quinta-feira, junho 29, 2017

(DL) Os vagabundos que descrevem o mundo

É grande a admiração que dedico aos escritores-viajantes. Começou com «Moby Dick», prolongou-se com Júlio Verne (afinal um itinerante pouco disposto a sair do conforto da sua casa!) e prolongou-se depois com Chatwin ou Luís Sepúlveda. Deem-me um livro de viagens por paisagens exóticas, com o autor a cirandar em simultâneo pelas profundezas de si mesmo e sou capaz de prolongar o prazer de tal descoberta desde a primeira à última página sem interrupção.
Nas experiências relatadas quase sempre na primeira pessoa, os autores prestam tributo aos escritores que os antecederam e de quem foram confessos admiradores. Nalguns casos até consideram o seu próprio percurso como uma homenagem a quem lhes dera tais prazeres. Como se lhes tivessem de pagar uma dívida. Chatwin, já acima citado, tem um texto de quando era muito jovem, em que dizia: “um dia seguirei os passos dos que me fizeram sonhar”...
Há os que chegaram à escrita por acidente. Não tinham adquirido o saber necessário para desafiar a página em branco mas a necessidade forçou-os a perder o medo, sobretudo por encontrarem no relato do que viveram a forma mais expedita de encontrarem os recursos necessários à sobrevivência e ao financiamento de novas viagens. Alguns consideram, porém, existir um tempo para escrever, outro para viajar, porque esta última atividade deverá ser tão plena, que não permita o ensejo de a ir racionalizando ao mesmo tempo. Os olhos obrigam-se a ficar bem abertos para tudo quanto há a descobrir, que não há tempo para qualquer outra ocupação.
Nicolas Bouvier, um dos mais empenhados cultores do género durante o século XX, defendia a necessidade do autor render-se totalmente à contemplação, sujeitando-se a um papel secundário no relato. Nesse sentido a sua prosa parece-nos hoje datada, fora de moda. Mas era ele o mais convencido dos defensores do ascetismo como condição necessária para traduzir depois em palavras o que se vira atentamente na fase da errância. Ao contrário de Bouvier é difícil encontrar hoje em dia um escritor-viajante, que se livre agilmente da tentação narcísica. E a velocidade com que os acontecimentos se sucedem impele-os a conciliar a errância com a rápida publicação do vivenciado. Não é a escrita, que funciona como complemento da viagem, mas esta que fundamenta o que se irá escrever. No fundo é a velha máxima de se ter de viver para depois escrever.
Por outro lado não deixa de ser curioso o paralelismo entre o nascimento da fotografia e o crescente entusiasmo pela literatura de viagens: os leitores pretendem conhecer, através do testemunho literário, outras paragens, mas parecem necessitar de referências previamente colhidas em imagens, que as revelam em duas dimensões. As palavras funcionam provavelmente como o estímulo à tridimensionalidade.

quarta-feira, junho 28, 2017

(DL) Andrómaca, uma personagem de Racine

Em 17 de novembro comemorar-se-ão os 350 anos passados sobre a estreia de «Andrómaca», uma das mais interessantes tragédias de Racine, que recorreu a um dos temas mitológicos já trabalhados na Antiguidade por Eurípides, Séneca ou Vergílio.
No início da peça a guerra de Troia já teve o seu desiderato com a morte de Heitor. Na distribuição dos despojos, caberá a Pirro, rei de Epiro, ficar com a bela viúva do herói troiano - a personagem que dá título à peça -, e o seu filho Astíanax.
Não tardaremos a descobrir que a estória evoluirá de acordo com a regra de A amar B, que ama C, que ama D, resultando o drama desse desencontro de paixões. É que Pirro estava para casar com Hermíone, filha de Menelau, mas vai adiando sucessivamente a data da boda, porque ficou enamorado pela sua cativa.
Aparece, então, em cena Orestes, enviado pelos gregos para que lhes entreguem Astianax, porque o ódio à raça de Heitor tornara-se tão violento, que só a morte do rebento lhes saciará o desejo de vingança. É essa chantagem que Pirro decide utilizar para convencer Andrómaca a com ele casar: aceda ela a esquecer o defunto herói e a recebê-lo no seu leito e poupar-lhe-á o filho a tão triste sorte.
Bem tenta ela comovê-lo com a sua desdita, que Pirro mantém-se inflexível na decisão. Andrómaca decide então acatar-lhe a vontade, embora no íntimo planeie matar-se na noite de núpcias.
Intromete-se então Hermíone, que sente como uma humilhação o ver-se preterida pela escrava. E, porque sabe Orestes interessada nela, convence-o a matar Pirro, sob a promessa de depois com ele casar.
O filho de Agamémnon satisfaz-lhe a vontade, mas logo descobre o horror, que suscita na amada: aterrorizada com o crime, que lhe encomendara, Hermíone precipita-se para o corpo de Pirro, abraça-o em desespero e logo ali se mata.
No século XVII, em contraponto com as contemporâneas comédias de Molière, este modelo teatral, que acabava com quase todos os protagonistas mortos, conhecia grande sucesso na corte francesa, tendo em conta o seu papel moralizador. No caso desta peça está presente a ternura maternal e a fidelidade conjugal, mas também a   contradição entre o medo e a esperança numa exacerbada manifestação das paixões. Como personagem em torno da qual todos se agitam, Andrómaca consegue ser o modelo de sensatez face ao turbilhão de sentimentos, que se refletem à sua volta.


terça-feira, junho 27, 2017

(DIM) Pacino em «O Mercador de Veneza» no Cineclube Gandaia desta 5ª feira

Esta semana conclui-se um conjunto de ciclos do Cineclube Gandaia, que nos fez visitar sucessivamente os universos cinematográficos das obras baseadas em Shakespeare, filmes franceses e portugueses, os derradeiros títulos de Hitchcock e algumas das participações mais interessantes de Al Pacino na Sétima Arte.
Já na sexta-feira, dia 30, começam as sessões ao ar livre, que prometem diversão inteligente aos veraneantes da Costa de Caparica, sejam os residentes, sejam os milhares, que em julho e agosto a tornam particularmente cosmopolita.
Para concluir o ciclo dedicado a Pacino nada mais natural do que o filme, que se interliga com os primeiros exibidos neste conjunto de títulos: aquele em que interpreta um dos mais antipáticos vilões de Shakespeare. Ele é Shylock, um judeu cujo negócio é o da usura.
Não será obra claramente antissemita, que a tornaria objeto ambíguo tão só se tenha em conta tudo quanto com o Holocausto teve a ver? Poderá ser visto a essa luz, mas é para moderar a impressão mais óbvia a qualquer espectador do filme, que o realizador, Michael Radford, começa-o com uma legenda a denunciar a triste sorte dos judeus na Veneza do século XVI, que explicaria o carácter vingativo do protagonista. De facto, nessa época, vigorava na cidade da laguna adriática uma legislação, que obrigava os judeus a envergarem em público um chapéu vermelho para melhor serem identificados. Acaso não cumprissem a regra incorriam na pena de morte.
Pode-se dizer que os nazis não inventaram nada de novo quando obrigaram os judeus a cozerem estrelas de seis pontas sob um fundo amarelo nos seus casacos e outras peças de vestuário!
Na própria sociedade isabelina em que Shakespeare viveu, a hostilidade aos judeus era comum: eles tinham sido expulsos das Ilhas Britânicas em 1290 e só Cromwell lhes permitira o regresso em 1656. Não admira que, correspondendo ao espírito do seu tempo, o bardo de Stratford-upon-Avon traçasse Shylock sob características repulsivas.
Mas convenhamos que a aparência é mais complexa do que uma perspetiva imediatista no sentido de o considerar um vilão sem remissão. Basta atentarmos num dos mais interessantes monólogos da peça, no Ato III, cena XV, em que Shylock defende a legitimidade do que fizera:
“Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Alimentado com a mesma comida, ferido pelas mesmas armas, exposto às mesmas doenças, tratado da mesma forma, sujeito ao mesmo calor e frio do mesmo verão ou inverno, como qualquer cristão? Se nos picarem não sangramos? Se nos fizerem cócegas não rimos? Se nos envenenam não morremos? Se nos agredirem não nos deveremos vingar?”
Shylock decide vingar-se do mercador António, farto de todas as faltas de consideração por que passou anos a fio. Por isso, quando ele lhe vem pedir três mil ducados para que o amigo Bassanio aceda aos encantos da bela, e sobretudo rica, Portia, estipula um contrato macabro: se, ao fim de três meses, Antonio não lhe pagar o empréstimo e os juros, Shylock fica autorizado a cortar-lhe uma libra de carne tão próxima quanto possível do coração.
Antonio não podia imaginar que falharia o pagamento devido ao naufrágio do seu navio e das mercadorias por ele transportadas. Não fosse o engenho de Portia (e aqui temos mais um forte personagem feminino, capaz de corresponder com inteligência e ousadia às dificuldades!) e a sua situação seria complicada. O que sucede em tribunal é o contrário: de acusador, Shylock, passa a condenado, sofrendo rude castigo. Não só é forçado a converter-se ao catolicismo como acaba falido e ostracizado pelos demais judeus da cidade.
Compreende-se que Al Pacino tenha mostrado particular interesse neste desempenho. Na apresentação de «Sea of Love» já víramos como chegara a ponderar o abandono dos estúdios cinematográficos em proveito dos palcos onde sempre manifestou interesse em superlativizar o percurso de ator. Mesmo Shakespeare dera-lhe o ensejo de realizar um documentário imprescindível - «Looking for Richard» - sobre outro grande papel de vilão na vasta obra do dramaturgo seiscentista. Um crítico francês diria que a sua representação de Shylock era cabotina … mas admirável!
É, pois, sob o signo dessa admirabilidade que se interrompem estes ciclos e damos lugar aos que, ao ar livre, propiciarão grandes satisfações cinéfilas.

domingo, junho 25, 2017

(DL) A propósito de sonhos e de sonhadores

José Eduardo Agualusa considera que a memória é uma paisagem vista da janela de um comboio em movimento. Ora esse tipo de viagem contemplativa dá igualmente azo ao sonho. Olhamos para as planícies e as montanhas, mas a mente emigra para recônditas profundezas, onde se encontram tantas inquietações, frustrações, ou aspirações. A Revolução - aquela com erre bem grande à medida das nossas conceções de Utopia - acolhe-se algures nesses esconsos íntimos. E é  neles que o escritor encontra, amiúde, a matéria de que se irão fazer as suas ficções.
Agualusa explica a escrita como a busca do entendimento, da indagação do que poderá vir a suceder. Por isso os seus personagens surgem tentados a empreender as mudanças, a protagoniza-las, mas a cobardia, o cansaço, também os pode conduzir ao desânimo, ao distanciamento. Pior será - e, infelizmente, sucede com muitos! - se acabam por se entrincheirarem no outro lado.  Até porque muitos terão chegado à  primeira fila da História por mero acidente, empurrados por uma onda que nem sabem bem como nela se puseram a jeito.
Porque considera ser seu dever cívico tudo questionar, Agualusa cria personagens eivados de contradições, como esse Daniel Benchimol, que foi buscar à «Teoria Geral de Esquecimento» (romance que acaba de ser premiado em importante galardão irlandês) e agora é protagonista de «A Sociedade dos Sonhadores Involuntários». Escrevendo no «Jornal de Angola», tornou-se especialista em desaparecimentos, quer de pessoas, quer de avultadas quantias do Estado. A curiosidade irá obviamente metê-lo em sérios trabalhos, perdendo a família, a comodidade e o emprego.
Além dele outras vozes se chegam à frente, aproveitando Agualusa para lhes colar estilos de escrita diversos. O resultado é uma contundente crítica ao regime angolano que, utilizando uma expressão de Mia Couto, sujeita o povo a viver o presente como um  tempo, que lhe não pertence. “Porque este é um presente que não nos deixa estar presentes.”
A alternativa acaba por ser o sonho, até porque, segundo o neurologista do romance, “sonhar é ensaiar a realidade”.
Voltando a Mia Couto, como não lhe dar razão, quando diz de Agualusa, que ele pratica uma arqueologia às avessas para descobrir vestígios do futuro no tempo que acreditamos ser do passado”?


(S) Cancioneiro Popular norte-americano (II): «This Land is Your Land»

sábado, junho 24, 2017

(DIM) A nostalgia da inocência com que se ria tão facilmente

Era uma vez um miúdo que, uma manhã, deu com um circo instalado em frente à sua casa.  Que momento inesquecível: o espetáculo visto nessa noite tinha homens superfortes, anões, atiradores de facas, a mulher Hércules, um faquir que se deixou enterrar a metro e meio de profundidade na própria pista, a sereia Neptunia, os irmãos siameses apresentados em álcool num grande frasco. Mas quando vieram os palhaços o miúdo assustou-se, quis-se ir embora. Até porque lhe lembravam algumas das mais desagradáveis pessoas da aldeia: o sabujo que costumava assediar as mulheres com obscenidades, a freira anã sempre a falar sozinha, o mutilado da Grande Guerra, a viúva capaz de reproduzir de cor os discursos de Mussolini, os cocheiros da estação ferroviária sempre a invetivarem-se e a emitirem gases uns para os outros ou o louco ainda a julgar-se no teatro de guerra e a simular movimentos de ataque.
Talvez tenha sido essa primeira reação negativa ao espetáculo com palhaços a motivar Federico Fellini a rodar um filme sobre eles muitos anos depois. «Clowns», estreado em 1970, serve de vista ao passado, porque os circos pouco se assemelham aos da sua infância. Deixaram de apelar para uma certa inocência, perdida em favor de uma hipocrisia definitivamente instalada no quotidiano da sociedade contemporânea.
O projeto torna-se, então, numa sucessão de entrevistas com antigos palhaços, que vão discutindo como ainda pode ser possível fazer rir o público, cientes de já não resultarem as estratégias, que lhes haviam garantido tantos risos e palmas.
Pierre Étaix, então casado com mais mediática herdeira do clã Frattellini, sugere a possibilidade de ter ocorrido nas pessoas a perda da capacidade em se rirem.  Por isso mesmo, mais do que um filme sobre o circo, ou sobre os palhaços, acaba por constituir uma meditação sobre a solidão e a velhice, servido pela lindíssima banda sonora de Nino Rota.
No fundo Fellini recorre ao que o motivou em tantos filmes: a nostálgica evocação da infância confrontada com a sensação de perda de algo de indefinido nos seus tempos de adulto.


sexta-feira, junho 23, 2017

(DL) As histórias do adolescente Truman Capote

Li «A Sangue Frio» há mais de quarenta anos e esse relato sobre as circunstância em que dois pobres diabos matavam cruelmente uma família do Kansas deixou-me uma impressão muito forte, nunca mais esquecida. No entretanto vi o filme e acompanhei a polémica sobre o oportunismo do escritor, que teria subentendido aos homicidas a possibilidade de os livrar da condenação à morte, na condição de tudo lhe contarem - os factos e o que haviam sentido -, e nada fez para lhes evitar o expectável desiderato.
Fui, igualmente, lendo alguns livros de contos, que denotavam a sua inegável tarimba, mas nunca me chegaram verdadeiramente a entusiasmar. No fundo dava razão aos críticos, que viam Truman Capote como um escritor capaz de uma obra-prima inquestionável, mas incapaz de reencontrar a epifania, que a possibilitara. Talvez porque o gosto pela vida social e pelo álcool o privassem da ambiência criativa em que melhor explorara o talento. E se ele era real!
Aos 16 anos Capote publicou na revista «The Green Witch» um conto intitulado «A Encruzilhada», que dá bem conta do seu engenho: dois vagabundos param para arranjar um parco jantar ao ar livre, permitindo-nos  conhecer o quanto são opostos: Jake é imponente e vigoroso, Tim é um jovem delicado. A conversa permite-nos saber que o rapaz arranjou forma de ganhar dez dólares com que conta regressar a casa, pondo termo a uma aventura, que durara  dois anos.
Todos os diálogos e descrições criam uma tensão entre os dois personagens, connosco a imaginarmos o que sucederá: valendo-se da corpulência Jake espoliará Tim do seu «tesouro», impedindo-o de cumprir o destino de filho pródigo.  E, de facto, aproveitando a ida dele a uma quinta para trazer uma barrica com água, Jake surripia o dinheiro ao parceiro.
Quando Tim já se conforma com a triste sina, Jake despede-se dele, dando-lhe um aperto de mão, nela depositando a nota, que estivera tentado a fazer sua. No último instante possibilitara o cumprimento do sonho ao rapaz, já que ele nem capacidade já tem para o  imitar.
Este conto foi recentemente descoberto, com um conjunto de outros, nos arquivos da Biblioteca Pública de Nova Iorque, sendo publicados pela Random House sob o título de «Early Stories». Agora, a Grasset, verteu-os para francês e crismou-os de «Mademoiselle Belle».
O que se revela nos catorze textos, escritos por Capote quando tinha contava entre 15 e 19 anos, é uma espantosa maturidade e já a curiosidade pela gente simples do sul dos Estados Unidos. Quer com Tim, Miss Belle, Lucy ou Sally, somos mergulhados em universos efémeros, definidores de modos de vida e espaços que nos questionam e perturbam.

(DIM) Os equívocos de um discurso ideológico “irreverente”

Comecei a ver «Nunca Desistas» mais pela oportunidade de ver atores e atrizes, que aprecio - Maggie Gyllenhaal, Viola Davis, Holly Hunter ou Oscar Isaac - do que propriamente pelo tema, cujo conteúdo desconhecia.
A princípio fui-me deixando levar na onda: motivada pela má qualidade do ensino propiciado à filha, cuja dislexia a impede de saber ler numa idade em que isso já deveria ser dado adquirido, Jamie decide lançar-se num desafio tenaz: tomar de assalto a direção da escola. Compromete nesse objetivo uma professora ansiosa pela redenção, que a devolva ao idealismo da juventude, e possibilite ao filho, igualmente com problemas de aprendizagem, o ensino especial de que ele carece.
Enquanto tudo se cinge à luta de duas pasionarias , apostadas em sacudir o conservadorismo vigente, ainda ia dando o benefício da dúvida, muito embora já fosse evidente o primarismo da abordagem.
Eis, porém, que surge a denúncia de quem não pretende a mudança por mero interesse corporativo: o sindicato dos professores, mais interessado em salvaguardar os direitos dos associados do que em alinhar na transformação de uma realidade feita de manutenção de gritantes desigualdades entre os mais ricos e os mais desvalidos.
Tendo a experiência de estar sindicalizado há mais de quarenta e dois anos e de pertencer a corpos gerentes da minha associação de classe há trinta e muitos, sei bem como as organizações representativas dos trabalhadores não são perfeitas. Nelas tenho conhecido alguns caciques, mais apostados em defenderem os seus próprios interesses do que os de quem representam. Mas esses são casos de polícia, que mereceriam uma intervenção mais proactiva de quem é prejudicado e pactua com essa realidade. Mas o facto de haver a perversão dos princípios, que devem nortear os movimentos sindicais, não nos deve impedir de valorizar e exigir o seu respeito, sempre que eles são objeto de tratamento literário ou cinematográfico. Porque aí, mais do que se mostrar o que são, devem-se enfatizar os comportamentos que deverão ter.
É isso que não acontece neste filme de Daniel Barnz, exemplo típico do produto feito para vender gato por lebre. Algo em que as direitas mais conservadoras se têm especializado, muitas vezes se confundindo com discursos de esquerda radical. Com sucesso, como se tem visto em França ou em Itália, onde antigos eleitores comunistas se têm mudado, de armas e bagagens, para as extrema-direitas fascistas. Porque, em aparência, pouco os pareceriam distinguir.
A confirmação desta suspeição decorre da própria influência no argumento do filme de um conhecido propagandista do Tea Party, Philip Anschutz, conhecido por  campanhas populistas destinadas a dissociar os trabalhadores norte-americanos dos sindicatos.
Há, pois, que ter muito cuidado com o tipo de propaganda, que aceitamos subscrever: é que não foram poucos os meus amigos de esquerda, que começaram por entusiasmar-se com os discursos de Nigel Farage no Parlamento Europeu a invetivar Durão Barroso. Quem o via até parecia um clarividente militante das esquerdas! Até que se foi denunciando, mais e mais, na sua ardilosa essência de refinado canalha.

quinta-feira, junho 22, 2017

(DL) Russell Banks, o quase desconhecido

Que eu saiba Russell Banks só teve um dos seus muitos livros publicado entre nós: «Darling» e foi a Teorema que ousou divulga-lo há mais de dez anos. Sem sucesso - está-se mesmo a sentir! -, porque permanece desconhecido, apesar de não desmerecer dos mais conhecidos Paul Auster ou John Irving.
«Darling» , publicado em 2004, era a história de Hannah Musgrave, uma quase sexagenária que abandonava a sua quinta ecológica para regressar a África, onde vivera a partir dos anos 70, quando, jovem oriunda da burguesia de esquerda, decidira mudar-se para a Libéria e trabalhar num laboratório por conta de sociedades farmacêuticas americanas. Aí conhecera e casara com o Dr. Woodrow Sundiata, burocrata local, oriundo de uma das mais poderosas tribos do país e vocacionado para prometedora carreira política.
Acontecera, porém, a devastadora guerra civil e Hannah fugira dos seus sinistros efeitos regressando à América e deixando para trás os três filhos. O romance é o do regresso de uma mulher complexa, eivada de má consciência, e em busca da identidade por entre as mentiras e confissões, os erros e os arrependimentos.
Apoiante entusiasta de Bermie Sanders, Russell Banks nasceu no Massachusetts em 1940, passando a infância numa pequena cidade do New Hampshire. Estava a estudar na Universidade, quando se sentiu tentado pela Revolução Cubana, juntando-se às forças rebeldes de Fidel Castro. Não admira que toda a sua obra seja perpassada pela abordagem das barreiras sociais e raciais.
«Continental Drift», de 1985, expressa bem essa preocupação, com dois personagens, Bob Dubois e Vanise Dorsinville. O primeiro reparava caldeiras no New Hampshire e convencera a mulher e as filhas a mudarem-se para a Flórida para aí encetarem uma nova etapa passível de os libertar da pobreza. Ela era uma emigrante do Haiti, que viera com o bébé e o sobrinho à procura do pai deste último.
Existe, pois, a esperança num novo começo, mas que se revela ilusório: as dificuldades são tantas, que só encontram solidão, injustiça, desajuste em relação ao que prometia ser o espaço da utopia. A trágica condição humana confronta-se com a negação do sonho americano.
No pesadelo inerente à conquista da Casa Branca por Trump, Russell Banks teme sobretudo os ataques à liberdade de expressão, colocando-se na mira de quem detém o poder: “cada vez que um regime autoritário procura um inimigo o primeiro que encontra é um escritor!”.
Tenho agora em mãos o seu livro mais recente - «Voyager» - publicado em 2016. Trata-se de uma autobiografia pretextadas pelas muitas viagens que fez pelas Caraíbas, Andes, Himalaias. Revisita o encontro com Fidel, recorda os hippies de Chapel Hill, as experiências radicais, a fuga para Edimburgo para casar com a quarta esposa.  Mas o que sobreleva de todas essas evocações são as suas interrogações sobre o mundo, o balanço das relações com quem amou e desamou, numa permanente busca de si mesmo. Uma leitura que promete ser estimulante...

(S) Cancioneiro Popular norte-americano (I): «Working Girl Blues»

quarta-feira, junho 21, 2017

(DIM) Quando Johnny Guitar acorreu a salvar Vienna

Em 1954 Nicholas Ray assinou um dos grandes westerns da História do Cinema, filme que João Bénard da Costa escolhia como um dos que preferira ao longo da sua vida.
Existem interesses empresariais, que explicam a intenção de acabar com o bar gerido por Vienna (Joan Crawford num dos seus mais memoráveis desempenhos!), mas sobretudo a raiva de uma mulher ciumenta, apostada em matar quem a priva dos favores do Dancing Kid.
É a tão explosivo ambiente, que chega o cowboy da guitarra, esse Johnny, que parece bastar-se com um café e uma cigarrada. Na realidade ele vem ajudar a ex-amante a escapar à intriga da terrível Emma (Mercedes McCambridge), capaz de tudo quanto possa estar ao seu alcance para conquistar o coração de quem ama.
Truffaut dizia tratar-se de um belo filme “onde os cowboys desmaiam e morrem com a graça das bailarinas” e Ray demonstrava ser o género algo mais do que a acostumada guerra aos índios tal qual o estereotipavam os filmes com John Wayne.


(DIM) «Perfume de Mulher», o filme que garantiu o primeiro Óscar a Al Pacino

Em 1992, depois de revelar o talento em filmes bem mais interessantes, Al Pacino ganhou o seu primeiro Óscar da interpretação masculina com este papel de Frank Slade, um tenente-coronel, que estivera no Vietname e nos serviços secretos durante o mandato de Lyndon Johnson e cegara num acidente com granadas, quando estava embriagado. Trata-se, no fundo, de uma tradição da Academia de Hollywood: ou se esquece de quem mereceria receber a consagração - e o caso mais paradigmático aconteceu com «O Mundo a Seus Pés» de Orson Welles - ou, quando o faz, já é tarde, a desoras e por trabalhos aquém dos que deveriam ter sido premiados.
Quer isto dizer que, num ciclo consagrado a Al Pacino, este desempenho destoa dos já apreciados nos filmes anteriores? Nem tanto ao mar, nem tanto à  terra, muito embora haja neste trabalho em particular um aflorar do cabotinismo noutras circunstâncias bem mais contido.
Martin Brest, o realizador desta suposta adaptação do filme italiano do mesmo nome, assinado por Dino Risi em 1974 - mas quase com nada a assemelhá-los na estória! - mostra a habitual competência dos tarimbeiros de Hollywood, que não surpreendem pelo engenho, mas também não comprometem uma intriga bem urdida.
A vinte cinco anos de distância, quem viu o filme recordará sobretudo a cena do esplêndido tango dançado com uma desconhecida num salão de baile e que garantiu fama eterna a Gabrielle Anwar, que nunca mais conseguiu desempenho, que se assemelhasse a este. Mas tudo se define na relação de Frank com o jovem Charles, contratado por 300 dólares para o acompanhar durante o fim-de-semana da Ação de Graças, porventura o mais importante feriado anual norte-americano.
Cria-se rapidamente uma relação paternal entre o mal humorado militar e o rapaz acicatado por tantos problemas: já não lhe bastava ser um dos poucos pelintras (vale-lhe uma oportuna bolsa!) num colégio elitista destinado a preparar os betinhos para entrarem em Harvard, como tem às costas a ameaça de expulsão por resistir ao papel de bufo pretendido pelo diretor, que lhe exige os nomes dos três colegas, que o terão sujeito a uma partida humilhante.
Incapaz de controlar os acontecimentos Charles vê-se rapidamente num avião tendo por destino Nova Iorque, onde Slade reserva quartos no seleto Waldorf Astoria. É nesse voo, que o vê confessar o fascínio fetichista pelos variados perfumes das mulheres.
Seguem-se dias como nunca Charles sonhara viver: fazem-se transportar em limusines, comem em luxuosos restaurantes, compram fatos de corte irrepreensível. Slade está disposto a usufruir o que de melhor a vida lhe pode oferecer porque, como Charles não tardará a compreender, pretende fazer de tal viagem a sua despedida. Convencê-lo a não usar a arma de serviço contra si mesmo, é tarefa a que se entrega com suficiente competência para o ir disso dissuadindo. Mesmo que isso implique passar pelo susto de ver Slade pilotar um Ferrari em ruas movimentadas, apenas guiado pelas suas orientações.
O final será, obviamente, feliz: Charles verá resolvidos todos os seus problemas e Slade até regressa a casa com outra assertividade para  com os sobrinhos, que lhe suportavam os maus humores.
Quando se chega ao final podemos reconhecer que as duas horas e meia de filme poderiam ter sido encurtadas pelo menos de um quinto para se fixar nas bem mais aceitáveis duas horas. Mas não terá sido essa a decisão de quem se incumbiu da montagem final e só temos de nos acomodar a essa escolha...


terça-feira, junho 20, 2017

(DIM) As inquietações místicas de Terrence Malick

Houve um tempo em que me cheguei a interessar pelas religiões orientais. Andava pelo fim da adolescência e comecei a consumir vulgatas sobre os princípios básicos do budismo. O mais sério terá sido «Siddhartha» de Hermann Hesse, que constituía leitura obrigatória para a geração entre os quinze e os vinte anos nessa época da falsa Primavera marcelista.
Mas também umas coisas difíceis de definir - mas arquiváveis na prateleira das muitas vigarices nessa altura editadas em forma de livro - e que tratavam da experiência de um tal Lobsang Rampa, apostado em nos convencer da existência de uma suposta terceira visão.
Entre o miúdo, que abria os olhos para a indignação antifascista e o que se se questionava e considerava imperioso o conhecimento do eu, andei a vacilar. Tanto mais que esses foram, igualmente, os anos do fascínio dos Beatles pelo vizinho hinduísmo, fazendo publicidade não negligenciável a uns quantos gurus indianos.
Católico já há muito sabia que o não era, budista ou hinduísta nunca sequer me vi tentado a ser tão desinteressantes eram comparativamente com as idiossincrasias em crescente pertinência nas intimas preocupações.
Nestas décadas desde então cumpridas, tenho vivido bem na rejeição dessa condição espiritual, que muitos consideram inerente à espécie humana. O meu Ego é assumidamente contraditório, sujeito às circunstâncias, que o vão reaferindo, mas norteado por um conjunto de valores dos quais nunca abdicarei: os que condizem com a aproximação tão acelerada quanto possível ao objetivo da sociedade sem classes concetualizado por Marx e Engels. Fiz-me comunista de coração, vou sendo socialista na convicção de existirem etapas intermédias imprescindíveis para que o objetivo final não se veja desviado pelas perversas caricaturas das fracassadas tentativas ensaiadas ao longo do século vinte em diversos continentes.
As religiões, o consumismo desenfreado ou certas trapaças regularmente publicitadas para espantar os incautos - ovnis, teorias conspirativas e distrações afins - só servem para iludir os rebanhos acefalizados, diariamente levados para a tosquia das suas mais-valias, impedindo-os tanto quanto possível de questionarem as razões para uns terem tanto e as multidões azombizadas a quase nada acederem.
Foi essa constatação, que me suscitou «Cavaleiro de Copas», o filme que Terrence Malick realizou em 2015. Do autor sabemos o quanto durou o afastamento da indústria cinematográfica depois de estreia animosa nos anos 70. Em tão longo interregno foram muitos os cinéfilos a questionarem-se sobre o porquê de tal exílio, dada a consagração de muitos dos pares, igualmente revelados nesses mesmos anos, e a obrigatória transição para as séries televisivas dos menos bem sucedidos. Pressupunha-se nele a escusa a uma indústria em que não se reconhecia, preferindo-lhe a Filosofia em que se formara.
Algumas exceções a esse voluntário afastamento, uma no final dos anos 90, outra já a meio da primeira década deste século, anunciavam o que «A Árvore da Vida» viria confirmar em 2011: Malick regressava para traduzir em cinema a sua trabalhada cosmogonia interior, profundamente influenciada pelas tais religiões orientais, que haviam sido objeto da minha curiosidade, e de posterior  e convicta rejeição pelo jovem que fui.
«Cavaleiro de Copas» é o percurso iniciático do personagem interpretado por Christian Bale até à encosta da montanha da sabedoria que intenta escalar. A surpresa que me fica é como um  septuagenário se deixa inebriar por algo, que a Ciência tem persistentemente rejeitado ao investigar as profundezas dos nossos cérebros e só julgaria fascinantes para adolescentes a contas com as suas angústias metafísicas. Crenças absurdas como as da reencarnação, dos kharmas e conceitos que tais integram o lado das sombras de um combate de ideias, que importa ganhar em nome da Razão. Tal como acontecia no século XVIII, quando a Revolução Francesa prometia torná-la definitiva, ainda andamos a contas com a sustentabilidade da vitória das Luzes sobre as Trevas. Com efeitos relevantes nos dias que correm: Trump, Erdogan, Orban e tantos outros biltres da mesma espécie vão durando por persistirem essas manifestações sombrias nos nossos dias. Importa destrui-los, reduzi-los a pó com  a força da nossa iluminada aposta num futuro diferente.
O incómodo suscitado pelo filme de Terrence Malick é o da consciência de, pelos mais ínvios meios, haver quem continue a querer mergulhar-nos na inconsequente caverna de Platão.