórmakur baseado num caso real ocorrido nos anos noventa. Rob, o chefe da expedição incumbida de levar meia-dúzia de clientes ao pico mais elevado da Terra, tinha a perfeita noção de perigar a vida se o regresso ao campo de apoio fosse para além das catorze horas. E quase todos tinham ali chegado, tirado fotografias e fixado as respetivas bandeiras.
Sobrara um milionário americano com problemas na vista já conformado com o fracasso e Doug, um carteiro australiano, que por três vezes acumulara economias para financiar a viagem, falhando as duas anteriores a meio caminho.
Agora conseguira escalar mais alto, até quase ficar com a meta à vista. E, apesar de instado a regressar, exige seguir em frente, mesmo que cada passo constitua um martírio. Por isso Rob pondera um instante no que fazer: deixá-lo prosseguir num resto de viagem só de ida, ou ajudá-lo a lá chegar e amaprá-lo na descida na expetativa de, por milagre, o dia se prolongar para além do possível.
Nesse instante ficou decidida a sua morte, porque consegue arrastar o companheiro até ao topo, mas já não sobejam forças para o retorno. A teimosia insensata do australiano explica três das mortes subsequentes, não só a de ambos, mas de outro alpinista, que arriscara voltar a subir para os ajudar.
Num filme menor, mas carpinteirado com grandes recursos de produção, essa lição é a mais importante, porque aplicável a momentos decisivos das nossas vidas, como pude constatar nesse episódio vivido na Espanha dos anos oitenta. Porque são frequentes as vezes na vida em que desejamos algo com muita determinação, mas sentimo-lo escapar-se por não serem propícias as circunstâncias. Felizmente sempre que decidi avançar com a disposição de dar o peito às balas saí-me bem. Por aleatória sorte, que bem poderia ter decidido desiderato contrário. Mas também reconheço verdade na afirmação de ser necessário muito trabalho para que ela resulte. Sobretudo no que à profissão diz respeito. Porque não foi rara a ocasião em que vi quem arriscasse demais, sem ter o potencial para corresponder a todos os imponderáveis e tivesse fracassado com estrondo, mesmo com perda da própria vida.
Não tendo diretamente a ver com isso, surgiram-me hoje várias referências, entrevistas e comentários ao novo romance de Bruno Vieira do Amaral, a quem parece prometido novo sucesso de vendas de boas críticas. Em «Hoje Estarás Comigo no Paraíso» ele parte à procura de um primo, encontrado morto numa pocilga, assassinado com a mesma faca usada pelos magarefes para sacrificarem os porcos.
O que terá feito decidir João Jorge a, naquele longínquo dia de 1985, intentar o roubo dos porcos de uns vizinhos cabo-verdianos na Baixa da Banheira? É a resposta que o autor vai procurar junto de quem o terá conhecido. Se de início pensava dar-lhe forma jornalística, ou de ensaio, meio histórico, meio sociológico, a exiguidade de informações obrigou-o a desviar-se para o lado da ficção. Ciente de que, muitas vezes, a imaginação constitui atalho mais fiável para alcançar a verdade. Sobretudo quanto ao que o passado do defunto em Angola nos seus primeiros anos de vida terá influído para tomar a infausta decisão de apossar-se de propriedade alheia.
Tal como o Rob do filme, João Jorge deverá ter tido disponibilidade bastante para ponderar dos prós e contras de fazer o golpe juntamente com outro amigo. Não poderia imaginar que, descoberto em flagrante logo seria degolado.
Em tal estória o autor poderá ter aproveitado para, não só se conhecer melhor, mas também aprofundar as poucas reminiscências retidas pelos familiares, vizinhos e outros desconhecidos, sobre esse rapaz de quem não subsiste sequer uma campa para conservar-lhe a memória.
O romance constitui, pois, uma espécie de resgate da identidade de quem, vivendo tão pouco, recupera de alguma forma a existência sob a forma desta evocação empreendida pelo primo a trinta anos de distância.

quinta-feira, abril 27, 2017

(AV) O deslumbramento de Paul Klee em terras tunisinas

Não sei se Paul Klee terá imaginado a Tunísia como espaço suscetível de lhe provocar grandes expetativas. Nesse ano de 1914, em que a guerra não tardaria a impossibilitar grandes deambulações, decidira regressar a Itália em busca da inspiração, que lhe andava a falhar. Fazia-se acompanhar de dois amigos, August Macke e Louis Moilliet, também carentes de novas paisagens com que vissem estimulados os impulsos criativos.
Visitadas as cidades já conhecidas, quando aí estivera na viragem do século ao acabar os estudos em Belas Artes, avançara mais para sul ao encontro da Sardenha. E do outro lado do Mediterrâneo a Tunísia surgiu na continuidade do percurso até então cumprido.
A primeira cidade a que aportaram foi Sidi Bou Saïd, que logo deixou boquiaberto o futuro autor da Teoria das Cores. Porque foram elas, que logo lhe saltaram à vista, associadas à luz e às linhas arquitetónicas. Tratou-se de tal choque emocional, que viu tudo à volta incutir-lhe o encontro com uma profunda identidade apenas pressentida. E expressou-o no seu diário.
Essas inéditas sensações vão prosseguindo nas sucessivas escalas: na medina de Tunes algo de tempos remotos fazem-no imaginar-se na atmosfera mágica das Mil e Uma Noites.  Por isso desenha incessantemente no seu caderno de apontamentos, e deseja voltar à pintura, contentando-se por agora com aguarelas, que entende como esboços das obras a criar no regresso ao atelier. Porque conclui ultrapassada a crise que quase o fizera duvidar se estivera certo quando preterira a música em favor da pintura, apesar de lhe assinalarem o talento no violino. A própria geometria das composições tende a orientar-se para as formas, que nunca mais deixarão de lhe dar estrutura aos quadros.
Kerouan é, porém, onde as emoções recolhidas pelos sentidos se expressa em superlativa dimensão. A cidade rodeada de muralhas, onde outrora se encontravam as caravanas dos comerciantes do deserto, imbuem-no no mistério de um tempo parado propício à reflexão.
No retorno a casa ele atribui à viagem pelo norte de África o detonador de algo de diferente em si: uma nova linguagem em que se funde com as cores em que se vira mergulhado e presentes nos tapetes cujos motivos também surgirão replicados, mesmo que convenientemente transformados nalgumas das telas futuras. As trinta aguarelas e os treze desenhos , que trouxera na bagagem serão uma espécie de memorandos de tudo quanto aprendera sobre si e tudo quanto vivenciara.

quarta-feira, abril 26, 2017

(DIM) «Evereste» de Baltasar Kormakur (2015)

Se vivêssemos naqueles longínquos anos em que as televisões ainda eram a preto-e-branco e só existiam quanto muito dois canais, teríamos acesso àqueles cinemas com imensas plateias e ecrãs gigantes para o Cinemascope.
O entretenimento puro, com recurso a grandes meios de produção e atores e atrizes muito conhecidos a atropelarem-se no genérico, garantia grandes espetáculos para a família que se de lá não saía com grandes dilemas morais ou filosóficos, pelo menos descontraía o bastante para aguentar a semana seguinte a prosseguir o seu labor em prol da «Pátria».
«Evereste» seria o filme adequado para o ecrã do antigo Monumental. E constituiria decerto um grande êxito de bilheteira.
Pegando na história verídica de uma expedição ao mais alto cume do mundo, começa por correr relativamente bem com um conjunto de alpinistas a serem bem sucedidos na tentativa. Mas logo se transforma num drama, quando a insensatez de quem, mesmo a desoras, força o desejo de o alcançar, se soma a fortes tempestades, que vão provocando sucessivas vítimas.
Não é um filme que entusiasme até porque a realização é suficientemente inábil para percebermos logo de início tratar-se de uma viagem sem regresso para o líder da expedição, quando  se despede da mulher grávida na Nova Zelândia. Mas não se pode exigir mais de uma história condicionada pelos constrangimentos do local onde é suposto passar-se e pelo respeito para com a «very true story» em que se baseia.
É claro que será sempre um mistério a resposta à sempiterna questão de se saber porque, à custa de tanto sofrimento e risco de vida, há quem continue a fazer da conquista deste cume o grande objetivo da sua vida. E convenhamos que a resposta de Mallory («Porque está lá!) pode ter alguma piada, mas nada diz de concreto.
Os argumentistas alhearam-se completamente de fazer dessa questão um pretexto para tornar mais complexa uma estória demasiado simples. E foi pena!


(DL) Recordar Gabo: Um dia depois de sábado (3)

Todos os dias o padre António ia à estação ferroviária para a chegada do único comboio que ali parava, quase sempre sem que ninguém dele descesse ou nele subisse. Quão diferente era a Macondo atual em comparação com os tempos em que os militares ainda não tinham metralhado os trabalhadores das plantações de bananeiras e nos carris deslizavam composições com muitos vagões atrelados, todos eles carregados de frutos.
Naquele sábado o calor sufocava-o como até então nunca sucedera e ele ainda estava aturdido com a suspeita, que o tomara na casa de Rebeca. Seria que a morte dos pássaros correspondia a um sinal quanto ao iminente Apocalipse?
Na cabeça agitavam-se-lhe as cansadas meninges para recordar se no livro bíblico em causa existiria alguma referência a tal tipo de fenómeno.
No céu, singularmente limpo, não havia o mínimo sinal de uma ave. A associação de ideias que o levava a recordar os tempos de jovem seminarista resultou numa nova revelação: «O Judeu Errante». Foi precisamente no instante em que o comboio apitou para assinalar a entrada na estação que o vieram chamar para dar a extrema-unção a uma moribunda. Por isso não assistiu ao espantoso momento em que um rapaz, vendo-o de uma das carruagens concluiu ali haver um hotel se até um cura tinha. Estando com fome julgara ter tempo para almoçar enquanto se prolongava a pausa do transporte naquele nenhures.
Enganou-se claro: ainda mal lhe tinha chegado a sopa, quando voltou a ouvir o apito. Desesperado correra para de onde viera o alerta mas em vão: já o comboio se afastava para a estação seguinte. E, pior ainda, com os documentos coligidos com tanto esforço para que a mãe se reformasse do cargo de professora da terra donde viera.
Sem outro remédio o forasteiro viu-se obrigado a pernoitar no modesto quarto de hotel até que outro comboio o pudesse dali levar no dia seguinte.
Nessa mesma noite o padre António viu-se acometido de um ataque, que o fez acreditar na forte possibilidade de nunca mais se vir a levantar da cama..
Estranhamente, na manhã seguinte, recobrara a energia e já consolidara o sermão a ofertar aos paroquianos na missa desse domingo. Que pressentia vir a ser o do dia mais importante da sua vida, porque a morte dos pássaros, mesmo dos três encontrados no corredor, obrigava a uma expiação.
Apesar da proprietária do hotel o avisar que quase ninguém ia à missa, porque o velho padre estava tonto e dizia andar a ver o diabo, o forasteiro decidiu matar o tempo ali se dirigindo:
“Verificou que era uma povoação moribunda com ruas intermináveis e poeirentas, e com casas de madeira com tetos de zinco, que pareciam desabitadas. Era uma terra com ruas sem erva, casas com janelas e um céu profundo e maravilhoso, ainda que  com um calor asfixiante.
Pensou não haver sinal, que distinguisse o domingo de qualquer outro dia.
Enquanto caminhava pela rua deserta recordou o que a mãe lhe costumava dizer: todas as ruas de qualquer terra conduzem inexoravelmente à igreja e ao cemitério.
Nesse instante desembocou numa pequena praça empedrada com um edifício caiado com uma torre, um galo de madeira na cúspide  e um relógio parado nas quatro e dez.”
É para ele e para um pequeno número de fiéis que o padre António profere o melhor discurso de toda a sua vida, sem vaidade, sem soberba. Apenas pelo regozijo de fundir o seu espírito no de Nosso Senhor.
Chamada por Argeñida, que lhe veio dizer o quanto estava louco o padre ao atribuir ao Judeu Errante a morte dos pássaros, Rebeca apressa-se a acorrer à igreja, eivada de profundo terror. A tempo de o ouvir:
“Juro que se atravessou à minha frente esta madrugada, quando regressava de administrar os santos óleos à mulher de Jonas, o carpinteiro. Juro que tinha o rosto imbuído da maldição do Senhor e que deixava cinzas fumegantes como rasto.”
O sermão é tão impressivo que toda a aldeia acorre a ouvi-lo. E ele manda o acólito recolher o dízimo sob o argumento de ser necessário para que se mande embora o Judeu Errante. E, em surdina, diz-lhe que, no fim entregue as esmolas recolhidas ao forasteiro para que possa comprar um chapéu que substitua o de aspeto miserável, que não chegara a tirar da cabeça durante a cerimónia.

(S) O «Stabat Mater» de Pergolesi numa das versões de Jarousski

A exemplo do que viria a acontecer a Mozart com o seu «Requiem», Pergolesi compôs a sua «Stabat Mater» pouco antes de morrer de tuberculose com apenas 26 anos.
Embora mal recebida na época, acusada de excessivo sentimentalismo, que tenderia a distrair os ouvintes da devoção, a obra ganharia particular aceitação nos três séculos desde então ocorridos. Porque é expressiva, empática, simples e, ao mesmo tempo, moderna.
O contratenor Philippe Jarousski tem-na interpretado com assaz frequência, acompanhado das mais diversas sopranos. Neste concerto em que contracena com a húngara  Emöke Barath, consegue uma cumplicidade particularmente feliz na conjugação das vozes, ademais realçadas pelo maravilhoso cenário da Igreja da Trindade no Castelo de Fontainebleau.
Vale a pena dedicar quatro minutos de atenção, sobretudo auditiva, para assistir a este clip notável.

(DL) O que lemos e o que recordamos

Se gosto tanto de ler é  por acontecerem -  amiúde - momentos de verdadeira magia ao traduzir as palavras de outrem em exercícios de imaginação recriados por esconsas reminiscências. Evocam não tanto os acontecimentos do passado, tal qual realmente decorreram, mas como desejaria que assim tivessem sucedido, melhores houvessem sido as circunstâncias. 
Um exemplo concreto: de manhã estava nas últimas páginas de um romance de Javier Cercas em que conta o convívio com Roberto Bolaño, quando este acabara de receber notícia da doença incurável, que depressa lhe abreviaria a demasiado precoce vida.
É ele quem lhe fala de um singular personagem, conhecido num parque de campismo há mais de vinte anos, que passava os meses de verão sem mudar de indumentária: o calção de banho a negar-lhe por completo a almejada nudez. Na pele ostentava as cicatrizes de ter combatido na Guerra Civil de Espanha pelos vencidos, e no subsequente conflito mundial pelos vencedores.
Miralles era um homem com que mais ninguém se poderia comparar tão original fora o percurso pelas muitas décadas vivenciadas. Por isso estimulava tão significativamente o lado criativo do novo amigo. Bolaño puxava-lhe pelas memórias ciente de, mais cedo ou mais tarde, o transmutar num personagem ficcional dos seus romances.
Uma noite levantara-se de madrugada e ouviu algo que o fez aproximar-se da roulotte do amigo. Ali o viu a dançar um pasodoble, que andava sempre a trautear, e levando pelo braço a jovem prostituta, que se tornara sua amante.
O instante era tão estranho e belo, que o escritor escondeu-se atrás de um carro para melhor o apreciar. Mas depressa compreendeu o quanto cometia sacrilégio face a algo cujo perfeição só respeitava a quem o protagonizava. Por isso afastou-se dali.
Estes poucos parágrafos em que Cercas fala do episódio da vida do amigo suscitou-me de imediato um conjunto de associações de ideias, que tanto envolveram um dos quadros mais belos de entre os que Paula Rego assinou, como a evocação da recôndita infância, quando as noites de luar me pareciam espantosas em promessas e mistérios. Por exemplo aquela em que, ao colo do meu pai, percorri a azinhaga entre a quinta do meu avô e a estrada que me devolveria a casa.
A minha irmã fora levada à RTP pela tia Maria do Carmo para comparecer num concurso infantil e para que toda a família acompanhasse tão grande motivo de orgulho do meu pai, ele cuidara de instalar uma televisão na maior divisão da casa do patriarca do meu ramo materno, ali se juntando tios, primos e outros parentes próximos, todos eles a habitarem as redondezas e a maravilharem-se com os prodígios da moçoila.
Dessa participação mediática quase nada me lembro: guloso como sou só me ficaram na memória os chocolates por ela recebidos e comigo partilhados. Mas aquele átimo do que fui, registou sobretudo o azul maravilhoso da abóbada acima da minha cabeça e o brilho da Lua a acompanhar-nos passo a passo noite adentro.
O que se passou ou o que poderia ter-se passado? Não me admiraria, que essa nem sequer fosse noite de Lua Cheia. Ou que, depressa cansado com o meu peso, o meu pai me tivesse forçado a prosseguir caminho pelos próprios pés. Mas a realidade endeusada, que de então ficou, voltou a ganhar laivos encantatórios com o estímulo lavrado pelas palavras escritas do escritor espanhol.

(DIM) «A Ponte dos Espiões» de Steven Spielberg

Tenho por mim que o Steven Spielberg não sabe fazer filmes maus por muito que me seja difícil esquecer a cena do primeiro «Parque Jurássico» em que a Laura Dern precisava de ter um braço com uns três metros de comprimento para alcançar o gelado, numa altura em que começavam a acontecer os primeiros ataques dos  velociraptores e do tiranossauros.
Igualmente assumo não haver ator dos tempos presentes, que melhor replique James Stewart naquele tipo de papéis caprianos cujas características superlativas eram a coragem e a integridade.
Dito isto fica esclarecido o meu relativo agrado com «A Ponte dos Espiões». Passado entre 1957 e os inícios dos anos sessenta baseia-se em factos reais, que envolveram a troca em Berlim de um conhecido espião russo por um piloto norte-americano. Existe um cuidado irrepreensível nos cenários e no guarda-roupa bem como interpretações excelentes de Tom Hanks, a fazer de advogado de defesa e de Mark Rylance enquanto coronel Abel.
Mas - lá vem o tal mas! - irritam-me os filmes, que insistem em mostrar os espiões da CIA como antipáticos, enquanto os do outro lado surgem como verdadeiros facínoras.
Claro que o coronel Abel escapa a essa fatal caracterização, mas pode-se considera-lo como a exceção a confirmar a regra. Até porque é essa distinção, que alimenta o fio narrativo do filme ao alimentar uma simpatia crescente entre Donovan e ele.
Embora não duvidemos do conservadorismo político do advogado, norteia-o a ética de cumprir os valores constitucionais de garantir a mais competente defesa possível ao pior dos criminosos. E, numa altura em que imperava a histeria, que se traduziria no martírio do casal Rosenberg, os anticomunistas primários não se contentavam com outro veredicto do tribunal, que não fosse a condenação à morte.
Donovan usa a inteligência para colocar a questão fundamental: e se um dos nossos espiões for apanhado do lado de lá, que moeda de troca poderemos utilizar?
É essa capacidade de não se ater só ao presente e adivinhar os imponderáveis do futuro, que evita o pior e o limita à condenação a 30 anos de prisão,. Por isso mesmo Donovan converte-se no inimigo de estimação dos pasquins mais atiçados pelo medo do «vêm aí os russos».
E, meu dito, meu feito: meses depois Gary Powers é capturado quando andava a fotografar território soviético a 20 mil pés de altitude. A previsão de Donovan revelara-se judiciosa com ambos os lados interessados em recuperar os respetivos agentes. Com Donovan a somar-lhe mais um resgatado adicional na pessoa de um jovem estudante norte-americano capturado do outro lado para ser utilizado como pau de uma engrenagem já por si bastante complicada de movimentar sem mais entropias.
Não terá sido dos melhores Spielbergs, mas, enquanto entretenimento agrada q.b. E que isso ajuda muito, lá isso sim! - di-lo-íamos se fosse essa a pergunta que Abel nos fizesse...

 

terça-feira, abril 25, 2017

(DL) O futuro escritor enquanto jovem em Brody

Considerava-se um francófono do Leste Europeu. Um humanista. Um racionalista com espírito religioso. Um católico com cérebro judeu. Um verdadeiro revolucionário.
Os seus romances tornaram-se clássicos da Literatura: Joseph Roth foi um prosador de talento e, no seu tempo, não havia quem se lhe equiparasse enquanto jornalista na República de Weimar. E foi nessa qualidade que, cheio de entusiasmo, foi viver durante alguns meses na União Soviética, de lá enviando sucessivas reportagens para o «Frankfurter Zeitung», que expressaram o seu sentimento: a Revolução extinguira-se, dando lugar a ruínas flamejantes com muitos bombeiros à volta.
Se até então tudo o conotara com as esquerdas, penderá progressivamente para as direitas, acabando por morrer conservador, monárquico e etilicamente descoroçoado com tudo. Paradoxalmente, ou talvez não, as suas obras maiores aconteceram quando estava nesse limbo entre as ilusões perdidas e as «certezas», que nunca chegaria verdadeiramente a abraçar.
Anos antes, o mesmo jornal já o enviara a Leste, à Galícia da sua infância, outrora parte integrante do defunto Império Austro-Húngaro.
Ele nascera em Brody, em setembro de 1894, em território hoje reconhecido como ucraniano. O pai era negociante em cereais. Mas, um ano e meio depois de se casar, partiu para uma viagem de negócios e nunca mais voltou. O filho nunca o conheceria.
O futuro escritor cresceu numa cidade de província em que os comerciantes eram judeus e os funcionários orgulhavam-se da sua identidade polaca. Quase toda a população falava várias línguas: o iídiche, o alemão, o russo. Sem ter um ambiente cosmopolita, Brody era um entreposto comercial e judiciário.
Entre 1905 e 1913 Roth estudou no liceu local e, obtido o bacharelato, deixou a cidade. No entretanto distinguiu-se como aluno brilhante e com um gosto assumido pela autenticidade.
Como escritor ele integrará o movimento da Nova Objetividade e enquanto jornalista pretenderá fazer de cada reportagem uma obra de arte.
Em muitas das obras futuras ele citará frequentemente o Hotel Bristol, um dos edifícios emblemáticos da cidade, mandado construir por um dos mais proeminentes judeus de Brody no início do século XX. Situado na que era conhecida como a Rua Dourada, concentrava-se-ali o comércio de joias da comunidade judaica. E nela, incluindo o hotel, passa-se relevante parte de «A Marcha de Radetzki», porventura o mais conhecido romance do autor.
Fino observador, discreto e silencioso, Roth retirou muita matéria das quotidianas passagens pelo local para a integrar na sua ficção posterior. Falando um alemão com sotaque austríaco, Roth cuidava das palavras com alma de poeta como se elas acariciassem quem as ouvia, quando as proferia.
Quando descreve Brody lembra-a situada na ampla planície, com escassas elevações de terreno donde, apenas nos dias mais límpidos, se distinguem as longínquas montanhas a leste. A geometria da cidade é por ele descrita como tendo duas avenidas principais, uma rompendo-a de norte a sul, outra de leste a oeste, encontrando-se numa praça central aonde se situava o Mercado. Na gare ferroviária apenas passava e parava um comboio por dia.
O jovem Joseph ainda assistiu à profunda mudança criada na Rua Dourada a partir de 1910, quando os edifícios foram sendo substituídos por outros mais conformes com o estilo da Secessão Vienense. Essa transformação impressioná-lo-ia o bastante para se repercutir na forma de olhar as que depois constataria por onde passaria.

segunda-feira, abril 24, 2017

(S) Midori a tocar Bach no Castelo de Köthen

O que impressiona na música de Bach é a multidão de vozes, que se atropelam nas suas composições, e fenómeno percetível nas sonatas e partitas para um só instrumento. Olhamos para a violinista, neste caso Midori, e não é apenas a sua voz que se expressa pelo correr do arco nas cordas, porque muitas outras emergem.
“A tocar Bach nunca me sinto só”, confessa a intérprete japonesa, que não consegue lembrar-se do momento da descoberta. Porque o ambiente familiar desde início, que a envolveu com esta música profunda e complexa, que nunca se consegue verdadeiramente apreender na essência por muito que se a estude ou toque.
E se ela o faz há muito tempo! Tê-lo-á interpretado em público pela primeira vez, há quarenta anos, quando tinha seis ou sete, e sentia dificuldade perante um ritmo excessivamente lento para a energia própria da criança, que ainda era.
O tempo terá sido também o arquiteto, que a fez imbuir-se do que de indizível a música lhe transmite e procura devolver aos outros. Com uma concentração total: as câmaras rodeiam-na, captam-na dos vários ângulos e são-lhe insensíveis, porque só importam os sons libertados do instrumento, ficando os olhos sempre fechados, embora se contraiam ou distendam com o evoluir da partitura assimilada dentro de si.
Não é preciso acreditar em Deus, nem reivindicar algum tipo de transcendência, para sentir a magia inerente a estes sons. Eles despertam zonas indefinidas do cérebro, que atavismos da genética tornam sensíveis como se nos quisessem transmitir algo perdido lá muito no passado.
Talvez tenha sido esse o motivo porque Midori as quis interpretar no Castelo de Köthen onde, num dos períodos mais criativos da sua vida - porque menos sujeito aos constrangimentos de quem lhe pagava as contas - Bach compôs muitas das suas peças maiores e afinou os conceitos do Cravo Bem Temperado.
Poderia o lugar exercer uma espécie de sortilégio em Midori? Se o sentiu não no-lo disse, mas podemos intui-lo ou não na forma como soa a Partita nº2 em comparação com a conhecida por outros violinistas.