terça-feira, agosto 30, 2011

Livro: «Nada a temer» de Julian Barnes (2)


Se encontro semelhanças comigo no percurso de Julian Barnes para a descrença em Deus, o convívio com padres é decerto uma das mais óbvias.
No livro ele recorda um padre Hubert, que explicava o seu investimento na religião com o cinismo racionalista de um Pascal, já que no balanço entre o deve e o haver de tudo quanto até aí fizera na vida, sopesava bastante mais a possibilidade de existir um Paraíso no Além, só acessível aos que tivessem dado provas de credulidade a seu respeito. Daí que persistisse há muitos anos nessa aposta, por muito que o feitio o fizesse pender para atitudes ou brincadeiras muito pouco cristãs.
No meu caso pessoal tive mais sorte, porque a alternativa ao primarismo do discurso papista foi-me dada pelo padre Sobral mediante algo particularmente atraente para o meu então ideário adolescente: uma mistura de catolicismo com budismo em que existiria uma certa força universal orientada para a justiça e para o auto-aperfeiçoamento, que nos guiaria os passos para uma sociedade utópica, mas exequível.
Numa altura em que ainda não pusera de lado a hipótese de uma qualquer transcendência, aquela tese tinha a virtude de acompanhar um estilo soixante-huitard, em que parecia realista pedir o impossível e justificado o apego a um discurso político antifascista e anticolonialista, que se revelava atempado em pleno estertor salazarista-marcelista.
É claro que ficavam para trás as visitas a Fátima em que os rituais assumiam formas grotescas em completo desfasamento com algumas das vertentes mais jubilatórias da Bíblia.
Tomar a fé como a expressão de uma resignação perante o sofrimento e a aposta em improváveis milagres, que excluiriam o recurso à ciência em proveito de rezas e de mezinhas de charlatães, causara-me a primeira reacção de distanciamento perante a possibilidade de um Deus.
A realidade da morte viria a seguir, sobretudo a incompreensão para os atropelamentos de colegas de escola trucidados pelos rodados de camiões, que faziam secantes nos seus caminhos, ou para essas imagens chocantes provenientes do Biafra em que miúdos da minha idade ou mais novos surgiam exangues, condenados por interesses políticos e económicos inacessíveis à sua atónita compreensão.  Como se poderia aceitar que um Deus omnipotente e omnisciente pudesse ficar indiferente a tais realidades?
E até os versos de um dos poetas acarinhados pelo regime de então («mas as crianças, Senhor/ porque lhes dais tanta dor?!.../ Porque padecem assim?!...») vinham fundamentar a desconfiança perante o emissário das orações dos crentes: afinal e se lá nos altos céus só existisse uma gritante ausência de quem as ouvisse?
O meu distanciamento de Deus teve, afinal, essa causa: a sua surdez perante os notórios sofrimentos de quem lhe devotava tal credulidade…
Como diria depois Saramago, Deus não era entidade em quem se pudesse fiar...

segunda-feira, agosto 29, 2011

Bach Piano concerto No.1-1M (1/3) R.Chailly K.Armstrong Gewandhaus Orche...

Filme: DOIS ANOS COM ALFRED BRENDEL E KIT ARMSTRONG de Mark Kiedel (2010)


Há três anos, quando Alfred Brendel esteve pela última vez em Portugal na digressão em que se despediu definitivamente do seu público, não consegui bilhetes para estar presente num espectáculo, que se adivinhava memorável. É que não se tratava apenas da última oportunidade para testemunhar ao vivo o talento de um dos maiores pianistas da segunda metade do século XX: era, igualmente, a possibilidade para ver a grande música interpretada com aquilo, que nunca lhe pode escapar: a emoção do êxtase quase absoluto.
Compreende-se que a apresentação no canal franco-alemão ARTE do terceiro dos documentários realizados por Riedel com tal pianista figurou esta semana como prioridade absoluta na agenda. Justificadamente, concluo a posteriori. Porque se trata de um daqueles filmes memoráveis, que serão objecto de referência em muitas das conversas futuras em que quererei exemplificar o que é a sageza da velhice ou a passagem de testemunho entre gerações tão distantes.
É que entre Alfred Brendel e o seu aluno Kit Armstrong existem quase seis décadas de diferença. Razão para que nem passasse pela cabeça do velho pianista dar aulas a tão jovem discípulo. Como ele costuma dizer, para se ensinar alpinismo a uma criança não se vai necessariamente buscar um guia de montanha. Mas, confrontado com algumas gravações do miúdo de quinze anos, ele concluiu pela urgência em lhe dedicar o tempo necessário para lhe passar muitos dos seus conhecimentos obtidos em tão longa carreira. Que são sobretudo os dessas tais emoções, porque técnica é algo que não falta a Kit, nem rapidez de aprendizagem. Sobredotado por natureza, ele tinha atrás de si um percurso académico notável na área das matemáticas e da composição. Faltava-lhe essa capacidade para sair da rigidez das regras para soltar o corpo e torná-lo veículo da sensibilidade do compositor, seja ele barroco, romântico ou até contemporâneo. Por isso o vemos a tocar reportórios tão variados como o são Bach ou Mozart, Schubert ou Chopin, desembocando depois em Ligeti.
Mas, velha raposa, Brendel sabe que não pode cair num dos erros de palmatória, quando se trata de tutelar jovens talentos: por isso se irrita quando os jornais já dão o discípulo com o grande pianista do século XXI. A prosápia poderá fazê-lo estagnar num patamar evolutivo, que o impeça de ir mais além. Mimetizando, por exemplo, o trajecto de um Lang Lang a quem alguns classificam de clown em vez de pianista.
Nos seus cinquenta e cinco minutos o documentário é extremamente rico em informações, quase nos tornando alunos de uma verdadeira master class. Que será aquilo em que nos poderemos converter durante uma tarde de Fevereiro de 2012, quando o mesmo Brendel vier dar uma conferência à Gulbenkian com a exemplificação da mesma arte aqui transmitida a Kit.
E como refere um dos entrevistados do documentário, será muito curioso acompanharmos a carreira de Kit nos próximos anos, porque ou o veremos a cumprir as melhores expectativas do seu professor ou o daremos como mais um exemplo de um génio precoce, que se apaga ao chegar ao estado adulto.
Quase dá para apostar, que ainda muito ouviremos falar deste jovem artista, ainda em formação...

sábado, agosto 27, 2011

Filme: KAMCHATKA  de Marcelo Piñeyro (2002)

Em 1976 a Argentina passava a ser governada por uma ditadura militar, que prende e tortura os seus opositores. O excelente filme de Marcelo Piñeyro mostra a odisseia de uma família, que se esconde numa área rural longe das grandes cidades. E quem nos serve de guia nessa viagem ao passado doloroso de tantas famílias argentinas é um menino de dez anos, Harry, cujo pseudónimo resulta do seu fascínio pela personalidade de Houdino, o mago especialista em fugas.
Os pais - ele um advogado e ela uma cientista - estão cientes dos perigos por que passam dado o desaparecimento de tantos amigos. Por isso adoptam novas identidades e tentam levar uma vida normal, ainda que acompanhados por um jovem estudante de quem Harry se tornará amigo: Lucas.
O único momento de verdadeira descontracção, encontram-no quando voltam a casa do avô paterno sob pretexto do seu aniversário. Embora a mãe continue a fumar incessantemente e o Pequenote urine noite após noite na cama.
Estamos, pois, confrontados com a realidade de um tempo sinistro em que Videla leva por diante a guerra suja contra quem anseia por uma sociedade mais justa, matando cerca de trinta mil pessoas. E o título refere-se à região do nordeste russo, que constitui a derradeira fronteira para quem resiste contra tudo e contra todos num jogo de estratégia partilhado entre pai e filho mais velho. Um título, que faz, pois, alusão à situação da família disposta a um acto de desafio antes de sua queda final.
Kamchatka pertence a um conjunto de filmes, que cuida dos tempos de repressão através da utilização de metáforas sem recorrer a um discurso militante ostensivo. E consegue ser extremamente sugestivo não deixando esquecer os crimes inspirados pelo sinistro Kissinger...

sexta-feira, agosto 26, 2011

«Nada a temer» de Julian Barnes


Agrada-me muito a leitura do que Julian Barnes escreve. Há uns anos lera com memorável agrado «O Papagaio de Flaubert», que ficara como um modelo possível dos meus próprios objectivos ficcionais pela mistura entre as experiências pessoais e uma erudição orientada para o enriquecimento das ideias ali transmitidas. Uma erudição que não servia para demonstração de quanto o autor sabia em termos enciclopédicos, mas que se canalizava para uma outra perspectivação da obra do grande escritor francês. Que volta a estar bastante presente no livro aqui em equação aonde se mantém a explicitação do fascínio de Barnes pela cultura francesa, e em particular pela que nela se caracterizaram as preocupações e valores dos finais do século XIX, inícios do século XX.
Por isso, quando soube da edição portuguesa de «Nada a Temer», reflexão sobre a morte e a religião, decidi de imediato a sua compra.
Claro que, mais do que não desiludir-me, o livro confirma a opinião sobre o autor: as horas dedicadas à fruição das suas palavras são um óptimo investimento pessoal para reconsiderar os meus próprios conceitos sobre os temas abordados e para incremento de conhecimentos sobre assuntos de que pouco sei (por exemplo, que vontade de partir à descoberta da obra de Jules Renard!).
Não é que a vida de Julian Barnes prime pela novidade: não existem aqui narrações de vivências exóticas nem muito menos heróicas. Aos sessenta e dois anos ele tem cultivado as letras e vivido entre Inglaterra e a França, retirando dos dias a matéria das suas ficções. A família não podia ser mais convencional dentro de uma lógica pequeno-burguesa: progenitores, que terão vivido uma conjugalidade convencional e medianas ocupações de professores, e um irmão, filósofo, com quem é forçoso reconhecer que os mesmos espaços e vivências resultaram em recordações completamente distintas.
Houve, é certo, uma avó, que se afastou da religião e abraçou, com idêntico fervor, as ideias comunistas  na sua vertente maoísta. Pessoalmente, enquanto leitor, teria gostado de conhecer algo mais sobre essa mulher singular com quem partilhei fascínios similares. Mas ela só surge enquanto exemplo positivo de um comportamento perante a religião, quando se trata de manifestar a descrença num qualquer deus, por muita falta. que ele nos faça.
Assim como se falará muito da morte e dos comportamentos perante esse nada para o qual todos tenderemos.
É claro que, pessoalmente, o livro expressa ideias muito próximas das minhas e por isso mesmo é fácil lê-lo com evidente prazer. Diferirei do autor pelo facto de nem sequer me situar numa lógica agnosticista, já que a idade tem aprofundado em mim as convicções ateias. Tenho para comigo a mesma atitude de José Saramago expressa no documentário «José e Pilar», quando a câmara lhe faz esvoaçar os cabelos tendo por trás a telúrica paisagem de Lanzarote: hoje estamos aqui, e depois deixamos de estar!
Porque haveremos de complicar o que é tão fácil de entender? Só por medo é que inventamos deuses e possibilidades esotéricas, que nos iludam essa tendência de regresso ao vazio de que surgimos, quando os nossos pais nos geraram.  Ora não existe nada a temer a não ser o processo por que morreremos, esperando sempre que seja tão indolor quanto possível. Ao contrário da maioria, que não se conforma com o facto de nada existir para além do momento da morte, é o momento anterior, que me intimida. Pelo que implique de sofrimento! Embora a medicina e o próprio corpo contenham paliativos suficientes para que custe o menos possível.
Mas o facto de não acreditar em aléns, tornam mais pertinentes as exigências quanto à conquista da felicidade máxima no presente ou em amanhãs que cantem num horizonte razoável da nossa existência.
Lenine tinha plenamente razão, quando apodava a religião de ópio do povo, porque essa urgência em conquistar a felicidade era e continua a ser torneada pelos bispos, rabinos, gurus e mollahs, que pregam o sacrifício, a resignação, o conformismo como modelo de virtudes a serem premiadas noutras vidas, com paraísos ou ressurreições ilusórias.
O livro de Barnes, embora não abordando directamente qualquer causa política, acaba por ser bastante esclarecedor quanto a uma divisão entre, por um lado, os que temem a morte e por ela fazem profissão de fé numa qualquer crença e os que a não receiam e, por isso mesmo, abraçam causas progressistas de onde a transcendência surge naturalmente expurgada. E, nesse sentido, torna-se num poderoso instrumento ideológico a favor do conhecimento, da cultura e do progresso civilizacional.

quinta-feira, agosto 25, 2011

Lulu und Jimi - Trailer

Filme: LULU E JIMI de Oskar Roehler


A pintura de Edward Hopper e «Sailor and Lula» de David Lynch são óbvias influências de Roehler neste filme sobre um casal em fuga devido à sua ruptura com os valores vigentes.
Lulu conhece Jimi numa feira em 1959. Filha da ambiciosa Gertrud, que a sonha ver casada com o rico herdeiro de uma família de industriais, ela rejeita essa possibilidade em proveito do negro, que trabalhava nos carrinhos de choque.
Bem tenta o irmão evitar essa relação, que perturba os preconceitos raciais vigentes, que acaba numa cadeira de rodas, agredido violentamente pelo seu potencial cunhado.
Quando Gertrud se prepara para fazer Lulu submeter-se aos mesmos tratamentos psiquiátricos outrora infligidos ao marido, o casal foge para viver intensamente o seu amor. Mas Gertrud manda atrás deles o motorista e amante Schulz, que contrata para o efeito um assassino profissional, o truculento Harry Haas.
Os obstáculos à felicidade do casal aumentam, sobretudo quando lhes roubam a arma e o dinheiro das poupanças de Jimi no último ano. Numa emboscada Schulz consegue alvejar o negro, que quase morre. Mas, cansado das acções nefastas da mãe, é o próprio filho quem a asfixia com uma almofada.
Quando Jimi regressa após longa ausência, Lulu dá-lhe a conhecer o filho entretanto nascido.
Pelo meio há a interpretação de Jennifer Decker, a fotografia soberba em cores fortes e momentos de magia. E a culminar no happy end em que todos os maus morreram e os bons saem premiados...

Without Snow trailer.mov

Filme: SEM NEVE de Magnus Von Horn, (2010 )


Filme de fim de curso na Escola de Cinema de Lodz, a média-metragem do sueco Magnus Von Horn retrata  as dificuldades de um adolescente, Linus, a quem tudo começa a correr mal: o seu bullying sobre um colega de escola faz com que seja expulso desse estabelecimento, a rapariga a quem se declara (e é namorada do seu melhor amigo) rejeita-o e a tentativa de vingança sobre quem entende responsáveis pelos seus males acaba da pior maneira com ele ferido numa perna e um dos cúmplices morto.
É evidente, que ainda se sente a fragilidade de uma experiência inaugural, mas o filme inquieta na assumida rejeição a qualquer leitura maniqueísta...

terça-feira, agosto 23, 2011

Trailer Princesas

Filme: PRINCESAS de Fernando Léon de Aranoa (2005)


A filmografia de Aranoa é exígua mas muito interessante.
«Princesas», que já foi realizado há seis anos atrás, é o título subsequente a outro bastante interessante sobre operários desempregados de um estaleiro galego, que iludiam as desilusões em passeios ao sol às segundas-feiras.
No caso deste filme temos uma superlativa interpretação de Candela Peñano papel de Caye, uma prostituta madrilena, que se toma de amizade por uma dominicana clandestina, Zulema, com quem irá partilhar os bons e os maus momentos.
A realidade da prostituição confere ao filme um lado voyeurista, que não escamoteia, porém, o que de mais importante nele se aborda: a solidariedade dos desvalidos, a sordidez chantagista de gente sem escrúpulos, a violência sobre as mulheres, a sobreexploração dos trabalhadores emigrantes, o temor reverencial da morte…
Zulema contrairá sida e regressará à sua ilha caribenha para aproveitar os anos, que lhe restam com o filho, não sem antes se vingar do funcionário, que a violenta à conta dos papeis de legalização jamais facultados. Caye desistirá dos implantes mamários e decidirá revelar à progenitora a realidade dos seus dias. E, no meio de tanta tristeza, acontecem aqui e além alguns momentos de esperança (o episódico namoro de Caye com o informático, que não quisera acreditar na sua «profissão», o passeio das raparigas habitualmente concentradas no salão de cabeleireiro numa limusina ministerial, etc.).
Numa constante do cinema de Aranoa surgem personagens, que se enganam a si próprios com histórias forjadas nas suas mentes perturbadas, mas facilmente desmascaradas no olhar dos outros.


segunda-feira, agosto 22, 2011

1995 - The Net - Trailer

Filme: A REDE de Irwin Winkler (1995)


O filme já tem 16 anos e muito contribuiu para a fama de Sandra Bullock, mas não se pode dizer que tenha envelhecido bem. Continua a ser um policial movimentado na linha das teorias da conspiração, que tanto sucesso tiveram por essa altura, graças a Oliver Stone, mas essa concepção de heroína mais do que improvável, capaz de, contra tudo e contra todos, escapar a todas as probabilidades de ser morta e sair sempre por cima, só nos filmes é possível  Por isso mesmo, «The Net» enquadra-se no tipo de cinema de entretenimento para ver rodeado de adolescentes a mastigarem pipocas e sorverem ruidosamente coca-cola.
E, no entanto, o potencial de utilização das redes cibernéticas para pôr ao serviço de potenciais ditaduras oligárquicas, mantém-se presente embora não de forma  tão primária quanto aqui é mostrado. O tratamento de sistemas Échelon e quejandos até teria o condão de se falar o que já realmente existe contra os direitos mais elementares dos cidadãos a nível global. Mas obviamente esse seria tema demasiado escaldante para ser produzido pelos estúdios de Hollywood...
Sandra Bullock faz aqui o papel de Angela Bennett, uma informática especializada em detectar e eliminar vírus, que vê os seus amigos morrerem ou desaparecerem de forma suspeita, a sua identidade trocada com a de uma condenada por prostituição e tráfico de droga, e a sua vida permanentemente em perigo graças a um assassino a soldo particularmente cruel.  Tudo porque um dos seus amigos tinha conseguido entrar num servidor aonde não era suposto ter acesso. E que, ver-se-á depois, é o de uma empresa vocacionada para a protecção dos computadores federais, mas afinal dedicada a  apossar-se dos mecanismos de poder.
Claro que, como costuma acontecer neste tipo de filmes, é graças à intrepidez dessa personagem, que a democracia norte-americana fica salva e o líder da conspiração mafiosa acaba preso. Para já não falar na morte justiceira de Jack Devlin, que nutrira uma obsessão homicida por ela...

Livro: AGOSTINHO de Alberto Moravia


Nos anos trinta a literatura italiana foi fértil em contos, novelas e romances dedicados a personagens infantis e juvenis.
Alberto Moravia não deixaria de contribuir para essa tendência com duas novelas, que anunciam «Agostino» (1945) e «A Desobediência» (1948): em «Inverno de doente» (1930) ele inspira-se na sua própria estadia num sanatório e descreve a relação sadomasoquista entre um adolescente introvertido e um adulto com quem partilha o quarto; em «A Queda» (1940) revela a iniciação amorosa de um jovem convalescente em férias.
A criação de «Agostino» data logo do início da guerra quando, para escapar aos riscos inerentes à sua ascendência judaica, Moravia e Elsa Morante se vão refugiar em Capri. No entanto, o livro só será publicado depois da queda de Mussolini.
Trata-se de um drama sobre a perda da inocência relacionada com uma iniciação amorosa inacabada. Escrito na terceira pessoa centra-se na evolução sentimental e psicológica do protagonista, um jovem oriundo da burguesia que, aos 13 anos irá conhecer a maior das desilusões: quando conta passar as férias de Verão com a adorada mãe, vê-a abandoná-lo em proveito de um jovem com quem se encontra na praia.
Entregue a si próprio, Agostino irá conhecer uma dupla iniciação - sentimental e social - quando passa a contactar com um gangue de jovens delinquentes liderados por um velho pedófilo. O jovem burguês irá viver sentimentos desencontrados, ora de fascínio, ora de repulsa, por esses jovens cínicos, que o ajudam a dessacralizar o seu ideal materno. Assim sente-se ridículo, quando perde  no braço de ferro com o belo Sandro, ou é surpreendido pelos ciúmes do negro Homs (o nome já indicia a tendência…), quando o pedófilo o convida para um passeio de barco.
Agostino escapa à violação cuja possibilidade nem sequer lhe passava na cabeça, mas ninguém no bando acredita nele, o que o deixa desesperado. No epílogo um camarada leva-o a um bordel para que se «torne um homem», mas ele escusa-se.
A frase final do romance conclui: mas ele ainda não era um homem e muitos tempos infelizes ainda passariam até que chegasse a tal.
O romance denuncia o bem conhecido sentimento de inferioridade e de culpabilidade de Moravia para com os mais pobres por ter sentido a responsabilidade da sua classe social na ascensão e afirmação do fascismo durante tantos anos...


quinta-feira, agosto 18, 2011

Documentário: JAMES COOK, EXPLORADOR DO PACÍFICO de Wain Fimeri, Paul Rudd e Matthew Thomason


James Cook foi um dos heróis da minha adolescência, porventura com uma quota parte de responsabilidade na opção pela marinha mercante durante uma parte significativa da minha vida.
A leitura das suas três expedições  aos mares austrais do Pacífico deram-me o gosto pelo exotismo, que fundamentou uma opção aventureira, quando se tratou de escolher  uma carreira profissional.
Tantos anos passados a oportunidade de regressar a essa biografia através dos quatro episódios recentemente transmitidos pelo canal ARTE, permitiu o regresso a um certo sabor a busca dos tempos perdidos.
O primeiro episódio intitula-se «Um tipo sem história» e traça o percurso dos primeiros 39 anos de vida do explorador antes de se iniciar a primeira das suas viagens míticas, que expandiram as fronteiras do Império Britânico até aos confins do planeta.
Quase dois séculos e meio passados a personalidade de Cook continua a prestar-se a grande polémica: era um herói ou um bandido?
Os detractores qualificam-no como o exemplo lapidar da brutalidade colonialista, mas as cartas escritas à sua mulher Elizabeth Cook e que ela queimou antes de se finar aos 93 anos, depois de longas décadas de viuvez, poderiam porventura dar uma outra versão desse carácter…
O seu nascimento aconteceu numa pobre família, que trabalhava para proprietários rurais. Um deles reconheceria no miúdo de oito anos, que escalava as colinas para ter uma visão de conjunto da paisagem, o talento invulgar para um camponês e dispõe-se a financiar a sua educação.
Ao tornar-se aprendiz de um merceeiro numa  aldeia costeira, James ganha um súbito desejo de se tornar marinheiro, o que o leva a empregar-se junto de uma família quaker possuidora de barcos de carga de carvão, aonde ele irá singrar como grumete.
Em 1755 junta-se à Royal Navy vendo nela a oportunidade de fazer fortuna. E, em dois anos, chega a contramestre…
O grande momento da sua vida acontece anos depois, quando já tem 29 anos e participa na guerra franco-inglesa, que decidirá quem ficará com a Nova França (Canadá). Será aí que descobrirá utensílios de cartografia muito mais precisos do que os conhecidos até aí. E essa arte passará a ser a sua, revelando a sua tendência para a meticulosa identificação dos pormenores.
Será essa formação de cartógrafo, que o ajudará a ter sucesso na sua futura carreira de navegador.
Ao voltar para Londres, conhece, e casa ao fim de oito semanas, com Elizabeth, de quem terá seis filhos. Nos anos seguintes cumprirá a rotina de passar os Verões no Canadá para, a mando do rei, cartografar a Terra Nova e os Invernos em Londres a desenhar os mapas correspondentes.
Chegamos a 1758 e esse será o ano decisivo na sua fama futura: como o planeta Vénus transitará à frente do Sol, os astrónomos ingleses vêem aí a oportunidade para calcularem rigorosamente a distância da Terra à sua estrela mais próxima.
Convocado ao Almirantado, James Cook é convidado a liderar essa expedição, promovido ao posto de tenente. Sem saber que o espera uma missão secreta a ela associada: descobrir o mítico continente austral, recheado de inimagináveis riquezas.
O Endeavour, nome do cargueiro, que lhe é destinado, tem trinta e cinco metros de comprimento e a largura de um autocarro, nele se acotovelando uma centena de homens, entre os quais o rico Joseph Banks, que cultivava a botânica e a astronomia como hobbies e financiara a expedição com dez mil libras.
Em Agosto de 1768 o Endeavour parte para a sua viagem de três anos e, ciente dos riscos do escorbuto, o Capitão Cook impõe uma dieta á base do intragável choucrute a que nem sequer escapam os oficiais Demonstrava, através do exemplo, a capacidade de motivação da sua equipagem, característica que o revela como um eficiente condutor de homens...

segunda-feira, agosto 15, 2011

Filme: JOSHU SASORI, A MELODIA DO RANCOR de Yasuharu Hasebe


Nos anos 70 esta série fez furor no Japão consagrando a sua protagonista, a actriz Meiko Kaji, que personifica Nami Matsushima, a temida escorpião.
Bem pode a polícia, liderada pelo cruel Kodama, investir em esforços e homens, que ela acaba por escapar, mesmo nas situações mais desesperadas. E aqui elas não faltam, quer quando ela é apanhada num casamento, quer quando é encarcerada numa prisão inexpugnável para aí ser enforcada pela morte de oito polícias.
Pelo meio apaixona-se por um antigo militante revolucionário, que a trairá, quando torturado por Kodama e mata, mesmo que involuntariamente, a mulher deste último, que estava grávida.
Há muitas cenas de violência, algumas de sexo sem ser explicito, e uma imagem brutal de um Japão em que a crueldade se exacerba, quer de um, quer do outro lado da lei.
Em si a experiência cinéfila não é grande coisa, mas explicita algumas das principais idiossincrasias nipónicas...

The Adventures Of Sherlock Holmes - S05E04 - The Boscombe Valley Mystery

Conto: CONAN DOYLE, O MISTÉRIO DO VALE BOSCOMBE

Quem terá matado o velho McCarthy, o arrendatário da fazenda Hatherley, situada no vale de Boscombe?
Para Lestrade, inspector da Scotland Yard, não resta qualquer dúvida: as culpas vão para James McCarthy, filho da vítima, com quem fora visto pouco antes a discutir no bosque de separação entre essa fazenda e a propriedade do senhorio, John Turner.
Mas Alice Turner, que pedira apoio a Sherlock, não acredita na possibilidade de amar um assassino. E quer ilibá-lo de tal suspeita!
Mas nem ela, nem James, saberão verdadeiramente que terá sido o pai dela a matar o homem, que o chantageara ao longo dos últimos vinte e tal anos, porque sabia o seu passado de líder de um bando de ladrões na Austrália, sendo essa a origem da sua fortuna.
Sherlock vincula-se ao assassino por um pacto de silêncio já que lhe restarão poucos meses de vida. E limitar-se-á a apresentar em tribunal as provas passíveis de ilibar a culpabilidade de James.  Possibilitando o casamento entre os dois jovens.
O código de valores de Sherlock revela-se ambíguo em relação aos conceitos habituais...

domingo, agosto 14, 2011

The Mosquito Problem & other stories Trailer

Documentário: O PROBLEMA DAS MELGAS E OUTRAS HISTÓRIAS De Andrey Paounov e Lilia Topouzova (2007)


A brigada de desinfecção, encarregada de matar melgas e mosquitos em Belene, tem muito que fazer, mesmo recorrendo à sua fórmula secreta. Tal como o têm os habitantes da pequena vila búlgara, que gostam da quietude da terra, mas são obrigados a essa guerra constante com os agressivos insectos, nem que seja com o aspirador.
Os 9826 habitantes de Belene vivem na margem direita do Danúbio, mesmo em frente da ilha de Persin, que é uma reserva ecológica aonde estão protegidas dezenas de milhares de aves, e perto de quatro grandes pântanos aonde germinam as sucessivas pragas voadoras.
Mas as histórias de Belene não se cingem a esse problema: outras mantém a actualidade a começar pelas memórias dos tempos comunistas, quando existia aí uma colónia penal conhecida pela sua severidade para com os dissidentes do regime. Julia, uma antiga carcereira, que estivera presa durante três anos por homicídio, nega essa versão da história e suicidar-se-á durante a rodagem deste documentário, cansada de uma luta desigual contra a doença de Parkinson.
E há também a central nuclear abandonada, que o poder actual promete reactivar, mas sem que ninguém acredite nos benefícios dela retiráveis pela população.
Dos tempos idos, quando a cooperação entre países comunistas era um facto, resta um cubano, que não se decidira voltar para o Caribe. No entanto, na época anterior à queda do Muro estavam por ali centenas de russos, cubanos e vietnamitas!
Hoje quase todos os jovens zarparam para outras paragens, enquanto os que ali escolheram ficar se entretém com a pesca ou com a caça ao javali.  E outras pitorescas criaturas vão dando algum colorido à vida dos concidadãos, como o padre italiano, que canta «O Sole Mio» para o seu rebanho ou o pianista amador, que detém um piano outrora pertencente a uma das assistentes de Lenine.
Os cruzeiros no Danúbio fazem passar ao largo da vila os endinheirados turistas, que podem pressentir a placidez, a simplicidade e as memórias associadas aquelas margens, mas sem sequer a contactarem…
E o documentário de Paounov e de Topouzova dá-nos um bom retrato do que são as periferias dos antigos países do Leste Europeu aonde a ocidentalização consumista não chegou e onde se vive a nostalgia de uma falsa utopia, que desabou de um dia para o outro com a queda do Muro de Berlim...

sexta-feira, agosto 12, 2011

Edita Gruberova - Casta Diva

Documentário: ELENA GRUBEROVA de Claus Wischman e Stefan Pannen


Confesso que não simpatizo com quem se escapuliu do antigo bloco soviético. Sobretudo sendo artistas consagrados nos seus países de origem, que neles tanto haviam investido e depois privados do seu talento devido à atracção pelo vil metal.
Edita Gruberova foi um desses casos: nascida numa família pobre da antiga Checoslováquia, viu o regime de então reconhecer-lhe o talento, incentivar-lhe os estudos, lançá-la na alta roda do teatro operático e, depois, aproveitando essa oportunidade, ela mudou-se de armas e bagagens para o Ocidente.
Só se lhe perdoa o oportunismo pela sua belíssima voz, por todos reconhecida quanto à sua espantosa coloratura.
O documentário segue-lhe os passos enquanto prepara diversas interpretações da ópera «Lucrécia Bórgia», que merecerá, sobretudo no Liceo de Barcelona, um espantoso reconhecimento dos seus mais entusiásticos fãs. Mas, além desse acompanhamento persistente, os realizadores também intercalam imagens de interpretações suas de há muitos anos, quando começou como cantora de ópera em Bratislava (tinha então 21 anos) e nas suas sucessivas fases de vida em Viena (aonde ficou memorável o seu papel de rainha da noite na «Flauta Mágica» de Mozart) ou em Munique.
Conhecida pela sua franqueza, Edita é descrita por um dos seus admiradores como uma cantora capaz de pôr na linha um director de orquestra ou um encenador menos dotado. A paciência não será uma das suas maiores qualidades como se comprova na sua expressão facial num dos ensaios em Barcelona.
Mas tudo se lhe perdoa quando nos encantamos com a sua interpretação superlativa da ária «Casta Diva» da «Norma» de Bellini.
Personalidade riquíssima de conteúdo a desta soprano que, provavelmente, nunca teremos oportunidade de ver actuar ao vivo...

Design Atrás das Grades

Documentário: DESIGN ATRÁS DAS GRADES de Margarida Leitão (2011)


De entre os muitos projectos sociais passíveis de serem traduzidos em imagens, que os documentem e lhes garantam alguma perenidade, o da criação de peças de design pelas presas da cadeia de Tires é um dos mais interessantes. Porque valoriza mulheres transitoriamente em processo de ressarcimento penal dos seus pecadilhos passados e porque constitui um bom exemplo de reinserção social.
A realizadora centraliza-se em três mulheres: a romena Vicky, a brasileira Iracy e a chinesa Yau. Só num caso sabemos que deviam esse encarceramento à sua condição de correios de droga, mas não é difícil adivinhar nas outras a mesma causa para este idêntico efeito.
A actividade desenvolvida na prisão fá-las ganhar a sensação de um tempo a passar mais depressa, quase lhes parecendo que a libertação e o regresso a casa estarão mais próximos.
Até lá trabalham, lêem, escrevem e sonham com futuros diferentes.
A realizadora também vai até à Venezuela ao encontro de uma antiga detida na mesma cadeia e que levou por diante um projecto próprio no seu país natal a partir dos conhecimentos adquiridos no seu período de prisão. Ainda que o seu maior sonho fosse o de regressar a Portugal, agora na condição de mulher livre, para continuar a aprender e a trabalhar com os designers com quem tudo aprendera.
Mas, para além do projecto em si, o documentário demonstra bem como a amizade solidária se sobrepõe às línguas e às raças de quem coexiste no mesmo espaço concentracionário.

L'année dernière à Marienbad (2) A. Resnais

Documentário: RECORDAÇÕES DE UM ANO EM MARIENBAD de Volker Schlondorff (2010)


É claro que não percebi nada do filme, quando vi «O Ano Passado em Marienbad» pela primeira vez. Ainda estava a entrar na adolescência e deparava com um filme, que começa com um longo travelling, monotonamente descritivo, sobre os objectos pendurados nas paredes de um hotel majestoso. E segue-se depois a vaga intriga de uma mulher dividida entre o marido e o amante, mas sem que nenhum desses personagens exprima emoções, como se deambulassem por aqueles longos corredores e salões, sem sentirem verdadeira vontade para romperem com uma abulia quase epidémica.
Estranho objecto artístico esse, que levou a maioria da plateia aonde me sentava a sair para o calor estival da Costa da Caparica à espera do filme de gangsters, que se seguiria (a versão sinatriana de Oceans’s Eleven) na segunda parte.
E, no entanto, o miúdo ingénuo, que então era, sentiu algum sortilégio por aquelas imagens diferentes de tudo quanto até então vira e esforçou-se por compreender o que lhe parecia mais acessível.
Quarenta anos depois sinto algum alívio ao constatar que Volker Schlondorff, que era então assistente de realização de Alain Resnais nessa aventura, também nada entendia do que se filmava à sua frente. Como parecia, igualmente, o caso da maioria dos técnicos e actores envolvidos nessa produção. Só Resnais parecia dominar o conhecimento do que se pretendia, muito embora viesse depois a confiar a sua insegurança bem disfarçada relativamente a essas oito semanas de rodagem no castelo onde antes Kubrick já rodara «Paths of Glory».
Schlondorff confessa o mesmo fascínio por esse espaço solene donde qualquer psicologia parece ausente e onde nada se parece passar. E essa sensação de se estar a fazer algo até então nunca tentado, porque desaparecia a continuidade no tempo e no espaço.
A bela Delphine Seyrig tinha a câmara focalizada em si, prova da declaração de amor cinematográfica, que Resnais então lhe transmitia. Mas estes filmes então rodados pela actriz Catherine Spira durante a rodagem, agora montados por Schlondorff, manifestam, sobretudo, um grande amor pelo cinema.