sexta-feira, novembro 29, 2019

Diário de Leituras: Quando Le Clézio foi viver cos os Emberas


Em 1969, J. M. G. Le Clézio está à beira dos trinta anos, quando chega a Panama City e se desagrada com o que a cidade pode proporcionar-lhe. Daí que parta para a fronteira com a Colômbia, ao encontro dos índios Emberas, que adivinha em iminente risco de aniquilamento cultural e com os quais julga capaz de muito aprender. Nomeadamente esse silêncio espesso, profundo, ameaçador, que conseguem fazer reinar à sua volta no meio da densa floresta.
«Haï», que designa o trabalho dos xamãs, quando em contacto com os espíritos só a eles acessíveis, é o título do testamento poético, que testemunha as experiências vividas com essa tribo ao longo de quatro anos. E tão determinantes que, em 2008, quando recebeu o Nobel da Literatura, a ela dedicou o seu prémio.
O livro conta como os índios dividiam o mundo entre duas forças antagónicas: haï seria a da energia, wandra, a da submissão. Mas, rejeitando um modelo de descrição antropológica, Le Clézio estruturou-o involuntariamente de acordo com uma estrutura semelhante ao de uma cerimónia mágica de cura. Ou seja com uma iniciação a Tahu sa, o olho que tudo vê, seguida do canto ou festa cantada (a Beka), culminando no exorcismo do corpo, o Kakwahai. Nesse sentido acaba por ser um livro iniciático com uma frase paradoxal: “um dia saber-se-á que a arte não existe, tão-somente a medicina”. A que é propiciada pelo curandeiro, xamã ou feiticeiro...
Le Clézio apresenta os procedimentos dos Embera como lógicos e naturais em comparação com os das sociedades de consumo, porque incluem rituais de alteração de consciência, cânticos e arte como estratégias destinadas ao tratamento mental do corpo.
Apreciando o relato da nossa distanciada perspetiva conotamo-lo com um tratado de semiologia, ainda que redigido de dentro por um autor empático. Esse universo ameríndio surge-nos como tão longínquo da nossa realidade, que impossibilita uma narrativa, uma intriga ficcional.  Mas podemos encontrar algumas âncoras em páginas como aquelas em que Le Clézio contrapõe a liberdade das mulheres às regras morais das sociedades ocidentais. Nomeadamente quando constata a possibilidade delas escaparem dos homens que deixaram de amar para procurar outro mais do seu agrado, ou abortarem mediante o recurso a bebidas à base de plantas com capacidades abortivas.
É como se, de súbito, dessemos um pulo a uma outra dimensão temporal, que não a nossa...

Diário das Imagens em Movimento: «A Rapariga apanhada na teia de aranha» de Fede Alvarez


Confesso à partida o preconceito: não tenho qualquer simpatia por David Lagercrantz enquanto autor dos sucedâneos da trilogia de Stieg Larsson, a ele encomendadas pelos herdeiros legais do autor. O que eles representam é execrável: depois de estigmatizarem o filho ou irmão, ostracizaram sem pinga de escrúpulo a companheira do escritor, que lhe dera todo o apoio e com ele vivera anos a fio, mas sem ser reconhecida nos seus direitos por uma legislação absurda.
Foi, pois, com essa reserva mental, que me dispus a ver o filme estreado o ano transato e tendo Lisbeth Salander como personagem principal. E, afinal, nem sequer tive de fazer o mínimo esforço para considerar que aquilo é demasiado mau para ser verdadeiro.
A intriga mete espiões e gangs de criminosos com riscos de apocalipse nuclear pelo meio, mas condimenta-o com estórias de incesto e de ódios fraternos, que desde início se adivinham. O realizador, o uruguaio Fede Alvarez, até então autor de filmes desinteressantes, decidiu que a dinâmica do projeto passaria pela multiplicação alucinogénia de planos com durações da ordem dos centésimos de segundo. A banda sonora é feita do pastiche entre as compostas por John Barry para os filmes de James Bond e as de Bernard Herrmann para os de Hitchcock. E os atores e atrizes, todos ilustres desconhecidos (ou merecedores do correspondente anonimato) revelam  poses esfíngicas onde não perpassa qualquer emoção ou, pior, macaqueiam (no caso dos vilões!) os tiques corriqueiros nos filmes de orçamentos bem mais comedidos.
Tudo aquilo soa a falso, a inverosímil. Quem pode crer que a pobre da Lisbeth caia de alturas assassinas, leve com estilhaços de explosões, desperte de injeções bastantes para pôr elefantes a dormirem horas a fio, e se levante sempre fresca que nem uma alface para salvar o mundo de quem pretende dar-lhe lamentável fim?
Poder-se-á argumentar que o mesmo costuma passar-se com 007 e até achamos piada! É verdade, mas havendo um original bem feito para quê consumirmos contrafações manhosas?
E que dizer, igualmente, dos dotes de Lisbeth como hacker. Mesmo em espaços destruídos por pavorosos incêndios as câmaras ali por dela deixadas sabe-se lá quando continuam a dar-lhe as informações mais precisas nos momentos adequados.
No tempo do fascismo chegavam a aparecer nas plateias uns quantos chatos, que proclamavam alto em alto e bom som ser um barrete o que se via na tela. Que falta fazem hoje numa altura em que o pessoal da pipoca e da coca-cola tudo digere sem ponta de ceticismo...

quarta-feira, novembro 27, 2019

Diário de Leituras: O novo livro de Vandana Shiva


Há várias décadas que temos acompanhado a incansável militância de Vandana Shiva contra a indústria química, oriunda dos laboratórios de Hitler e dos campos de concentração para ser aplicada na falsa «Revolução Verde». Apesar dos seus esforços a ativista indiana viu as terras do seu Punjab natal arruinadas, com o desaparecimento do solo fértil e das águas, que os irrigavam, por ação dessa criminosa aplicação dos produtos que as grandes multinacionais promoviam como facilitadores de colheitas incomparavelmente maiores do que as obtidas mediante os métodos tradicionais.
Melhores resultados conseguiu quando denunciou as mesmas empresas por buscarem alternativa aos seus lucros em queda  na apropriação das sementes de milhares de plantas mediante patentes, que obrigariam os seus utilizadores a pagarem-lhes ilegítimos direitos. Toda a propaganda mentirosa sobre as sementes geneticamente modificadas integrou o processo de colonização, que Vandana Shiva não se cansou de inculpar colaborando com quantos, a nível internacional, combateram esse fraudulento embuste.
É essa mesma colonização, que escalpeliza no seu novo livro - «Oneness Vs The 1%: Shattering Illusions, Seeding Freedom» - focalizado nessas empresas não pertencentes a indivíduos facilmente identificáveis já que se escondem por trás de grandes empresas de fundos de gestão de ativos como são a BlackRock ou a Vanguard. São elas que, valendo triliões de dólares, estão por trás do financiamento dos grandes incêndios na Amazónia por ansiarem pela acelerada financeirização da Natureza.
Vandana Shiva não se exime de apontar o dedo a inimigos de estimação muito concretos e um deles é Bill Gates cuja Aliança para uma Revolução Verde em África opera com esses mesmos objetivos. Porque são eles a explicar porque fez intenso lobbying pela alteração das legislações africanas, que ilegalizam o armazenamento de sementes de forma a facilitar o monopólio na sua venda e na dos produtos químicos a com elas aplicar. Ele anda de mãos dadas com a Monsanto (cuja compra pela Bayer apenas teve por objetivo facilitar a sua expansão para a renitente Europa!) e procura implementar o passo decisivo para o sucesso da engenhosa estratégia colonizando as nossas mentes, neutralizando a nossa vontade de a combater...

terça-feira, novembro 26, 2019

Diário de Leituras: «HHhH» de Laurent Binet


Em 27 de maio de 1942 um atentado em Praga feriu gravemente o mais terrível dos nazis - Reinhard Heydrich - que não só criara os serviços secretos do Reich e os Einsatzgruppen incumbidos de iniciarem o genocídio de judeus e comunistas a leste mas também concebeu a Solução Final concretizada nas câmaras de extermínio em massa nos campos de concentração. Olhando para a biografia daquele que era o Protetor na antiga Checoslováquia encontramos a sua intervenção ativa em todos os momentos da história alemã entre a ascensão de Hitler ao poder e a sua morte, resultante da septicemia decorrente dos ferimentos contraídos na conjura. Na Noite de Cristal está lá o seu dedo. Idem na Noite dos Facas Longas ou na falsa invasão polaca, que garantiu o alibi para a decisiva invasão de 1 de setembro de 1939. Em suma aquele que era considerado o «cérebro de Himmler» poderia estar destinado a voos ainda mais altos acaso não tivesse ficado pelo caminho. Pelo menos é isso que conjeturam alguns imaginativos estudiosos da Segunda Guerra capazes de suporem a substituição do paranoico Hitler por este ambicioso lugar-tenente, dotado de uma inteligência organizativa capaz de evitar o caos dos últimos anos do regime e dificultar a sua derrota.
Quando iniciamos a leitura do livro já conhecemos de antemão o final: Gabčík e Kubiš conseguirão tornar a Operação Antropoide num enorme êxito, mesmo pagando com a vida a eliminação do detestado inimigo. O que tem de mais interessante este projeto de Laurent Binet, que por ele ganhou o Goncourt de 2010 atribuído ao primeiro romance, é a sua construção. Verdadeiro work in progress, vamos acompanhando a acumulação de informação colhida pelo autor, em paralelo com as vicissitudes da sua vida pessoal, e partilhando as dificuldades nas partes mais difíceis de passar ao papel. Particularmente complicada revelar-se-á a descrição das circunstâncias em que decorreu o atentado e, depois, o cerco aos seus autores, percebendo-se a relutância de Binet em ser totalmente fiel aos documentos a eles dedicados ou deixar-se enredar na tentação ficcional para adivinhar os estados de ânimo dos conspiradores.
Existe, igualmente, a desconfiança de Binet para com outros autores envolvidos na abordagem do mesmo tema, destacando-se a assumida antipatia para com «As Benevolentes», o volumoso romance de Jonathan Littell que tantos elogios colhera quatro anos antes com a efetiva efabulação em torno de um personagem igualmente envolvido em muitos dos acontecimentos relacionados com o Holocausto e acrescentando-lhes a Batalha de Estalinegrado ou o cerco final a Berlim.
Embora quase nada de novo traga sobre um acontecimento histórico muito divulgado, a opção narrativa de Binet justificou a fácil adesão à sua leitura.

Diário das Imagens em Movimento: «A Região Selvagem» de Amat Escalante (2016)


Nos últimos tempos andamos a descobrir a cinematografia mexicana dos anos mais recentes e a deceção tem sido frequente. Se existe a curiosidade por formas de dar a ver a realidade, que correspondem à especificidade da cultura do grande país latino-americano o que deles resulta é demasiado equívoco para nos darmos por satisfeitos com essas experiências.
«A Região Selvagem», filme de 2016, assinado por Amat Escalante confirmou o que vem constituindo uma sensação persistente. Serge Kaganski, um dos críticos franceses, que lemos com maior interesse, escreveu algo que não deixa aso a dúvidas: existe uma atitude reacionária do realizador ao associar a punição a quem do sexo procura obter a máxima satisfação. E, de facto, existem muitas cenas de sexo no filme, mas as que verdadeiramente garantem êxtases são as das duas protagonistas femininas com o monstro a que se entregam sem reservas, mesmo adivinhando que, quando delas se cansar, ele passará a maltratá-las, quiçá a matá-las. E, dentro da mesma lógica ideologicamente conservadora, ai do homossexual que se candidate a idênticos deleites, porque a criatura parece tão convictamente hétero, que a vítima acaba em coma no leito do hospital ou atirada para uma fossa em estado de cadáver.
Curiosa foi a tentativa de algumas feministas olharem para o filme com complacência por encontrarem em Alejandra e em Verónica duas mulheres desagradadas das cópulas com homens e reivindicando o direito ao prazer com essa besta que não se concentra somente na vulva, porque as envolve por todo o corpo com os seus tentáculos. Mas essa leitura diz muito de um movimento que, independentemente da importância tida na conquista dos legítimos direitos da outra metade do céu, também vem produzindo atitudes inaceitáveis traduzidas em concentrarem-se nalgumas árvores, perdendo a perspetiva global de toda a floresta.
A prospeção relativa à cinematografia mexicana irá prosseguir apesar da falta de empatia para com ela sentida nos exemplos mais recentes. Esperemos que encontremos outros, que nos façam acreditar na capacidade para nos suscitarem retornos mais auspiciosos.

Diário das Imagens em Movimento: «Manson: music from na unsound mind» de Tom O’Dell


Quando a contracultura acabou eu tinha treze anos e foi muito distanciadamente que vivi a sua herança musical. Em casa era impensável deixar o cabelo crescer para além da dimensão admissível a um «homenzinho» e calças à boca de sino nem vê-las, que era coisa de mariconços. Restava a música ouvida com sofreguidão e alguns livros sobre as religiões orientais, que foram o passo derradeiro dos conúbios místicos antes da total rendição ao ateísmo.
Na época impressionaram-me os crimes cometidos contra Sharon Tate e seus convidados, mas jamais voltei a sentir curiosidade sobre a maligna personalidade de Charles Manson. Daí que o filme de Tom O’Dell tivesse tudo para me interessar, quanto mais não fosse por me poder elucidar sobre a criação de uma personalidade tão perversa e capaz de exercer inacreditável fascínio junto das discípulas da sua seita ao ponto de as ter transformado em assassinas.
Confesso-me surpreendido com o que o documentário me deu a conhecer. Se não estranhei que Manson tivesse nascido numa família desestruturada em que o sentimento de rejeição se tenha consolidado desde o berço, nem que passasse a adolescência e a juventude mais tempo preso do que em liberdade, as coisas começaram a ganhar outro interesse quando várias testemunhas o dão como compositor de algum talento capaz de interessar um dos irmãos Wilsons (dos Beach Boys) pelos seus temas. A apresentação de algumas das gravações em estúdios discográficos constituem demonstração de quão perto esteve de integrar o mundo da pop music, constituindo-se como um dos seus bem sucedidos vultos de então. Caso para O’Dell formular a tese de ter catalisado nos homicídios a frustração do seu fracasso enquanto músico de sucesso...
A loucura de que dava mostras impedi-lo-ia, porém, de ir muito longe, não só pela irresistível vontade de manipular hordas de seguidores para as suas ideias distópicas e racistas, mas por nunca ter conseguido superar os traumas das primitivas rejeições. Megalómano por natureza, sempre reagiria como psicopata, quando as contrariedades viessem levantar obstáculos à sua nunca satisfeita vontade de reconhecimento.
Azar o das suas vítimas, quase aleatoriamente escolhidas para lhe darem a catarse e iludirem a perda de influência pressentida nos que se mantiveram ligados à seita até ao mediático desiderato. E lamente-se que, embora referindo-o de passagem, O’Dell não tenha explicitado de forma mais contundente o quanto esses crimes serviram as agendas conservadoras de Richard Nixon e Ronald Reagan, ambos apostados em declararem o óbito a uma América momentaneamente rendida a valores execrados pelos seus eleitorados. Nos anos seguintes ser hippie ou com eles parecer-se constituía motivo de crítica, se não mesmo de ostracização.
Cinquenta anos passados pode constatar-se Charles Manson foi o coveiro de uma efémera revolução, que abanou fortemente os valores ainda hoje responsáveis pelo que de pior tem a terra do tio Sam. Nesse sentido terá sido o idiota útil que deu ensejo à vitoriosa estratégia do complexo militar-industrial, da banca, das farmacêuticas e das grandes empresas ligadas ao petróleo e às petroquímicas para eliminarem de vez as vozes dissonantes face a uma cultura enfeudada a cristalizadas visões sobre a família, a sexualidade e, sobretudo, a distribuição de rendimentos. Os danos daí advindos revelaram-se incomensuráveis. E, na prisão, onde viveu até ao fim dos seus dias, Manson não deverá ter feito a mínima ideia do lamentável papel que lhe coubera no terceiro quartel do século vinte, aquele que se concluiria com a apressara retirada norte-americana de Saigão.

domingo, novembro 24, 2019

Diário das Imagens em Movimento: Diários da Bósnia de Joaquim Sapinho (2005)


Não é por terem sido os muçulmanos a ganharem ascendente sobre os destinos dos bósnios, que justificam a minha antipatia apesar de terem sido dados como vítimas de sinistros criminosos. Porque quem vai à guerra dá e leva, decidindo-se no final que os derrotados eram os vilões e os vencedores os injustificados heróis. Na realidade entre uns e outros rarearam os anjos e primaram os demónios.
Nesse aspeto também me não afeta que, em Sarajevo, o som dos sinos tenha sido substituído pelos cantos dos muezzins a convocarem os crentes para a oração. Há muito que considero tão absurdo o islamismo, quanto o catolicismo, o judaísmo ou qualquer outra religião. O que não podemos ignorar é o paraíso para os traficantes de diversas redes criminosas desde a  declaração da independência desse pequeno país encravado entre croatas e sérvios.
Razões para não ser elevada a expetativa com que me dispus a ver o filme rodado por Joaquim Sapinho para dar testemunho das suas duas viagens à região, a primeira em 1996 e a segunda dois anos depois. Não era difícil adivinhar que estaria em causa a morte e destruição suscitada pelos exércitos em confronto, bem como as dificuldades dos sobreviventes em regressarem a casa depois de delas fugirem.
Narrado na primeira pessoa, o filme constituiu uma deambulação por uma terra que quase parece de ninguém, mas por onde ciranda quem procura colher novas referências identitárias num espaço transfigurado em relação aos equilíbrios conhecidos antes da intromissão ocidental despoletando ódios fratricidas. Porque, embora Sapinho de tal não queira saber, essa foi uma guerra congeminada pela CIA, pelo MI5, pelos serviços secretos alemães e sabe-se lá por quem mais para consolidarem a vitória na Guerra Fria possibilitada pela criminosa idiotice de Gorbatchov.
Sapinho está mais interessado nos pequenos gestos como se depreende da cena em que um capuchinho vermelho ziguezagueia na neve ou uma outra em que o outrora cuidado Museu de História Natural se viu entregue ao abandono.
Tomando Sebald como inspiração, Sapinho concebeu um filme sobre uma paisagem transformada pela guerra e onde as feridas tardarão a cicatrizar.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Diário de Leituras: O bird watching como traço de carácter


Em «O fim do fim da terra» Jonathan Franzen confessa que quanto mais vou envelhecendo, mais me convenço de que a obra de um escritor de ficção é um espelho do seu carácter. Uma das características que se lhe associa é o gosto pelas viagens a múltiplas geografias para ver as mais diversas aves.  Graças a essa curiosidade tornou-se num tenaz paladino da sua conservação dados os riscos de extinção de muitas delas por exclusiva responsabilidade das atividades humanas. No alheamento geral, milhares de albatrozes morrem anualmente nas redes dos arrastões, que se lhes revelam invisíveis quando atraídos pelos peixes nelas aprisionados. Ou o grave problema das ilhas desérticas, que constituíam seguro local de nidificação para tantas espécies e onde visitantes ocasionais introduziram ratos, ratazanas e gatos todos eles convertidos em incansáveis destruidores das ninhadas.
Paradoxal, igualmente, a alteração da situação vivida pelas aves migradoras ao sobrevoarem e descansarem nos campos albaneses. Até 1985, data da morte de Enver Hoxha, o país era um paraíso avícola. A «democratização» pôs armas nas mãos de quase toda a gente, que passou a ter como distração preferencial matar indiscriminadamente essas aves em migração. Chegou-se ao ponto de quase nenhuma sobreviver de quantas tentam atravessar o país nesse trágico périplo. E no Egito sucede praticamente o mesmo.
Razão para que Franzen veja no capitalismo consumista um logro, tal qual o denunciou Jean Baudrillard, que considerava ter-se operado a substituição da realidade pela sua ilusória representação. Nesse sentido não deixa de ser caricatural a função dos parques naturais que funcionam como simulacros nos quais os turistas - na maioria brancos! - experienciam uma África cuja representação depende do dinheiro que tenham.
Essa distinção entre o real e a sua aparência colocou-se a Franzen logo aos 21 anos quando, chegado a Nova Iorque deu por si a surpreender-se com a ostensiva exibição do consumo dos ricos ou a sua não menos exibicionista frugalidade. Ou quando não compreendia que os negros de quem tinha medo, ainda mais medo tinham dele por ser branco numa sociedade marcadamente racista.
No fundo Franzen depressa tomou consciência da dialética dos opostos, razão que talvez explique a forma complacente como defende os romances de Edith Wharton, escritora abastada, atraente, caprichosa, senão mesmo execrável, mas capaz de criar romances ainda muito atuais apesar de redigidos século e meio atrás.

Diário das Imagens em Movimento: Três filmes que nenhum prazer proporcionam


Às vezes é um bocado difícil gostar do cinema português. Foi esse o meu pensamento à medida que ia vendo «Ponto Morto», uma curta metragem de André Godinho realizada em 2014 e reconheça-se que visualmente interessante. Mas que dizer dos tiques godardianos a respeito da morte do cinema? Ou do labirinto borgesiano, que leva um carro a andar às voltas numa estrada durante a noite repetindo as passagens pelo mesmo sítio? Ou a transformação dos cadáveres em zombies deambulando por um cenário de minas abandonadas e com charcos poluídos com mercúrio ou outro qualquer poluente?
Repito: esteticamente até é agradável de ver, mas o que queria o realizador para além da demonstração da sua erudição? Para que serve, afinal, um filme assim senão para onanísticos exercícios de efabulação nos festivais de cinema em que foi apresentado?
Igualmente preferencialmente destinado ao circuito dos festivais, mas com distribuição alargada por cinemas dos vários continentes, o documentário «Projeto Nim» de James Marsh poderia ser ferramenta eficiente do PAN para as suas campanhas sobre os direitos devidos aos animais. Nim é um pobre macaco, logo em bebé subtraído à progenitora para servir de cobaia ao projeto de investigação de um professor da Universidade de Columbia apostado em aferir se, sem aparelho vocal para falarem como os humanos, os macacos poderiam aprender linguagem gestual.
Sem cuidar do bem estar do primata Herbert Terrace (fisionomicamente sósia do ditador turco Erdogan e ainda sua réplica ainda mais óbvia na falta de escrúpulos!) retira Nim da casa onde começou por ser integrado numa família muito assertiva às suas necessidades, transferindo-o para uma mansão onde acaba por concluir que está a gastar grandes somas sem resultados condizentes com as expetativas decidindo devolver Nim à procedência, ou seja ao abrigo donde o retirara, mas onde ficaria doravante encafuado em gaiolas de dimensões reduzidas.
Pior ainda sucederia, quando o proprietário dessa associação declarou falência vendendo os animais aí «armazenados» a um laboratório para neles serem feitas experiências com novos medicamentos.
Terrace, que já se revelara um escroque apenas interessado em Nim conquanto ele lhe prodigalizasse publicidade, nunca mais dele quererá saber, mesmo ciente de como lhe dera a conhecer o paraíso antes de o sujeitar a tal inferno.
Felizmente que os últimos anos de Nim serão passados numa espécie de purgatório em que, já não usufruindo das mordomias da infância, pôde voltar a usufruir daquilo que para os chimpanzés é tão importante: a sociabilidade com outros da sua igualha.
Igualmente destinado ao circuito de festivais, conseguindo até o Prémio do Júri da secção «Un Certain Regard» no Festival de Cannes de 2017, foi o filme «As Filhas de Abril» de Michel Franco, particularmente incómodo de ver na sua segunda metade, quando compreendemos termos sido iludidos pelo realizador para uma leitura da história, que nada tinha a ver com a realidade.
A princípio ainda julgámos que April tinha acorrido a Puerto Vallarta para apoiar a filha que, grávida aos dezassete anos, está manifestamente impreparada para os desafios inerentes à experiência de maternidade. Ademais o namorado, Matteo, está no mesmo nível de maturidade não contando sequer com a ajuda dos pais, que o expulsam de casa. Mas April vem a revelar-se uma personagem maléfica, que não só rouba a criança à filha como aspira a ganhar de bónus o rapaz na sua cama.
Ao contrário das explicações dadas pelo realizador quanto a tratar-se do retrato de três gerações de mulheres não é essa a leitura que se retira do filme. Nele ninguém sai verdadeiramente incólume de um juízo negativo que vamos formulando em relação a todos os personagens: April é perversa e egoísta; Valéria mostra-se infantil na teimosia em ter levado até ao fim uma gravidez para que não estava talhada; Matteo é do tipo da maria vai com as outras, nunca mostrando vontade própria, sempre se deixando arrastar para aquilo que a jovem namorada ou a balzaquiana amante o impelem; a meia-irmã de Valeria é uma anafada solteirona, nem sequer dotada para o papel de tia, porque lhe falta a vontade para se fazer diferente da abúlica existência em que se frustra. Os pais de Matteo ou o de Valeria não querem chatices com os filhos, vivendo as medíocres existências sem deles se condoerem.
Tudo aquilo parece uma telenovela grotesca sem beleza nem pingo de ética. A família é apresentada como um cenário de guerra escondido nas aparências de uma hipócrita fachada. Apenas se deve reconhecer a fotografia cuidada reveladora de competências técnicas superiores às das mundividências de um realizador, cujo olhar sobre a realidade está nos domínios do sórdido.