quarta-feira, setembro 30, 2020

(DIM) Adotada: porquê eu?, Sun Hee Engelstoft, 2020

 


Nascida na Coreia do Sul a realizadora Sun Hee Engelsoft decidiu regressar ao país natal para encontrar-se com raparigas como a sua mãe que, grávidas, são forçadas pelas famílias a entregarem os bebés para adoção. Uma situação que a aprovação do aborto legal no ano em curso tenderá a minorar. Até essa altura foram inúmeras as jovens grávidas enviadas para lares distantes de casa para terem secretamente os partos. O da ilha de Juju foi aquele onde a realizadora nasceu e donde partiu para a Dinamarca ao encontro da família, que a adotou. E é aí que encontra raparigas como essa mãe, que se recusa a encontrá-la por ter depois casado  e tido uma filha, guardando para si o segredo da sua existência.

Naeyon tem 16 anos, Sujin está nos 17 e, tal como as demais companheiras, estão num sério dilema: educarem esses filhos clandestinos, contra tudo e todos, ou aceitarem a adoção por família endinheirada seja na Coreia do Sul seja noutro qualquer país. Duvidando dos próprios pensamentos, ora se encantam com os filhos recém-nascidos, ora aceitam os argumentos dos familiares mais próximos, apostados em salvarem a reputação da família e verem-se livres de uma criança que a ponha em causa. No caso de Sujin a crueldade do padrasto até vai mais longe: obriga-la a prescindir dos direitos maternais, tornando-se numa autêntica criada doméstica  para cuidar da filha como se se tratasse da irmã mais nova.

O filme é o de uma descoberta pessoal, porque vivenciando os tormentos por que passam as raparigas, a realizadora compreende, finalmente, o que terá sentido a progenitora prescindindo dela quando nasceu. Se a sensação de rejeição tanto lhe doera, regressa à Europa com a certeza de que ela não tivera, afinal qualquer possibilidade de agir em contrário.

terça-feira, setembro 29, 2020

(S) Corinne Marchand numa das canções de «Cléo de 5 à 7» de Agnès Varda

(DIM) Aren’t you happy?, Susanne Heinrich, 2019

 


Alerta à navegação para o divertido filme de Susanna Heinrich, que o canal ARTE amanhã emite sob o título de La Fille Melancolique. E é de facto, como rapariga melancólica que a protagonista se apresenta, quando percorre Berlim e multiplica encontros (carnais ou não) para encontrar uma cama onde dormir, mas, sobretudo, as verdades essenciais do nosso tempo.

Nesta fantasia existencialista e pop perspetiva-se o fim do capitalismo, a maternidade, o feminismo, as ilusões do amor romântico e as convenções sociais.

Em 15 capítulos curtos, sem transição que os identifique, acompanhamos esta aprendiz de escritora, que deixou no 2º capitulo o romance com que estava a pensar estrear-se.

 

(S) O Intermezzo da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni

(DIM) Tom Jones, Tony Richardson, 1963

 


Albert Finney e Susannah York eram tão jovens quando protagonizaram esta versão do romance de Henry Fielding, transformado em argumento cinematográfico por John Osborne e a que Tony Richardson deu trepidante ritmo.

Tendo nascido bastardo, e apesar do inegável sucesso conseguido junto das mulheres com que priva, Tom Jones nunca conseguirá apanhar o ambicionado elevador social. Mesmo sabendo ser bravo ou cobarde, quando melhor lhe convém, ou intrépido e provocador ao sentir os ventos de feição. O que se lhe depara é uma sociedade esclerosada em que os nobres tudo fazem para manterem aferrolhada a fortaleza donde só saem para as apreciadas caçadas com galgos. Pouca sorte terá o arrojado protagonista, quando pretende levar mais a sério a relação com a bem nascida Sophie Western, tanto mais que a inveja dos que lhe são próximos mais lhe dificultará o intento.

Expulso da casa onde nascera logo na primeira parte do filme, Tom Jones passará a vida na permanente condição de presa de quem tudo fará para caçá-lo.  Para o demonstrar Richardson soube tirar a poeira ao romance clássico acelerando a montagem para tornar rocambolesco todo o ritmo do filme que ficou para o cinema britânico dos sixties como um dos seus mais bem sucedidos títulos. 

(S) Um medley das composições de Gabriel Yared

(DL) Pobres Homens Brancos

 


Num ensaio acabado de publicar a historiadora Sylvie Laurent aborda a construção ideológica relativa ao branco pobre norte-americano, que tão bem serviu a estratégia de Donald Trump para chegar à Casa Branca nas eleições de novembro de 2016. Muitos aceitaram de bom grado a tese da angústia identitária de um segmento importante da população mais desfavorecida, temerosa de se ver desapossada dos parcos haveres pelas minorias, que as tenderiam a discriminar para franjas ainda mais irrelevantes da sociedade em que vivem.

E, no entanto, esse eleitorado de Trump não se resume aos operários do Michigan ou aos mineiros do Wyoming, já caídos no desemprego ou em riscos de lhes caber essa triste sorte. Na realidade o conjunto dos eleitores de Trump são mais ricos que a média americana, com realce para a elite conservadora já anteriormente conotada com os neoconservadores e com o Tea Party.

O Make America Great Again encontra raízes nos medos dos Pais Fundadores da nação quando aprovaram a Constituição em 1787. Já tendo iniciado o genocídio dos índios e perspetivado o enriquecimento à custa da mão-de-obra escrava, eles tinham presente o livro de Edward Gibbon, publicado onze anos antes, e dedicado ao Declínio e Queda do Império Romano. Daí que, para acautelarem os potenciais ataques dos novos bárbaros - esses índios e escravos - perspetivaram o texto fundamental da jovem república numa lógica de autoproteção e autopreservação. A célebre Segunda Emenda sobre o direito a andar armado tem nesse enquadramento histórico a sua fundamentação.

Nos quase duzentos e cinquenta anos, entretanto decorridos, tal dilema ficou vincado no imaginário coletivo e tem sido difícil erradica-lo. Foi explorando-o que os antigos esquerdistas transmutados nos neoconservadores nos anos 70, apostados em execrarem o comunismo, cuidaram de definir a identidade norte-americana como tendo por essência o empreendedorismo, a meritocracia e o individualismo. Claro que Nixon, e depois Reagan, os Bush e mais recentemente Trump, logo cuidaram de os chamarem ás respetivas Administrações.

A realidade é porém outra: hoje é necessário somar os rendimentos de treze famílias negras para se igualarem aos rendimentos médios de uma congénere de cor branca. As prisões estão cheias de negros (45%)  e os corredores da morte ainda mais (75%).

As desigualdades de rendimentos entre os brancos e as minorias são gritantes. E dão gás a uma revolução política e social, que não terá fim na eleição de 3 de novembro. 


domingo, setembro 27, 2020

(EdH) O Parque Arqueológico de Baiae

(EdH) Vestígios do Passado

 


 1. Assaz curiosa a reportagem que vi sobre Baïae, o refúgio dos imperadores romanos e outros cortesãos, quando queriam libertar-se dos espartilhos suscitados pela vida política na capital e espairecerem onde tivessem olhares menos críticos a vigiarem-lhes os pecados privados, habitualmente escamoteados pelas suas propaladas virtudes públicas. Situado na baía de Nápoles esse complexo de férias conheceu a presença de César e de Nero, de Brutus e de Cícero, compondo-se de mansões revestidas de mármores, mosaicos e frescos, e dotadas de água potável através de sofisticada rede ligada a aquedutos, também fornecedora dos estabelecimentos de banhos de vapor e dos viveiros de peixes.

Esplendorosa enquanto esteve emersa, Baïae ficou progressivamente debaixo de água, quando sucessivas erupções do Vesúvio provocaram um abaixamento geral da superfície dessa zona e a depositaram vinte metros abaixo da superfície em meados do séc. IV d.C.

Hoje os arqueólogos submarinos estão a estudar os 180 hectares de leito marinho onde permanecem os vestígios desse passado que, no deboche e desmesura, não deveria diferir muito daquilo que Fellini ilustrou no seu Satyricon. E procuram sinais do crime engendrado por Nero, quando se quis ver livre da mãe e cuidou de ali mesmo a assassinar.

 2. Não menos esforçados têm sido os trabalhos dos arqueólogos da universidade de Basileia que, desde 2011, andam a dar seguimento à descoberta então feita de novos túmulos no Vale dos Reis, quase todos do tempo do grande faraó Amenhotep III. E as questões são mais fáceis de estabelecer do que as respostas subsequentes. Por exemplo: porque aparece no mesmo espaço - o túmulo KV64 - a múmia de uma princesa dessa 12ª dinastia, acompanhada de outra da bastante posterior 22ª? O que terá justificado a reutilização do mesmo lugar de consagração da anterior defunta, porventura uma das muitas que tinham justificado a fama de Amenhotep III em como seria o faraó das mil esposas? E pertenceriam os restos mortais de cerca de noventa mulheres da época do mesmo faraó, encontrados na necrópole familiar KV40, a esse mesmo harém?

As prospeções que prosseguem no local visam aprofundar o conhecimento de quem comandou o Egito num dos seus períodos de maior fulgor, mandou edificar alguns dos mais imponentes monumentos de Luxor e teve a desdita de ver o seu túmulo funerário destruído ainda na Antiguidade na sequência de um terramoto. Melhor sorte teve o neto, Tuthankamon que, sem feitos dignos de nota a não ser o de pôr fim à revolução monoteísta do pai Akhenaton, chegou ao século XX em condições de dele se conhecer quase tudo quanto legou para o futuro.