quarta-feira, outubro 31, 2018

(DIM) «Nostalgia da Luz» : Um filme de mulheres fortes e determinadas


Patricio Guzmán conheceu o deserto de Atacama na época do governo de Salvador Allende, quando se deslocara à região - do tamanho de Portugal - para filmar as minas de cobre, e se surpreendera com o carácter único da paisagem. Lembrava-lhe o planeta Marte, de tudo esvaziado, sem insetos, nem quaisquer outros animais. Só habitado por alguns seres humanos sujeitos à solidão e a essa ausência de vida.
E, no entanto, conseguiu-lhe associar uma história rica em significado, que deveria focalizar-se nalgumas anciãs, inesgotáveis na missão de encontrarem os restos mortais dos seus entes queridos. A motivação prioritária do filme seria essa, mas contaria, igualmente, com a magia da astronomia, das estrelas, das múmias e dos animais petrificados. Nesse conjunto de elementos sabia haver matéria para construir o filme, por conterem história, objetos e matéria, que teriam de se entrecruzar.
O argumento começou a ser concetualizado a partir da necessidade de se criar uma narrativa simples, depurada de qualquer tentação de complexidade. Embora tocasse todas essas áreas não seria um filme antropológico ou arqueológico, histórico ou militante.
A equipa de rodagem foi para Calama, aldeia mineira onde residiam doze mulheres. Victoria Saavedra, uma delas, seria uma das protagonistas, a par da bem mais radical Violeta Berrios, a única que manteve a busca até aos dias de hoje. Esta é uma pessoa maravilhosa, desassombrada no que diz sobre as autoridades, ou quando a elas se dirige, sejam autarcas, deputados ou senadores. Porque, por todos abandonadas - exceto por alguns jornalistas e juízes - espelham o exíguo número de pessoas de bem no Chile. Entre elas e a equipa de Guzmán estabeleceu-se uma relação de grande empatia e fraternidade, transferindo-se essa sensação para o próprio filme.
Contactaram-se, igualmente, os observatórios astronómicos,  e foi assim que Valentina Rodriguez veio, igualmente, prestar um testemunho a que se queria escusar por, até então, nunca ter dado a conhecer a sua condição de vítima, já que os pais foram dois dos milhares de desaparecidos da ditadura. Casada e mãe de dois filhos, era vista com simpatia por todos os colegas do Observatório Austral Europeu, mas nenhum imaginara a tragédia, que envolvera o seu passado. Era um segredo, que resguardava só para si  e para os familiares mais próximos. Mas o assistente de realização, Nicolas Lasnibat, localizara-a através de uma das associações de psicólogos, que trabalham com quem sofreu tortura ou perdeu familiares.
Surpreendida por terem-na contactado para uma tão grande exposição pública, Valentina começou por ser firme na recusa, mas, pouco a pouco, foi cedendo aos argumentos do persuasivo Nicolas, quando o filme já estava na fase de montagem. Encontrara-se uma das ligações mais significativas entre o mundo dos astros e o sofrimento dos que os olham para procurar uma infinidade de respostas...

(S) Antonio Vivaldi: Gloria at La Pieta, Venice

(DL) «Salina - Les trois exils» de Laurent Gaudé


Dos lados da montanha Tadma, onde nunca se atrevem a arriscar ir, os Djimbas ouvem a chegada de um cavaleiro, que traz consigo um bebé a chorar. Não lhe conhecem os trajos, nem os adornos, mas não têm sequer tempo para disso indagarem. O homem deposita o embrulho no espaço central em torno do qual as tendas se armaram e desaparece tão rapidamente como chegou.
O que fazer?, perguntam-se os estupefactos visitados. O bebé não cessa de gritar, mas Sissoko, o chefe da tribo ordena contenção. Não sabe se a criança será portadora de alguma maldição.  Por isso, que o sol escaldante a mate para que lhe façam um enterro respeitoso.
A criança mostra-se, porém, mais resistente do que esperavam e nem as hienas, que vêm rondar o acampamento, quando a noite cai, se aproximam o bastante da possível presa para consigo a levarem. É nessa altura que Mamambala a agarra e a aproxima do seio para se ver sugada com voracidade. Será ela a dar nome à rapariga, doravante ao seu cuidado.
Passam-se muitos anos e Salina conhecerá muita violência, amiúde o luto de quem amou e ver-se-á desprezada como feiticeira. Tem um filho, Malaka, e é ele quem, vindo uma vez mais de uma viagem pelo deserto enquanto membro de uma caravana, a encontra à beira da morte. Impõe-se então contar aos demais a história da mãe, que se estenderá por dez capítulos. Se o sofrimento sempre terá sido a sua companhia fazer dela uma lenda constitui para a forma de a compensar, de lhe garantir o devido reconhecimento nos últimos instantes de vida.


(DIM) Um realizador ao serviço da memória


Patrício Guzmán, o realizador de «Nostalgia da Luz», está convencido da similitude entre a memória e a força da gravidade. Tê-la é essencial para se sobreviver neste frágil presente. Porque quem não a tem está perdido numa terra de ninguém. É isso que diz no final do filme este chileno nascido em Santiago no ano de 1941 e hoje considerado um dos principais realizadores de documentários.
Tendo estudado cinema no seu país, e depois em Espanha, foi nesta última que se exilou, quando o golpe fascista derrubou o governo de Salvador Allende de quem fora entusiástico apoiante. Depois viveria em Cuba e em França, onde acabaria por se radicar mais duradouramente.
Os seus filmes são diferentes do que costumamos ver nos que pretendem refletir a realidade, porque assumem-se preferencialmente como uma representação, mais do que uma janela para o objeto da sua abordagem. Não se pretendem militantes de causas, porque os problemas sociais são ilustrados poeticamente, mas por isso mesmo mostram-se mais eficazes ao serviço de um mundo mais justo.
Para além da realização e produção de filmes, Guzmán é, igualmente, um transmissor do que sabe em aulas, seminários e conferências, todas orientadas para o seu fito quase obsessivo: a necessidade de transmitir a memória às jovens gerações, sujeitas às estratégias de as fazer amnésicas pelos poderes instalados.
Compreende-se que o filme por que ficámos a conhecê-lo tenham sido as quatro horas e meia de «A Batalha do Chile», que rodou entre 1973 e 1979, para mostrar todo o processo, que conduziu ao golpe de Pinochet. Apesar de ter sido encarcerado no Estádio Nacional de Santiago durante quinze dias, conseguiu que as bobinas já filmadas saíssem clandestinamente do país para que pudessem ser laboriosamente montadas em Havana. Mais de vinte anos depois, em 1997, regressaria ao Chile para procurar os que filmara naquela trilogia, daí resultando outro filme essencial para compreendermos a tragédia ali ocorrida: «Chile, a memória obstinada». Esse esforço seria continuado com os títulos seguintes - «O Caso Pinochet» (2001) e «Salvador Allende» (2004) - nos quais retrataria todo o o horror da ditadura e homenagearia quem procurara viabilizar a transformação socialista com os formalismos da democracia burguesa.
«Nostalgia da Luz» (2010) é uma metáfora sobre o tempo nas paisagens sublimes do deserto de Atacama através dos testemunhos de astrónomos, de arqueólogos e de mulheres incansáveis na busca dos seus desaparecidos.
Cinco anos depois é a Patagónia e o centro da tortura na Villa Grimaldi a servirem-lhe de cenários para colocar em paralelo o extermínio dos ameríndios e dos presos da ditadura, ambos unidos por dois botões, um usado como mercadoria de troca pelos colonizadores espanhóis e o outro descoberto num carril submerso a que fora amarrado um corpo atirado de um helicóptero.
A filmografia de Guzmán conta com outros filmes demonstrativos do afeto com tudo quanto diga respeito ao seu país ou subcontinente. Em 1987, «Em Nome de Deus», era uma homenagem à luta de alguns setores da Igreja Católica pela defesa dos direitos humanos. Em 1992 «A Cruz» evocava a religiosidade popular na América Latina. Em 1995 «Pueblo en vilo» interessava-se pelas memórias e tradições de uma aldeia mexicana. E, em 1999 perspetivava o que poderia unir o mais conhecido herói de Daniel Defoe e Pablo Neruda em «Ilha de Robinson Crusoe».

terça-feira, outubro 30, 2018

(DL) «Instruções para salvar o Mundo» de Rosa Montero (2008)


Há dez anos, quando Rosa Montero publicou este romance, o mundo andava bem carecido de ser salvo, ou não fosse esse o ano em que a falência da Lehman Brothers iria virar do avesso a vida de muitos de quantos, até então, se julgavam a coberto de uma crise económica e política profunda.
Convenhamos que tudo quanto então sucedeu teve efeito de avalanche sobre as nossas sociedades e este inquietante ascenso dos ideários fascistas mais não é do que um pervertido sucedâneo do terramoto então verificado com epicentro em Wall Street. Se o mundo precisava, então, de ser salvo, hoje a urgência torna-se muito maior...
Para Matias, um dos protagonistas do romance da escritora espanhola, há outra razão não menos relevante para tudo questionar: a morte de Rita, que fora para ele tudo quanto pudera desejar. Professora, mãe que nunca tivera, amante com quem vivera as descobertas mágicas do Amor, esposa, que por ele tudo deixara para trás. E uma certeza a acompanhá-lo no transe em que os meses seguintes se viriam a converter: o culpado fora um médico do Hospital de San Felipe, que a mandara para casa por não ter com que remediar-lhe os efeitos da doença e a condenara a atroz fim, marcado por dores insuportáveis.
Em percurso paralelo ao desse taxista de meia idade, acompanhamos o de Daniel, esse médico, que representa o bode expiatório dessa perda por assimilar. Desinteressado da profissão, vivendo uma relação conjugal mais do que degradada, alterna os turnos nas urgências do hospital com a fuga para jogos de computador e, depois, para o Second Life, onde se desdobra num avatar à descoberta do sadomasoquismo.
O romance irá, naturalmente, desembocar no encontro entre eles, primeiro com a violência quase homicida a distanciá-los, para, depois, se entreajudarem no meritório esforço de resgatarem uma rapariga serra-leonesa da escravatura sexual, ao descobrirem-na sucessivamente massacrada pelos maus humores do proxeneta. Personagem forte, como quase sempre o são as mulheres criadas pela autora, essa Fatma mostra a resiliência de quem sofre horrores na carne, mas não permite que a mente se desvie de um bem mais gratificante devir. Nesse sentido tem equivalente noutra interlocutora de Matias - a velha Cerbero - que lhe dá a conhecer desconhecidos modelos analíticos de entender a realidade e, também ela, a superar o martírio a que se vira sujeita por um gangue juvenil.
As instruções sugeridas por Rosa Montero para salvar o mundo são as comummente aceites por quem o quer ver transformado numa utopia igualitária e fraterna: a empatia com o outro, ajudando-o a superar os desafios, que pareciam quase impossíveis de enfrentar. Ainda que o desenlace comprove a impossibilidade de se darem passos exagerados em tal direção. Porque os hábitos há muito instalados se consolidam numa cristalização, que nem as melhores intenções conseguem abalar.

segunda-feira, outubro 29, 2018

(DIM) Do que trata a «Nostalgia da Luz» de Patrício Guzman (2010)

No norte do Chile, na imensidão do deserto de Atacama, cruzam-se destinos, sobrepõem-se camadas de história, nasce uma reflexão sobre a memória  e o lugar do homem no seio do universo.
No deserto mais árido do mundo, onde parece extinto qualquer traço de vida, surgem uma enormidade de segredos. Enquanto os astrónomos perscrutam os céus em busca das origens do homem, um arqueólogo escava nos solos para reconstituir a história de toda aquela região. Um grupo de mulheres faz um autêntico trabalho de formiga, virando as pedras do deserto  à procura de vestígios dos familiares desaparecidos durante a ditadura de Pinochet. Vítimas revelam as recordações do cativeiro nos campos de concentração organizados pela ditadura militar.
Se cada personagem é estimulada pelo que mais lhe interessa, todas coincidem na busca da verdade. As trajetórias entrelaçam-se, as vozes respondem umas às outras, os discursos ecoam, suscitando uma reflexão comum e singular sobre o tempo, a vida e a morte, a história e o significado do homem no cosmos.
Oscilando entre reminiscências pessoais e memória coletiva, imobilidade e movimento, passado, presente e futuro, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, o filme constitui uma abordagem poética e  filosófica sobre o sentido da vida.

domingo, outubro 28, 2018

(DIM) «Churchill» de Jonathan Teplitzky (2017)


Nunca fui um entusiasta de Winston Churchill, personalidade histórica a quem alguns dedicam uma admiração quase canina. Se mostrou admirável coragem durante o «Blitz», liderando a Inglaterra como único país da Europa Ocidental a escusar-se à rendição contra os poderosos exércitos nazis, tinha um passado comprometedor com demonstrações de irresponsabilidade e insucessos, o mais clamoroso dos quais terá sido a estratégia gizada para a batalha de Gallipoli.
O filme de Teplitzky vai buscar precisamente a má consciência de Churchill em relação a essa derrota durante a Primeira Guerra Mundial para justificar o receio, que lhe merece a Operação Overlord, pela qual os Aliados preparam-se para desembarcar nas costas da Normandia. Sentindo-se figura decorativa no papel de primeiro-ministro, sem poderes efetivos relativamente aos militares, que deveriam responder perante ele e só acatam ordens de Eisenhower, Churchill tenta frustrar o intento do general norte-americano, pretextando a má preparação, o risco de tudo apostar numa faixa estreita da costa francesa e da inevitabilidade das muitas vítimas entre os jovens atirados para a frente de batalha.
Irascível, a todos indispõe, incluindo a esposa, Clementine que chega a ponderar a definitiva separação. Só a ordem real para que fique sossegado, a manter as aparências de um poder mais virtual do que efetivo, o faz tolher-se na dinâmica de confrontação com as chefias militares.
O filme peca, porém, por muito mais do que pelos erros históricos, que os prosélitos de Churchill logo avançaram. É que, se eles existem, nem o realizador, nem os seus críticos, dão relevância ao motivo maior de Eisenhower para lançar-se numa aventura militar em que só a sorte lhe permitiu celebrar vitória: os Aliados ocidentais tinham a noção da rapidez com que o Exército Vermelho avançava na Frente Oriental. Ora, atendendo a que, em Itália, os avanços das suas tropas estavam a ser dificultados pela determinação nazi, o mais certo seria chegarem a Berlim muito depois dos subordinados de Estaline. A única hipótese era tomarem o atalho francês, que os aproximaria mais da capital alemã do que se esperassem pela evolução dos acontecimentos no território transalpino. Que importavam os milhares de mortos nas praias normandas se a viragem definitiva do curso do conflito na Frente Ocidental seria fundamental para conter o aliado soviético, já a ser encarado como o inimigo da Guerra Fria que se seguiria? Mas esta é a versão da História, que os suspeitos do costume nunca sequer ponderam...

(EdH) Selvagens em Jardins Zoológicos (3): Aborígenes e Ka’linas


Barnum ganhou uma enorme fortuna com a apresentação de aborígenes australianos no seu circo, obrigando-os a uma esgotante digressão por cento e trinta cidades norte-americanas e canadianas. Pode-se imaginar o terror, que terão sentido esses homens e mulheres, vindos dos quase despovoados territórios do Queensland, quando expostos perante multidões de trinta mil espectadores?
Em 1884, depois de ter percorrido milhares de quilómetros no território americano, Tambo adoeceu e morreu. Cunningham, o irlandês, que o fizera vir da terra natal, ordena que lhe mumifiquem o corpo, vendendo-o a um museu de Cleveland.
As mortes vão-se suceder, umas atrás das outras, mas o espetáculo continua. Cunningham adivinha que, mesmo amputada de alguns dos seus membros, a comitiva fará sensação na Europa pelo que a direcionou para Londres, a capital dos zoos humanos e do maior império então existente.
Nesse ano de 1884, Cunningham fez negócio com Guillermo Farini, o maior empresário de espetáculos «etnográficos», que já fizera vir bosquímanos do deserto da Namíbia para serem exibidos no Aquário Real.
Os Aborígenes estavam identificados com o que deles pretendiam, quando os apresentaram no Crystal Palace, edifício emblemático construído em 1851 para a Exposição Universal. O sucesso público volta a ser assinalável.  São então enviados para outros palcos europeus - Berlim, São Petersburgo e Paris. Seria na capital francesa, que os dois derradeiros sobreviventes do grupo foram fotografados antes de sucumbirem à tuberculose.
Nessa época de grande interesse pelos povos exóticos, os respetivos empresários não eram os únicos a compreenderem o interesse dessas exibições. Os Estados coloniais viram neles uma oportunidade imperdível: ao demonstrarem a sua «inferioridade civilizacional» convenciam os europeus dos benefícios da sua ação nesses territórios distantes.
Estava-se, então, num salto em frente na afirmação das ambições coloniais, o que obrigou a que as mais importantes potências europeias se associassem aos Estados Unidos e ao Japão para a partilha das últimas terras ainda indefinidas quanto à sua pertença. Nomeadamente em África, onde os portugueses tinham conquistado posições históricas, que ingleses, franceses, alemães e italianos questionavam quanto à sua efetiva posse. Pouco a pouco o planeta vai sendo partilhado entre os que julgam ser os únicos detentores de valores e costumes civilizados. Doravante os zoos humanos ainda mais se incrementariam para legitimarem esse domínio colonial. Havia a perceção de que, exibindo essas populações «primitivas», os espetadores vê-las-iam como um espalho, que os convenceriam da sua superioridade civilizacional.
A história de Moliko é a de uma sobrevivente. Pertencente ao povo Ka’lina da Guiana, pôde voltar para junto dos seus após meses de humilhações.
Quando em 1882, ela e os trinta e dois companheiros, abandonaram as margens do rio Maroni, o som dos tambores acompanhara-os. Se a despedida fora de festa, o que os esperava, quando o barco deixou para trás as costas das terras onde até então tinham vivido começou o seu calvário. François Laveau, o emissário do governo francês, mentira-lhes com promessas de dinheiro, belas descobertas e a promessa de serem bem
tratados.
Levados para o Jardim da Aclimatação de Paris, que ganhara grande experiência na exploração desse tipo de «divertimento», viram-se encerrados em jaulas, incumbidos de manufaturarem utensílios em barro. fingirem que andavam de piroga e a comportarem-se como «selvagens». A humilhação foi dupla: não só compreenderam que não eram aceites tal qual eram, como se viam obrigados a cumprirem um papel, que lhes era estranho. Foram, igualmente, cobaias de estudos «científicos» de carácter racial e modelos forçados de fotógrafos, que captaram inúmeras imagens destinadas a disseminar essa ideia de inferioridade das «raças exóticas» relativamente aos sofisticados europeus.
O inverno, com as inevitáveis doenças, dizima quase todo o grupo. Dos mais de trinta escalados para a viagem a França só dez regressaram. Entre eles essa Moliko, que relatou o sofrimento aos filhos e aos netos, que, desde então, fizeram os possíveis por o não deixar esquecer.
O recurso aos Ka’lina significou um passo mais ambicioso de uma potência colonial na produção da sua propaganda.
O Ministério das Colónias passou a incumbir-se dessa estratégia, chamando a si a aprovação de todos espetáculos privados, que secundassem tal propósito.

sábado, outubro 27, 2018

(S) Concerto para dois bandolins e orquestra, Antonio Vivaldi

(DL) «Deux mètres dix» de Jean Hatzfeld


Jean Hatzfeld já me andava arredado das leituras há mais de uma década, embora «Tempo de Catanas» e «A Estratégia dos Antílopes» tenham-me permanecido inesquecíveis por me elucidarem o quão brutal foi o genocídio dos tutsis ruandeses pelos seus vizinhos hútus. Sem necessitar das imagens macabras colhidas por quem ali acorrera avidamente em busca do Prémio do Ano da melhor Fotografia, o antigo repórter do «Libération» conseguia demonstrar que as palavras comportam basta capacidade para nos transmitirem um imperdoável horror. Estávamos ainda com memória fresca da implosão jugoslava, que nos revelava uma terrível conclusão: não importa em que coordenadas geográficas vivamos há sempre a possibilidade de, num dia, sentirmo-nos acomodados em vivência pacífica dentro de uma comunidade sem aparentes tensões, e no seguinte vermo-nos atacados com armas de fogo, machetes ou catanas por quem éramos cumprimentados todas as manhãs. Decididamente o que Thomas Hobbes escrevera em 1651 -  o homem é o lobo do homem - mostrava-se intemporal e sempre persistente como ameaça à nossa ilusão de segurança.
Nesta nova temporada literária em França, Hatzfeld faz-se de nós recordado com um novo romance em que se vira para outra realidade não menos interessante, porque reveladora de como há quem se deixe manipular por poderes superiores sem disso se dar conta. Em «Deux mètres dix» ele imagina que, nos campeonatos europeus de atletismo de Helsínquia, decorridos em 1982, a vitória feminina no salto em altura não coubera efetivamente à espanhola Ruth Beitia, que registou, então, 1,97m, mas a duas rivais, uma russa, Tatiana, e outra norte-americana, que teriam partilhado a medalha de ouro ao pulverizarem o record de 2,10m - na realidade o atual ainda é de 2,09m e pertence à búlgara Stefka Kostadinova desde 1987.
Por essa mesma altura dois outros rivais - o quirguize Chabdan e o anticomunista ianque Randy—medem forças no campeonato de halterofilismo e dão, igualmente, ensejo ao empolamento da suposta superioridade de uma ou outra superpotência.
Temos, pois, quatro personagens fictícios, que, trinta anos depois do desaparecimento da União Soviética, reencontram-se nas montanhas do Quirguistão e recordam os respetivos percursos, dando-se conta de como terão servido de instrumentos políticos dos respetivos governos num contexto de Guerra Fria. O anfitrião terá sido o que mais rapidamente se apercebera da precariedade da sua condição de herói, pois servira-se dela para criticar o Soviete Supremo, e fora bater com os musculados costados num goulag. Mas todos põem em causa o quanto haviam sacrificado para darem-se inteiramente ao desempenho desportivo, acicatados pelo patriotismo, que deveriam personificar. Cada um deles dá versão distinta de uma histeria política em que a breve sensação de se equipararem a deuses nos estádios depressa se esvaiu e fê-los comprovar os limites decorrentes da sua condição humana.

sexta-feira, outubro 26, 2018

(MP) A importância de compreender o Outro (desde que não seja fascista ou fanático religioso)


Numa altura em que o fascismo avança em tão díspares extensões geográficas, faz sentido uma conferência - datada de março de 2015 - em que Boris Cyrulnik e Edgar Morin discutem a compreensão do Outro.
O que hoje ocorre com o discurso de ódio dos aprendizes de ditadores  tem a ver com a sua incapacidade para percecionarem os que se lhes opõem, e deles colherem a representação dos valores e anseios. Teoricamente deveria ser competência adquirida, porque acessível a qualquer criança de quatro anos. As experiências científicas mostram como elas são capazes de resolver problemas mentais, saindo de si mesmas e colocando-se no papel dos que as estão a desafiar.
O problema é que um fascista desaprende essa capacidade, negando a existência dos que pensam de forma diferente. Não é por acaso que o jagunço brasileiro está suportado em igrejas evangélicas, que convencem os prosélitos da sua exclusiva razão quanto à forma como se explica o mundo, reduzindo os demais a blasfemos pecadores, sujeitos ao Inferno, senão no Céu, pelo menos na Terra, aonde passam a ser alvos preferenciais dos seus agentes terroristas. Entre os evangélicos brasileiros e os fanáticos do Daesh a diferença é de pouca monta: a oportunidade ainda não deu aos primeiros os meios que os segundos tiveram no seu efémero Califado.
Para os fascistas e fanáticos religiosos a Utopia consiste em esmagar qualquer alteridade. Ora, de acordo com Cyrulnik, essa é característica típica dos psicopatas. E está a propagar-se pelo mundo todo com assaz perigo.: há uma linguagem totalitária a silenciar quem não pensa de acordo com as certezas desses convencidos.
Ora, voltando ao tema da conferência, compreender o Outro é respeitá-lo nas suas diferenças, tentando entender-lhe o sentido, o significado e orientação dessa alteridade. É fundamental uma cultura de diálogo, mas os fascistas andam a impedi-lo através do insulto fácil e da aposição de etiquetas, que pretendem impor como desqualificadoras. Potenciam-se assim os fenómenos xenófobos, homofóbicos e racistas.
Numa época em que a ciência tende a demonstrar como as certezas são sempre relativas - uma verdade só o é enquanto não vier a ser desmentida por outra mais consonante com o ditado pelas experimentação! - os movimentos políticos totalitários vivem de certezas, cuja falsidade é óbvia, exceto para os seus deploráveis apoiantes.
Faz sentido o que dizia Adorno: aquele que julga ter compreendido tudo, só mostra nada ter entendido. As certezas dos fascistas e dos seguidores acríticos das religiões só travam o pensamento, impedem-no de ajuizar. Ora é essa capacidade para tudo questionar numa dialética entre o verdadeiro e o falso, que melhor define o Ser Humano com maiúscula. A obediência a líderes, supostamente iluminados, só pode reduzir a escravos quem os segue...

quinta-feira, outubro 25, 2018

(DIM) Ainda sobre «Sonata de Outono» de Ingmar Bergman (1978)


Esta noite conclui-se no Auditório Gandaia o ciclo de homenagem a Ingmar Bergman a pretexto do centenário do seu nascimento. É exibido o filme «Sonata de Outono», rodado em 1978, e que constituíu a única colaboração entre o realizador e a sua conhecida homónima, Ingrid, com quem partilhava o apelido sem nenhum grau de parentesco. Como era habitual nas obras que assinava, aqui se aborda a vida e a morte, a religião e as relações entre as pessoas.
A religião surge logo representada pelo personagem Viktor, que começa o filme a falar diretamente para nós, espectadores, convidando-nos a entrar na história, que se explicitará na hora e  meia seguinte. A exemplo do pai de Ingmar Bergman, ele é pastor de uma pequena aldeia, generoso como pressupõe a vocação a que se dedicara, mas ao mesmo tempo passivo como quase sempre o são os homens nos filmes do realizador. Embora assuma um papel determinante no cuidar da cunhada, afetada por doença degenerativa, ele apenas assiste ou ouve as conversas que a mulher e a sogra irão ter.
A morte está sempre presente como uma ameaça, que afeta ou suscita ansiedade nas personagens. Charlotte, a pianista, está de luto pelo segundo marido. Eva, a filha, continua a manter o quarto do filho tal qual estava, quando morrera afogado aos quatro anos. E Helena sofre de uma doença degenerativa, que faz prever o seu iminente fim.
A vida é um bem difícil de usufruir. Assim o considera Eva num livro, que escrevera, e onde confessara a dificuldade em se conhecer bem no intimo e de lidar com essa desconhecida. A dificuldade em amar e ser amada é um pressuposto, que contribui para a insegurança inerente à forma como age.
Justifica-se aqui referenciar a importância dos espelhos nos filmes de Bergman: eles refletem uma aparência da realidade que com ela não coincide. A verdade de quem se é, oculta-se por trás da similitude ilusória. Essa constatação irá evidenciar-se no progressivo desmascaramento de Charlotte, que nos começa por parecer uma mulher empática, mas vai, pouco a pouco, denunciando a arrogância e frieza com que interage com os demais. A sua essência egoísta, quiçá mesmo monstruosa, irá revelar-se na cena em que Eva interpreta um prelúdio de Chopin e ela expulsa-a do piano para, em quatro minutos de humilhantes explicações, desconsiderar a filha que, uma vez mais, só procurava ser por ela amada.
Esse episódio é apenas aperitivo para a violenta catarse da noite seguinte, quando Charlotte acorda assustada com um pesadelo indiciador da sua má consciência e passa as horas seguintes num diálogo cada vez mais violento com a filha. São trinta e quatro minutos intensos, sempre em grandes planos ou em flash backs, com estes últimos a remeterem para a luminosidade e enquadramentos dos quadros de Vermeer. Subitamente verbaliza-se o que se costuma calar nas relações familiares: Eva acusa a mãe de ser a maior responsável pela infelicidade das filhas. Como se constatou desde o início do filme, ouvindo tudo quanto sucede entre mãe e filha, Viktor não intervém, embora volte a interpelar-nos no final, fazendo-nos, uma vez mais, cúmplices do que pensara.
Desmentindo Freud, que julgava curar os pacientes se  lhes impusesse a catarse, o filme regressa ao ponto de partida: voltando a escapar ao convívio com as filhas, Charlotte fala no comboio com o agente (Gunnar Bjornstrand num breve cameo!) e está novamente retocada na máscara de mulher forte e fria. O mundo desfila lá fora, mas só consegue ver o reflexo de si mesma no vidro da janela. Eva também reassume o papel de subserviência, escrevendo-lhe a desculpar-se pela forma como a recebera.
Conclui-se, assim, um filme onde perpassam as três questões primordiais na obra de Bergman: quem sou? Onde estou? Para onde vou?