segunda-feira, agosto 28, 2006

Relâmpagos na cabeça

Os motivos podem ser variados: tumores (que obrigaram a operações, meningites), longas paragens cardíacas ou, mesmo, sindromas de nascença. Em qualquer dos casos apresentados no documentário de Mirchka Popp e de Thomas Bergmann, o que vemos é a realidade através do que sentem pessoas disfuncionais devido a lesões cerebrais.
Há os que tudo esquecem de um dia para o outro, sendo obrigados a aprenderem tudo de novo ao acordarem. Quem não controla sucessões imparáveis de tiques nervosos. Quem vê tudo quanto se mexe completamente desfocado. Quem só tem um lado do cérebro a funcionar para ver ou ouvir. E tantos, tantos casos, quantas as pessoas dispostas a partilharem com a câmara a tristeza e a inquietação por se sentirem diferentes. Apesar da sua inteligência, muitas vezes acima da média.
Vimos essa hora e meia com o fascínio voyeurista, que nos é comum perante este tipo de temas, mas também a compreendermos quão débil é a fronteira entre a normalidade e o que não é. Podendo ser subitamente atravessada de forma involuntária…
Houve um caso, que me impressionou particularmente: o de um homem, que perdera uma grande parte das suas capacidades, quando sofrera uma paragem cardíaca durante um jogo de futebol e estivera demasiados minutos sem qualquer irrigação sanguínea do seu cérebro. Autêntica criança, com esquecimentos frequentes até da identidade dos familiares, ele passou a representar um tal sacrifício para a mulher e para os filhos, que, já após a rodagem das cenas a ele respeitantes, foi internado num lar. Ora, a mulher justificara perante os realizadores, que se sentia com forças para dele cuidar em nome dos vinte e dois anos de felicidade conjugal, que conhecera a seu lado.
Este pequeno exemplo serviu para relativizar tudo quanto hoje parece fundamental e, amanhã, parece perder essa importância…

domingo, agosto 27, 2006

A Evocação de «O Último Tango»

Não adiantou grande coisa o documentário do Serge July e do Bruno Nuytten sobre a importância de «O Último Tango em Paris» na sociedade ocidental do início dos anos 70.
O realizador, Bernardo Bertolucci, recordou que Trintignant e Dominique Sanda haviam sido as suas primeiras escolhas para os papéis de Paul e de Jeanne, mas o primeiro recusara por pudor e a segunda por estar grávida.
Frustrada, assim, a hipótese de reutilizar o par de «O Conformista», o realizador procurou alternativas em Belmondo e em Delon. Que se frustraram …
Marlon Brando que, na época, era tido em Hollywood como um «has been» acabou por aceder no papel desse homem recem-enviuvado, que irá viver uma relação violenta com uma rapariga durante dois dias.
Maria Schneider fora escolhida através de um «casting», depois de referenciada nas noites de boémia no Castel.
Da «nouvelle vague» veio Jean Pierre Léaud, que sentia-se aterrorizado por contracenar com Brando.
Mas teve sorte: sindicalista militante, o norte-americano recusava o trabalho ao sábado, pelo que se rodavam nesses dias as cenas com o conhecido actor de Godard e de Truffaut.
É claro que o documentário vão localizar todo o seu interesse na célebre cena da sodomia com manteiga. Que foi uma autêntica violação, já que Maria Schneider desconhecia a sorte para ela reservada nesse dia. Bertolucci procurava que a sua reacção de choro e de revolta fosse o mais realista possível. Conseguiu-o mas o futuro não seria grato para a actriz, de quem não se voltaria a descolar aquela imagem. Por isso ela não voltaria a dirigir a palavra ao realizador. E reconhece que, hoje, chamaria a Justiça para formalizar a queixa quanto à agressão sexual inerente a essa cena.
No documentário Germaine Greer, a conhecida feminista, não contesta o valor artístico do filme, mas considera completamente oco o papel feminino principal, reduzida a mero objecto de submissão da catártica obsessão suicida de Paul. Mas, ainda assim, o filme contribuiu - e muito - para abanar os valores morais da época. E esse é o aspecto em que o documentário se mostra mais pobre: se evoca as sucessivas revoluções desses anos, não aprofunda o quanto elas significaram a ruptura com o conservadorismo pudico dos anos anteriores.
A Revolução Sexual, mesmo que limitada nos seus resultados, tornou muito mais liberta a sociedade em que vivemos...

domingo, agosto 20, 2006

Coragem portugueses?

Ontem houve uma tentativa de assalto a uma agência bancária em Almada. Um desempregado, já com a vida toda feita num cangalho, julgou encontrar solução naquela estratégia sem cuidar de saber que, hoje em dia, as caixas deste tipo de agências já pouco dinheiro acumulam.
Durante três horas o homem barricou-se no edifício e foi negociando com a polícia. Só depois se saberia que as duas armas com que ameaçava a integridade dos reféns eram de plástico. E que ele era um antigo operário de construção civil, divorciado e já há várias semanas sem contacto com o filho, completamente desesperado com o atoleiro em que se vira. Agora, com os polícias, só lhe restava uma obsessão: não ser reconhecido. O que equivalia a sair dali com a cabeça tapada… Os que ali se puseram a assistir aos acontecimentos reproduziram uma das variantes da psicologia de massas do fascismo, abertamente xenófoba:
- Parece que é um preto! - aventava um.
- Não, não é assim tão escuro… Acho que deve ser brasileiro … - previa outro.
Este exemplo é eloquente quanto ao estado das consciências dos portugueses. Formatados pelos jornais desportivos, que cultivam a clubite mais doentia, ou pelas revistas femininas, apostadas em divulgar as mais inconcebíveis histórias de alcova, os nossos compatriotas fazem lembrar aquele célebre poema de Almada Negreiros, que dizia mais ou menos assim:
- O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem Portugueses, só vos faltam as qualidades.
É claro que os nossos compatriotas não têm toda a culpa por essa situação: o consumo desse tipo de informação inócua, ou mesmo perversamente maligna, é atiçada pelos grandes grupos económicos nacionais, os mesmos que reclamam contra os sindicatos, contra a produtividade dos portugueses e contra a esquerda em geral. Os mesmos que alimentam a ignorância e o cepticismo face aos políticos. E que fomentam o racismo mais primário...
Seria bom converter jornais, rádios e televisões em ferramentas de informação dos portugueses. Mas é a vacuidade dos seus filmes e das suas notícias, que prevalecem.
Depois admiram-se com os resultados dos jovens portugueses nos exames nacionais…
Pudera! Com coisas do tipo «Morangos com Açúcar» ou com a «Floribella» não admira que, desde as mais tenras idades, seja a mais tonta recolha de valores, que se torna dominante...

sábado, agosto 19, 2006

Podemos lembrá-lo, mas nunca celebrá-lo!

O centenário de Marcelo Caetano serviu de pretexto para um conjunto de reportagens televisivas e de artigos de jornal sobre a sua condição de ditador derrubado pela Revolução de Abril de 1974.
Se em muitos desses trabalhos não se iludiu o carácter reaccionário do seu pensamento político - excelente, por exemplo, o ensaio de Vasco Pulido Valente no «Público - noutros enfatizou-se em demasia o papel do ditador enquanto professor de Direito.
Eu que vivi todo o seu consulado numa altura fundamental para a minha formação enquanto indivíduo, não posso esquecer a personificação em Marcelo de tudo quanto, então, sentia de repressão, de castração mesmo do que, enquanto jovem, aspirava.
É com ele que conoto essa ameaça de partir para uma Guerra Colonial para a qual não sentia a mínima predisposição.
É com ele que conoto todo um fascismozinho doméstico em que a moral e os bons costumes contrariavam a mais natural emoção amorosa. O Portugal maledicente, que se alimenta de boatos e de mentiras, não nasceu com as actuais revistas de coscuvilhices: estas mais não aproveitam, que uma herança larvar, ainda bem presente na cabeça de muitos portugueses.
É com ele - um hipócrita ateu, que se usava do obscurantismo religioso difundido pela Igreja - que se continuou a fomentar o misticismo em torno de Fátima na expectativa de distrair os cidadãos de outras crenças mais eficazes.
Foi no tempo de Marcelo, que prosseguiram as investidas da Polícia de Choque ao campus universitário do Campo Grande, sob a égide de gente sem escrúpulos como o eram e são José Hermano saraiva ou Veiga Simão.
É com ele que Ribeiro Santos é assassinado e que muitos caixões continuaram a vir de África.
É com ele que o Padre Sobral era frequentemente levado para Caxias, só voltando passadas semanas.
É com ele que o país estava «orgulhosamente só» e ser identificado como português no estrangeiro era motivo de vergonha.
Cem anos passados sobre o seu nascimento podemos lembrá-lo como protagonista das negras páginas vividas em Portugal na viragem dos anos 60 para os anos 70. Mas é-nos impossível homenageá-lo ou celebrá-lo como pretendem alguns.
Há crimes, que não merecem perdão. E Marcelo foi responsável por muitos eles...

quarta-feira, agosto 16, 2006

«War Photographer», um documentário sobre James Natchwey

James Natchwey leva à letra aquilo que Robert Capa dizia: «If your pictures aren’t good enough you’re not close enough». Por isso ele quase se cola às pessoas, que se transformam em protagonistas das suas imagens.
Christiane Amanpour, a conhecida jornalista da CNN define-o como um grande solitário, que é de uma obstinação extrema no seu trabalho.
Christian Frei, o realizador do documentário, acompanha o fotógrafo enquanto ele capta imagens da mulher bósnia, que chora a perda dos seus familiares, seguindo-a mesmo até dentro do seu casebre. E, na redacção da «Stern» acompanha a discussão entre o chefe de redacção e outros colaboradores sobre as imagens dele recebidas dos Balcãs. Aonde se constata uma óbvia alteração no conceito de guerra, tal qual existia antes da queda do Muro de Berlim: se os conflitos costumavam acontecer entre países, passaram desde então a ocorrer entre povos do mesmo país. Mesmo que com recurso a meios muito menos sofisticados, como ocorreu no Ruanda.
Mas o problema com os fotógrafos de guerra («que foram ver a fuzilaria», como diria António Gedeão), a questão impõe-se: não existirá uma certa pornografia na forma como exploram a violência? Nomeadamente nessa forma abusiva como se aproximam de quem sofre?
Em entrevista Natchwey conta que decidiu ser fotógrafo nos inícios dos anos 70, quando se vicia a guerra do Vietname e era óbvia a dissonância entre o que as imagens revelavam e o discurso dos responsáveis políticos norte-americanos. Foi quando entendeu a capacidade das imagens para se tornarem em testemunhos do que acontece a pessoas vulgares, quando apanhadas no turbilhão de acontecimentos extraordinários.
Embora tenha sentido a dificuldade de acreditar nesse percurso, quando o empreendeu, a partir dos anos 80, foi na convicção de encontrar na disciplina do enquadramento o conhecimento aprofundado do mundo em que vivia.
Mas o documentário deixa dúvidas sobre a capacidade para evitar a manipulação de quem faculta o acesso aos locais a fotografar: em Velika Krusa, ele e Christiane Amanpour vão ao local aonde estão acumulados duzentos corpos de fuzilados. Mas, envoltos em plástico, quem nos diz da veracidade dessa condição de vítimas de um genocídio recente? E as crianças que, oportunamente, aparecem a trazer flores para homenagear esses mortos não protagonizam, involuntariamente, uma forma de acentuar esse horror?
Natchwey reconhece só lhe serem possíveis as suas imagens com a cumplicidade activa de quem ele capta. Quanto mais por isso, o fotógrafo não consegue ser uma testemunha imparcial da História já que depende dessa cumplicidade com os fotografados. Que dele se servem, conscientemente, enquanto veículo de denúncia perante o mundo das injustiças de que estão a ser vítimas…
Hans Hermann Klare, chefe de redacção da «Stern», reconhece que Natchwey mudou desde que o conheceu, muito por efeito dos horrores visitados pela sua objectiva. Por exemplo os do Ruanda, que o levam a interrogar-se sobre o que poderá inspirar tanto ódio. Algo que ultrapassa qualquer entendimento…
Tanto mais que, semanas depois de fotografar os efeitos dos massacres no país sobre os tutsis, ele dirigiu-se aos campos de refugiados de Goma aonde os hutus estavam a ser dizimados aos milhares por uma epidemia de cólera. Como se ali tivessem tomado o expresso em direcção ao Inferno…
Na Indonésia ele fotografa pessoas, que construíram abrigos precários ao longo da via férrea. É outra vertente da sua actividade: testemunhar a pobreza dos mais desvalidos de entre os desvalidos deste mundo. Gente que veio do campo em busca de sustento nas grandes cidades e que só arranja trabalhos miseráveis, insuficientes para lhes garantir condições mínimas de sobrevivência. O caso dos respigadores das lixeiras de Jacarta. Ou dos que trabalham nas irrespiráveis minas de enxofre a céu aberto.
Mesmo nos países supostamente elogiados pela sua «recuperação económica», uma parcela significativa da população em nada dela beneficia. Por isso o interessou tanto o derrube de Suharto. Porque as multidões que, nas ruas, exigia o seu afastamento, estava eivada da emoção de quem se pretende libertar de uma pesada canga repressiva.
Do tempo passado em África, Natchwey traz uma certeza: a fome é uma forma primitiva, mas bastante eficaz, de genocídio. E as fotografias terríveis obtidas em campos de refugiados até não dão toda a dimensão dessa tragédia: como seriam as que seriam obtidas em sítios aonde não existem essas formas de apoio às vítimas desse flagelo?
Mas para o repórter de guerra a divulgação das suas imagens está cada vez mais difícil: vivemos numa época hedonista aonde o que vende são as imagens glamourosas de artistas e de moda. Quem paga publicidade nas revistas não quer ver o que nelas possa incomodar os seus potenciais consumidores.
E, no entanto, é urgente olhar a realidade de frente. Fazer qualquer coisa para a modificar.
A esperança, para Natchwey, é que as suas imagens contribuam para essa candente evolução...

«Local Angel»: fragmentos políticos e teológicos de Udi Aloni

Com uma piscadela de olho Deus criou uma multidão de anjos, condenados a cantar louvores e, depois, a desaparecerem. Para escapar a esta triste sorte um anjo pode adoptar um humano e disfarçar-se de anjo da guarda.
Mas cansa-se depressa porque é angélico e o homem cheio de vícios. Nessa altura só lhe resta a vontade de cantar os louvores ao Senhor e desaparecer. Mas o homem não quer deixá-lo partir. O anjo tornou-se o seu pequeno Deus pessoal e ama-o tanto que está disposto a tudo - a súplicas, a manha, se necessário à força.
Oito anos atrás Udi Aloni trocou Israel por Nova Iorque. Um mergulho numa espécie de capitalismo visual cheio de néons e de grandes cartazes nas fachadas. Um contexto muito adequado para a sua própria estética pictórica de grandes dimensões, protagonizada por anjos a afastarem-se do seu passado. Pejado de ruínas relacionadas com massacres, genocídios e outras formas de injustiça. Como a da Shoah, sentida como herança incontornável de uma identidade contraditoriamente sentida.
No regresso a Israel ele tenta compreender o momento político à luz da tradição talmúdica, que atribui uma particular veneração ao Monte do Templo, local emblemático da tradição judaica porque associado ao mítico sacrifício frustrado de Isaac por ordem divina. Ora, ocupado agora pela Mesquita Al Aqsa, os sionistas não têm condições para venerarem como desejariam esse símbolo da sua tradição. Por isso substituíram essa veneração ao Monte do Templo pelo mesmo sentimento em relação ao seu Estado, a quem respeitam enquanto ferramenta de Conhecimento e de Revelação. Um Estado apocalíptico, sempre à beira do abismo, como se a sua perspectiva futura não fosse a destruição, mas a reconstrução.
Udi Aloni também questiona uma célebre profecia do sábio Gersham Sholam que, em 1926, alertava quanto aos riscos de expansão da língua hebraica, porquanto ela perderia, dessa forma, o seu carácter simbólico.
Numa abordagem mais prosaica do que é o judaísmo de hoje, Udi leva-nos a conhecer a mãe, que fundou o Movimento dos Direitos do Homem, em Israel, para dar apoio a quem dele careça. Judeus, árabes ou de qualquer outra origem racial.
Ela execra os rabinos, que se orgulham da sua fé e defendem a destruição criminosa dos que a não professam.
Uma das amigas da mãe, aqui entrevistada, é a antiga ministra Hanan Ashrawi, que se vive hoje numa época muito perigosa devido à tentativa inimiga de desumanizar os palestinianos, arrasando-lhes as casas, como se eles tivessem culpa de existir.
Nas conversas com a mãe ou com Arafat, Udi Aloni defende o princípio de dois Estados independentes a viverem lado a lado, cumprindo o plano original de seis décadas atrás. E escandaliza os seus compatriotas ao solicitar perdão ao defunto líder palestiniano por cinquenta anos de sucessivas agressões israelitas nos últimos cinquenta anos.
Para ele não existe qualquer dúvida: o fundamentalismo palestiniano alimenta-se do próprio fundamentalismo israelita. A tragédia foi essa transição para o campo religioso de uma abordagem racional, só possível numa perspectiva laica.
Mas a esperança numa solução pacífica é logo condicionada pela diferença de opiniões entre Udi e a mãe a respeito do direito de retorno dos palestinianos desalojados em 1948. Mesmo progressista a anciã recusa essa hipótese que, por razões demográficas, depressa poria um ponto final ao Estado judaico. Ora Udi evolui o seu pensamento ao longo documentário ponderando na exequibilidade de existir apenas um Estado binacional onde todos se respeitem nas suas diferenças.
Para as mães de um e de outro lado a urgência é pôr um fim ao sacrifício dos filhos…

segunda-feira, agosto 07, 2006

As infelizes circunstâncias

«A Casa Quieta» do Rodrigo Guedes de Carvalho foi uma boa surpresa, agora que o acabámos de ler.
A princípio a influência do António Lobo Antunes condicionou a nossa apreciação: afinal um seguidor raramente se pode comparar a quem o inspirou. Mas, passadas as primeiras páginas, as opções estilísticas do autor foram-se definindo e dissociando de uma lógica de pastiche.
A história é muito simples: Mariana vai morrer de cancro, depois de uma vida quase inteira passada ao lado de Salvador.
Teria sido uma relação perfeita se existissem filhos (mesmo que só tardiamente os procurassem) ou se um incidente de vinte anos atrás não acinzentasse tudo quanto depois haviam vivido. Uma confissão de infidelidade de Salvador quando escalavam Nova Iorque antes de visitarem as irmãs de Mariana no Canadá.
Esse episódio voltará a mostrar-se pertinente quando, em vésperas da sua morte, Mariana exigirá dele a revelação da identidade dessa fortuita amante. E, não o conseguindo, invectiva-o por ter sido um verdadeiro salafrário, que tudo deitara a perder…
Mas Salvador era perdedor em muitos outros tabuleiros. Por exemplo, enquanto arquitecto, jamais conseguira criar uma casa sua, dispersando pelas muitas saídas do seu estirador os pormenores daquela virtualidade.
Não conseguira, igualmente, ajudar o irmão, António, condenado à irreversível loucura muitos anos passados sobre os traumas acumulados na experiência colonial.
Frustração, enfim, com um pai quase obsessivo na forma como orientara toda a sua vida e com quem jamais entabulara uma conversa franca nos jantares marcados para o mesmo restaurante de sempre.
«A Casa Quieta» acaba por ser um romance de amores infelizes. Porque dependiam de realizações profissionais, que jamais haviam ultrapassado a dimensão mediana dos talentos limitados. Mas, sobretudo, porque Salvador e Mariana perderam pelo caminho a capacidade para fazerem do seu Amor a obra de arte mais perfeita...

domingo, agosto 06, 2006

O mito da inocência infantil

No balanço do que foi e será este ano de 2006, quando se equacionar o ocorrido na Justiça será bem negra a página em cujo rodapé figurar a sentença do caso do transexual assassinado no Porto.
A pena aplicada aos criminosos deveria levantar um coro de indignação que, infelizmente, não se faz ouvir neste país encerrado para férias.
A decisão do Tribunal acaba por insultar o sofrimento da vítima e por desculpar a perversidade dos homicidas. A quem a idade serve de desculpa …
Ora, já se encarara com este cenário no caso de pedofilia na Casa Pia em que as crianças foram sacralizadas como vítimas inocentes e os seus clientes diabolizados e sujeitos a ostracismo colectivo.
E assim se criou um mito em nada consonante com a realidade, que traduz a realidade numa perspectiva maniqueísta em que as crianças são sempre inocentes e os adultos culpados, ora de serem diferentes (no caso de Gisberta), ora de se socorrerem do sexo pago para se satisfazerem.
A realidade é, claramente, outra. As crianças podem ser adoráveis e ternurentas, mas também conseguem ser odiosas e viciosas.
E se provém de origens sociais em que a desestruturação do quadro familiar suscita uma negação dos valores comummente aceites, temos delinquentes em potência, que não olham a meios para satisfazerem os seus desejos. Que podem ser sexuais - porque nem o inefável dr. Pedro Strecht conseguirá negar existirem na criança desde que nasce - ou de mera aquisição de bens de consumo.
Embora desconhecendo qualquer das alegadas vítimas desse caso de pedofilia, conjecturo a possibilidade de algumas delas até nem terem sentido problemas de consciência em prostituírem-se para auferirem roupas de marca ou gameboys.
E, no caso de Gisberta, pode-se sentir alguma complacência por quem torturou outro ser até à morte?
Que tipo de adultos irão ser, quando a idade já não lhes servir de álibi?
A solução engendrada por um partido parlamentar - imputar condenações severas a partir de uma idade mais baixa - não servirá para evitar recorrências de tragédias deste tipo.
Se fosse assim os violadores e os homicidas pensariam melhor antes de executarem os seus crimes …
A solução passa, pois, por uma sociedade diferente, que exija sentido de responsabilidade a quem decide ter filhos.
Só avançando para esse projecto com a garantia de se desejar, de facto, gerar um novo ser como corolário de uma relação amorosa perspectivada como perdurável, se evitarão verdadeiros
«monstros sociais» condenados a, mais tarde ou mais cedo, apodrecerem nas prisões…
Daí a importância da despenalização do aborto. O autor de «Freaknomics» já demonstrou, estatisticamente, como uma mudança legal nesse sentido fazia diminuir os índices de criminalidade vinte anos depois.
Parecendo difícil achar relação causa-efeito entre essas duas realidades não é difícil adivinhar passados afectivos problemáticos nessas crianças atiradas para instituições do tipo da Casa Pia ou das Oficinas de S. José. Que se traduzirão em comportamentos associais em muitos deles, quando chegam à vida adulta!
Ou muito antes disso mesmo acontecer como se viu no crime do Porto…