domingo, junho 28, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Liquen», um conto de Alice Munro

Seres orgânicos, meio fungos, meio algas, os líquenes desenvolvem-se em ambientes inóspitos. Não admira que Alice Munro tenha escolhido este título para o seu conto, porque é de afetos apodrecidos, e até corrosivos, o que aqui está em questão.
A protagonista é Stella, que vive numa casa que o pai construíra nos penhascos argilosos, sobranceiros às águas tranquilas do lago Huron.
A meia idade transformou-a numa “mulher baixa, gorda e de cabelos brancos” sem grande cuidado com o que costuma vestir.
Conhecemo-la, quando recebe David, o ex-marido, que todos os anos, por altura do aniversário daquele que fora seu sogro durante vinte e um anos, vem visitá-la, desta feita acompanhado de Catherine, a sua amante atual. Desta ficaremos a saber tratar-se de, aos quarenta anos, uma espécie de  herdeira espiritual dos hippies, cultivando o interesse por tudo quanto seja paranormal. Não iludindo por isso a fragilidade e delicadeza do seu trato.
Apanhando-a a sós, David mostra-se ansioso por mostrar a Stella a fotografia de Dina, uma rapariga de 22 anos, por quem está disposto a abandonar Catherine. Como se a visita tivesse por verdadeiro objetivo a bênção para a perfídia, que planeia executar.
“Parece líquen!”, reage ela ao olhar para a imagem, que David lhe coloca à frente. Adivinha-se no comentário a improvável exequibilidade daquele “amor” andropáusico.
E, de facto, essa Dina parece ser mais esquiva do que David gostaria de reconhecer. Quando tenta porfiadamente ligar-lhe, nunca a consegue apanhar.  A evidência de, traidor, andar a ser traído, torna-se-lhe óbvia.
Ainda assim, a curta visita serve para David concluir que, no fim de contas, ele e Stella continuavam ligados, explicando-se, assim, o desejo de partilha dos seus segredos mais comprometedores.
O que não imagina é Stella não sentir nada de semelhante em relação a um homem, que já arquivou afetivamente no seu passado. E tradução prática dessa sensação é, uma semana depois, encontrar a fotografia de Dina e vê-la em acelerado processo de degradação.
Ao segundo conto posso intuir que as personagens dos contos de Alice Munro raramente estão sintonizadas nos afetos, havendo sempre barreiras invisíveis a separá-las da aparente afinidade, que possam querer exibir. Ou mesmo convencer-se de que existam!
(este conto está publicado na coletânea «O Progresso do Amor», editada pela Relógio de Água em 2011, datando a versão original de 1986)

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Na pele de Kim Jong-un» de Karl Zéro e Daisy d’Errata (2014)

A semana passada chegaram-nos ecos de uma devastadora seca, que está a afetar a produção agrícola da Coreia do Norte, que sobrevive, sobretudo, graças a esse setor de atividade. A nível humanitário pode-se temer o pior e ele aparece bem explicito neste documentário de Karl Zéro e Daisy d’Errata, quando se vê a entrevista a uma miúda esfaimada, que andava a vender erva como forma de ganhar algo com que mitigar a subnutrição.
Num filme com muitas imagens de arquivo impressionantes essa fica necessariamente na memória por nada dever a outras, que costumamos associar a países africanos.
E, no entanto, Karl Zéro e Daisy d’Errata até pretenderam criar uma sátira jubilatória sobre esse regime conhecido pelo seu hermetismo absoluto.
Sabe-se que o atual líder, Kim Jong-un foi promovido a esse cargo nos finais de 2011 e logo surpreendeu pela rapidez com que se livrou de um tio demasiado interessado em ser seu tutor. Depois, quando mandou executar a antiga amante e as suas bailarinas por terem atuado com pouca roupa num programa televisivo ou ordenou igual destino a um general, que teve o azar de adormecer durante uma parada militar, já poucos estranharam.
Ainda assim seria interessante conhecer as respostas para algumas perguntas: quem é ele? Que personalidade se esconde por trás da opacidade de um regime tão singular?
A exemplo do que já fizeram com Putin, Bush e Castro, os realizadores imaginaram-se dentro da cabeça de Kim Jong-un, espreitando-lhe para os pensamentos mais esquivos. É, assim, que concluem ele ter de si mesmo uma imagem muito negativa quanto à capacidade para exercer esse cargo. Muitos dos seus desvarios seriam devidos a uma baixa autoestima, que exige atitudes prepotentes como forma de compensação.
Zéro e Errata põem-no a consciencializar a sua própria natureza traidora e pequeno burguesa, que detesta o formal totalitário em que se vê obrigado a viver, e que mais não é do que o parque de atrações de uma ideologia desatualizada.
A originalidade do filme reside no facto de ser o próprio Kim Jong-un a pronunciar essas sentenças definitivas ao longo de um monólogo hilariante, mas também patético.
Tomando por modelo o processo estalinista baseado na autocrítica pública, o ditador acabará por surpreender os seus espantados súbditos com  revelações tão chocantes como a de ser filho do próprio avô, o qual seria amante da própria nora.
Fruto de uma laboriosa colheita de documentação e de imagens inéditas de arquivo, o filme é uma brilhante lição de geopolítica, a meio caminho entre a biografia histórica e um panfleto humorístico devastador... 

sábado, junho 27, 2015

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Svetlana Allilouïeva, a filha de Estaline» de Jobst Knigge (2015)

Embora aos onze anos ainda não tivesse a atenção focalizada na política, - que começaria a  manifestar no ano seguinte, quando a compra da revista «Vida Mundial» seria quase uma espécie de epifania -, não me passou despercebida a fuga para o Ocidente da filha de Estaline. O que só se pode explicar por a televisão salazarista ter dado grande destaque à notícia e tê-la ouvido no intervalo das minhas brincadeiras.
Na época não senti grande simpatia pela fugitiva: vivia num ambiente que, se não hostilizava propriamente o regime, também a ele não manifestava qualquer adesão. Daí a um par de anos, enquanto ia acompanhando-lhe o desempenho de marionete ao serviço do imperialismo, passei a antipatizar com esse posicionamento, que via como indesculpável traição à causa soviética. Vivia então o início de uma consciencialização política, que me traria irreversivelmente para as ideias de esquerda.
Agora, quase cinquenta anos passados sobre essa mediática fuga, um documentário sobre quem ela foi interessa-me para melhor me informar sobre acontecimentos para os quais adotei precocemente empatias e antipatias sem ter todos os dados necessários para as fundamentar.
A proposta de Jobst Knigge tem, ademais, o mérito de situar Svetlana como personagem secundária de uma evolução histórica onde mais facilmente se deixou arrastar do que quis condicionar.
Nascida em 1926 ela foi a única filha de Estaline, que já era pai de dois outros rapazes. Após a infância passada na gaiola dourada, que era o Kremlin, um conjunto de sucessivas vicissitudes leva-a a romper com a herança paterna. Isso ocorreu após ter assistido a muitos desaparecimentos e encarceramento de gente que conhecia. A começar pela mãe, cuja morte foi anunciada como causada por disenteria, mas mais provavelmente suicidou-se ou foi morta devido aos seus crescentes desentendimentos com Estaline. Mas também vira o namorado, Alexeï Kapler ser condenado ao goulag, por se ter atrevido a imaginá-la sua.
Com a morte do pai, em 1953, ela é intensamente vigiada pelo KGB, o que a não impede de aproveitar uma deslocação à Índia para solicitar asilo político na embaixada norte-americana em Nova Deli. Foi em 1967, ano em que os seus anfitriões estão a bombardear intensivamente os campos de cultivo vietnamita.
Muito embora decida regressar a Moscovo para uma breve reconciliação com o país, que enjeitara, é nos Estados Unidos que passará o resto da sua vida, chegando a adquirir a respetiva nacionalidade.
A questão a que o documentário procura pretende dar resposta é: como existir e construir-se, quando se é filha de um ditador?
Testemunham familiares, amigos, conhecidos e escritores que lhe traçaram a biografia. E utilizam-se imagens de arquivo, que ilustram na perfeição uma estranha forma de vida... 

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: Recordar a Gradisca

Na mesma semana em que já desaparecera Laura Antonelli - cuja filmografia tem títulos muito mais interessantes do que o brejeiro «Malizia» por que ficou mais conhecida! - chegou a notícia da morte de Magali Nöel.
Não é tanto pela  notícia em si, que aqui a convoco, mas por ela  fazer-me retroceder a uma das mais gratas experiências da minha condição de cinéfilo: «Amarcord», o delicioso filme de Fellini sobre a sua infância passada em Rimini, quando o regime de Mussolini estava no seu auge. Com a maravilhosa música de Nino Rota a torna-la encantatória!
Não sei quantas vezes já o vi, mas decerto continuarei a retomá-lo com idêntico prazer nas que ainda o repetirei. E nele a personagem da Gradisca é particularmente importante ao representar a inevitável tentação adolescente pelas mulheres maduras. Ou, noutra perspetiva, a inquietação perante os tempos que passam demasiado depressa e em que os sonhos, tanto tempo alimentados, têm de render-se aos condicionalismos da realidade. 
Não é essa a inevitabilidade de crescer?
É por isso, que o filme me foi sempre grato: tendo-o visto pela primeira vez em 1973, apanhou-me exatamente na altura em que, com dezassete anos, me estava a despedir da adolescência e a entrar decisivamente na vida adulta. Revê-lo, mais não é do que, nostalgicamente, voltar por um par de horas, às emoções de um passado distante, mas de que só ficaram as recordações felizes … que as outras há muito as olvidei! 

quarta-feira, junho 24, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Histórias simples da Alemanha Oriental

O regresso à terra natal, situada na antiga Alemanha de Leste, e em plena metamorfose depois da queda do Muro de Berlim: é esse o tema das vinte e nove histórias curtas que Ingo Schulze criou a propósito do quotidiano dos habitantes de Altenbourg, na Turíngia, ainda muito perturbados e desorientados.
Bastaram algumas horas para que a antiga República Democrática Alemã tenha integrado a Alemanha e a sua nova ordem política e social. Mas, nove anos depois, as personagens de Schulze continuam à procura da felicidade num mundo em plena de/re/estruturação, mantendo a mesma ingenuidade e ligeireza.
São também omnipresentes as referências do autor colhidas na literatura e no cinema norte-americano. A história breve tão do agrado de Raymond Carver ou a originalidade de Robert Altman em  «Short Cuts» fornecem a tela em que ele projeta um universo sem mapas, povoado de seres que procuram manter-se equilibrados numa sela turbulenta.
O livro é um gigantesco puzzle que se vai construindo à medida que o vamos lendo. A exemplo das partículas coloridas de um caleidoscópio, os personagens vão transitando de cena, reaparecendo e desaparecendo por algum tempo ou definitivamente.
A narrativa acompanha essa flutuação correspondente à presença ou à ausência dos protagonistas. A linguagem é sóbria sem rodriguinhos nem exacerbamentos emocionais.
Schulze dá a palavra aos personagens sem aproveitar os silêncios para neles inserir julgamentos morais ou considerandos psicológicos. Limita-se a insuflar-lhes um humor delicado e irresistível.
Para abordar as mudanças verificadas na «província oriental», mas igualmente em todo o leste europeu, Ingo Schulze optou pelo relato fragmentado. Trata-se da sua forma de evocar a impossibilidade de ter o olhar e a mente a conseguirem captar mais do que alguns elementos dispersos da realidade, ninguém conseguindo ter dela uma visão global minimamente correta.
Não admira que a leitura não seja fácil, sempre tentada a deixar-se desconcentrar ou perder o fio à meada. Mas essa é a condição experimentada por Schulze e os seus personagens. Provavelmente até pela maioria dos habitantes da antiga Alemanha Oriental.

terça-feira, junho 23, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: O progresso do Amor segundo Alice Munro

“Os gestos de cortesia e reconciliação valem sempre a pena, mesmo que a separação tenha de acontecer mais cedo ou mais tarde. Pergunto-me se, nas circunstâncias em que pessoas como eu vivem agora, esses gestos não serão mais valorizados, e deliberadamente procurados, do que casamentos à antiga, nos quais o amor e os ressentimentos podiam desenvolver-se subterraneamente, tão confusos e obstinados, que deviam parecer estar ali desde sempre.”
É assim que se conclui «O Progresso do Amor», o primeiro dos contos de Alice Munro a figurar na antologia homónima publicada pela Relógio de Água  depois da escritora ser galardoada com o Nobel da Literatura em 2013.
Confesso que não fora esse reconhecimento da Academia Sueca e dificilmente me teria aproximado da escrita da autora canadiana conhecida, sobretudo, pela sua atividade de contista.
Este primeiro contacto nem me entusiasmou, nem me desagradou de todo. Diria que me fez manter a expectativa para os contos a ler a seguir.
Neste temos uma narradora chamada Euphemia, como a sua avó materna, mas que se tornara conhecida como Fame por ser nome bem mais agradável para colar-se á sua identidade. Mesmo arriscando impertinências como a de um rapaz, que um dia lhe perguntara a razão para ser famosa.
Agora, ela parte para a evocação da família estimulada por uma notícia abrupta: “Foi pouco depois de me ter divorciado e ter começado a trabalhar no escritório da imobiliária”, que o pai lhe telefonara para lhe dar conta da “partida” da mãe. Eufemismo para designar a sua morte súbita.
Apesar de ter sido professora primária, a defunta fora uma mulher muito religiosa, inflexível no dever de rezar três vezes ao dia, e não se preocupando muito com o futuro da filha a quem sonegara os estudos secundários ao destiná-la ao papel de dona-de-casa, quando casasse.
Inconformada, Fame saíra de casa aos quinze anos, empregara-se num restaurante para financiar os estudos noturnos, que a habilitariam aos diplomas de contabilidade e datilografia e, posteriormente, à credenciação como agente imobiliária.
Mas essa mãe não deixara de lhe causar alguma admiração por, mesmo vivendo modestamente, ter queimado os três mil dólares recebidos de herança do progenitor por o odiar.  Ou a avó, que gozava com a família, fingindo enforcar-se no celeiro.
Na mistura de tempos, de personagens e valores, tem de se reconhecer alguma complexidade nesta história, que assinala a diferença entre conceitos amorosos em duas épocas distintas da vida da narradora. 

segunda-feira, junho 22, 2015

Spinoza entre grades

A cena passou-se há um ano atrás no Salon du Livre, quando a ministra da Justiça Christiane Taubira estava a assinar autógrafos no pavilhão da editora Flammarion.
Na fila coloca-se um homem, já idoso, que se apresenta como François Besse, quando ela se preparava para lhe assinar o livro.
A governante levantou os olhos e contemplou aquele homem cujo nome não lhe passava despercebido: ele fora o lugar tenente do inimigo número um da sociedade francesa, Jacques Mesrine, a quem acompanhara na célebre fuga da prisão, em 1979, que se concluíra com a morte dele num desiderato com o seu quê de Lucky Luciano.
François já não era nessa altura um menino de coro: crimes anteriores tinham levado um tribunal a condená-lo à morte à revelia, quando ainda Mitterrand não chegara ao governo e acabara com esse tipo de pena.
Nos vinte cinco anos subsequentes à sua captura, quando já ia na sexta fuga, François empreendeu um verdadeiro trabalho de reconstrução da sua personalidade, estudando filosofia e tornando-se num especialista em Spinoza.
Esse percurso pessoal, que o escritor e jornalista Mathieu Delahousse passou a testemunhar, seja na forma de um livro, seja na de artigos de imprensa, demonstra a possibilidade de alguém se regenerar.
Quando foi ao encontro de Christiane Taubira, François já estava em liberdade condicional e trabalhava na comunidade Emaús a recuperar materiais reutilizáveis de telemóveis e computadores atirados para o lixo. Ainda assim ele sente na pele as dificuldades de não conseguir arranjar um emprego, quer devido à idade, quer por causa da sua notoriedade, e de nunca ter descontado para lhe ser atribuível uma pensão de reforma.
O paradoxal é que, à partida, nunca lhe passara pela cabeça enveredar pela via do crime: tudo começou em 1971, em Bordéus, quando deu guarida a um amigo, que lhe escondeu o facto de estar a fugir à polícia. Preso e torturado na sequência desse equívoco, estava definido o que seriam os anos seguintes, ora feitos de assaltos, ora de encarceramento por deles ter sido acusado.
Agora, chegado aos setenta anos, François Besse é uma personalidade singular, que ainda suscita grandes inquietações em quem vê num criminoso alguém incapaz de ser quem não se pensa que ele é... 

SONORIDADES: «La Pietra del Paragone» de Rossini, dirigido por Jean-Christophe Spinosi

Há oito anos tive a oportunidade de apreciar ao vivo à competência do maestro Jean-Christophe Spinosi, quando ele trouxe a Lisboa o Ensemble Matheus, que fundara em 1991.
Já o conhecia de alguns projetos a meias com o contratenor Philippe Jarousski, emitidos no canal Mezzo, onde fui acompanhando posteriormente outros projetos.
Surgiu-me, agora, a possibilidade de ver o registo videográfico da ópera «La Pietra del Paragone», que ele conseguiu transformar num enorme êxito da programação do Teatro do Châtelet , em Paris, no ano de 2007.
Criada em 1812, foi a sétima das óperas que Rossini assinou e tem como protagonista o rico Asdrubal, que pretende casar e por isso pondera escolher entre Aspasia, Fulvia e Clarice, apesar de as ver associadas a alguns amigos, que suspeita só o frequentarem movidos pelo interesse.
Para a todos testar, ele finge-se arruinado, o que lhe dá a perceber quem verdadeiramente o estima indiferentemente da riqueza: Clarice e Giocondo. Mas esse é apenas o resumo do que se passa no 1º ato, porque no que se lhe segue, os falsos amigos conspiram para levar ao fracasso a relação entre Asdrubale e Clarice, intrigando a pretexto do interesse de Giocondo na noiva. Mas a sagacidade feminina é suficiente para que todos os entraves ao casamento sejam superados e tudo acabe em festiva alegria.
A produção muito deve à encenação de Giorgio Barberio Corsetti, que veste os personagens e enquadra-os em cenários, que remetem para o início da década de 60, ainda que seja a componente vídeo da autoria de Pierrick Sorin a tornar o projeto visualmente mais atraente.
Por exemplo na primeira cena Asdrubale parece ficar em cima de uma banana gigante, que não engana quanto ao seu significado fálico. E, mais adiante, quando parece ter sido arruinado por um colapso financeiro, surgem ratos gigantes nas ruínas da sua casa de campo. Outra vantagem da tecnologia foi a de facilitar o recurso aos grandes planos dos rostos, possibilitando aos espectadores o acompanhamento das expressões faciais dos diversos cantores.
Num excelente espetáculo brilham a contralto Sonia Prima e François Lis, e sobretudo o maestro Jean-Christophe Spinosi, que dirigiu o Ensemble Matheus para conseguir o que costuma ser regra nos seus desempenhos: uma enérgica alegria, que quase faz esquecer o imenso trabalho subjacente à sua competente direção. 

domingo, junho 21, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Tudo o que conta

Os meus olhos já visitaram muitos milhares de páginas escritas por autores de todas as proveniências, estilos e épocas. Conhecendo muitos, faltam-me conhecer muitos mais, o que constitui pensamento assaz inquietante já que tenho a ampulheta definidora do tempo de vida bastante mais preenchida na parte debaixo do que na de cima.

Só nos últimos anos é que o nome de James Salter me captou a atenção como um dos que deveria priorizar na ordem dos que ainda me faltam conhecer. François Busnel, seu entusiástico defensor, referenciava-o, amiúde, no programa «La Grande Librairie» chegando a ir procura-lo à sua casa de Long Island.
Foi, igualmente aí que uma jornalista do «Público» o entrevistou recentemente, encontrando-o em plena leitura do 1º dos volumes de Proust sobre a procura do tempo perdido.
Ora a volumosa obra do apreciador das “petites madeleines” já é o meu compromisso de leitor, quando, em breve chegar aos 60 anos. Altura em que, ainda mais fará sentido, “tudo o que conta”, por sinal o único título de Salter publicado em Portugal... 

PLANOS CRUZADOS: irreverências!

Em 1955 Nicholas Ray assinou um dos filmes, que mais contribuiu para a criação do mito em torno de James Dean: «Fúria de Viver».
Aqueles que viram esse filme nunca mais esqueceram a cena em que Natalie Wood dava o sinal de partida para uma corrida entre dois carros, ganhando aquele que chegasse primeiro e ficasse o mais perto possível de um precipício? O título em inglês era mais feliz do que a sua tradução portuguesa e passou a designar um tipo de irreverência inócua, por não ter qualquer orientação para um objetivo associado ao bem comum: Rebelde sem Causa.
Pode-se dizer que é essa a melhor caracterização para o antigo fuzileiro inglês Stephen Gough que, aos 53 anos, passa o tempo a percorrer as estradas inglesas apenas adornado com a mochila e as botas.
Sujeita-se, é claro!, a múltiplas queixas por ofensas à pouco divertida moral vitoriana dos seus compatriotas de hoje. Mas o mais engraçado terá sido a sua mais recente ida a tribunal quando o juiz, igualmente ridículo com a cabeleira e o trajar vindos de outros tempos ainda em vigor na terra de Sua Majestade, decidiu interrogar o réu por teleconferência para não se confrontar com a sua afrontosa nudez, já que nada o convence a pôr em cima da pele qualquer vestimenta.
Mas, infringindo outra regra da Justiça britânica, a ordem foi para ele não se levantar da cadeira à entrada daquele que o iria julgar. Escondido por trás de uma mesa, Gough não teve a satisfação de ofender o juíz com as suas “indecências”.

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Os vizinhos de Putin» de Danko Handrick (2015)

Viagem curiosa a que o realizador Danko Handrick empreendeu durante três semanas levando-o a cinco antigas repúblicas da União Soviética, pouco depois de consumada a anexação da Crimeia. O objetivo era indagar como estava a ser percecionada a política russa na Ucrânia, tendo em conta a guerra entretanto ali iniciada.
Quando chegou ao seu destino final já tinha compreendido a existência de grandes divergências entre os que admiram e os que detestam Putin, mesmo nos que partilham o trabalho quotidiano na mesma equipa ou a mesma família.
Na primeira etapa Handrick visita Liepaja, uma vila piscatória da Letónia, onde um pescador russo e o seu colega letão têm opiniões opostas. Mas constata, igualmente, as tensões suscitadas pelo ostracismo a que as populações russófonas estão sujeitas, já que todos os documentos e atos oficiais são na língua báltica.
Aquilo que, dando pretexto para que os separatistas tomassem as suas posições, o novo poder procurou impor na Ucrânia - a eliminação do russo como língua oficial - foi aplicado na Letónia com sucesso relativo, já que as consequências económicas estão a revelar-se muito complicadas. O país está em grave crise e os jovens só pensam em emigrar.
Na Bielorrússia Handrick encontra aparentemente consolidada a ditadura de Lukashenko. Os mais velhos parecem fiéis defensores do regime, que lhes garante o pagamento das reformas ao dia certo. Mas a crise está também a fazer estalar o verniz. Se a maioria dos entrevistados tinha na boca sempre a mesma fórmula (“Tudo está perfeito!”), há vozes críticas, que alertam para um descontentamento crescente à medida da insuportável subida da inflação.
A viagem prossegue atá Kiev, onde Handrick vai encontrar refugiados da zona oriental do país alojados precariamente num dos abrigos preparados pelas autoridades.
Tendo visto as suas vidas seriamente perturbadas pelos acontecimentos, que as ultrapassaram, muitas dessas pessoas criticam asperamente os manifestantes da Praça Maidan. E, se muitos ainda falam em democracia e maior ligação ao Ocidente, têm de forçosamente reconhecer o caos em que vivem, com as empresas fechadas, o desemprego a crescer a galope e as milícias do movimento neonazi a desfilarem pelas ruas.
A quarta paragem acontece na Moldávia, que viveu uma guerra civil e por isso está dividida em duas partes desiguais: a ocidente os que olham para este lado do continente, para leste fica a Transnístria, cujos habitantes se orgulham de viver num autêntico museu da União Soviética ao ar livre. Entre agricultores, que deixaram de cultivar as suas terras por ficarem na linha de demarcação entre os dois campos e reformados pró-russos, que defendem ativamente Putin, Handrick encontra toda a paleta de cores políticas.
Falta, enfim a Crimeia e a base naval russa aí instalada. Há descontentamento nos que seguiam a variante ucraniana da Igreja ortodoxa e nos tártaros, mas muitos dos entrevistados consideram que a ligação á Rússia mais não constituiu do que a correção de um erro histórico.
O maior interesse do documentário acaba por ser o de dar rostos às contradições aparentemente insanáveis, que alastram naqueles cinco destinos.



sábado, junho 20, 2015

SONORIDADES: Pelo Douro com a viola amarantina

Neste 7º episódio da série «O Povo que ainda Canta», Tiago Pereira conduz-nos por terras de Amarante, Castro d’ Aire e Santa Marta de Penaguião para conhecer os que fazem e tocam a viola amarantina. Há cantares à desgarrada sob a forma de chulas. E o Douro ali bem perto, cujo vinho, segundo um cantador, “dá muita ciência”. 

PLANOS CRUZADOS: Conflitos culturais

Todas as semanas, na sua crónica no L’Obs», Delfeil de Ton aborda algumas notícias da semana, caracterizadas pelo seu lado pitoresco e singular. Na desta semana dedica a atenção à dezena de jovens turistas ocidentais que decidiram ascender aos 4095 metros do monte Kinabalu, na ilha de Bornéu e, lá chegados, decidiram pôr-se em pelota.
Apesar de se tratar de um lugar sagrado para quem por ali vive, nada de mal sucederia se, no dia seguinte, não tivesse havido um violento sismo causador de dezoito mortes.
Resultou daí que os protagonistas do caso foram acusados de sacrilégio e, nuns casos, liminarmente expulsos da Malásia, e no de uma jovem inglesa até teve de passar três dias na prisão, antes de pagar uma multa e ser posta num avião com ordem de não voltar a pôr os pés naquela terra.
O que está em causa nesta história é o conflito cultural sempre latente entre quem vive num espaço e quem o visita. Pode-se reivindicar a laicidade e a modernidade para agir em conformidade com os nossos valores, mas existe sempre um risco quando se entra em choque com os preconceitos locais.
Para os jovens em causa fica adquirida uma lição de que não se esquecerão tão cedo.