domingo, junho 30, 2019

(DIM) A ganância criminosa dos laboratórios farmacêuticos


Em 2005 a norueguesa Renate Hoel morreu subitamente, aos 34 anos, quando estava medicamentada com psicotrópicos para lhe minimizarem os efeitos da esquizofrenia detetada no final da adolescência.
Três anos depois, quando o luto abrandou, a irmã mais nova, Annete, decidiu investigar as razões para o trágico evento sem imaginar que a missão duraria dez anos e poria em causa  a indústria farmacêutica. É que sabe-se que os antipsicóticos têm como efeito secundário a alteração fisiológica do músculo cardíaco, particularmente agravada quando - como acontecia com Renate -, se receita um cocktail desse tipo de medicamentos.
Mesmo enfrentando ameaças explicitas quanto ao que lhe poderia suceder, Annete multiplicou entrevistas e desmascarou os meandros de uma indústria, que corrompe governos através de lobistas infiltrados em todas as instâncias de poder - incluindo as incumbidas de as escrutinar! -, afinal por elas «subsidiadas» na parcela mais significativa dos respetivos orçamentos.
As conclusões são assustadoras: Renate não foi uma infeliz exceção ao sucesso dos tratamentos prescritos com as marcas dos principais laboratórios mundiais. As mortes súbitas, como a que a vitimara, contam-se por dezenas de milhar, apesar de ignoradas pelas autoridades.
Orientadas para a maximização do lucro as empresas farmacêuticas desprezam as consequências da sua ganância, impõem «verdades científicas» que não são validadas por nenhuma entidade independente e surgem escarrapachadas nas principais revistas médicas e científicas para as quais o dinheiro por elas investido na respetiva publicidade insta a nem sequer equacionarem a efetiva falsidade do que publicam. Uma das falácias mais comuns, e desmentidas no périplo de Annete, é o das doenças mentais resultarem de desequilíbrio químico no cérebro, que os medicamentos cuidariam de compensar. Até hoje nenhum estudo sério confirmou tal falsidade.
Ao concluir a investigação, Annete Hoel concluiu, sem margem para dúvidas, que a indústria farmacêutica está-se nas tintas para a saúde dos seus clientes, conquanto encham lautamente os bolsos dos seus acionistas e administradores.

sábado, junho 29, 2019

(I) Elites e Vanguardas


No seu artigo desta semana no «Ípsilon», António Guerreiro aborda a questão das elites, que denuncia por andar a inflacionar o espaço mediático, questionando sobre o verdadeiro significado de quanto é tão referenciado por múltiplos comentadores.
Pessoalmente a questão põe-se-me de uma forma mais simplificada, sobretudo a partir do momento em que os movimentos populistas se apossaram do termo como inimigo de estimação contra o qual invocam a imperiosidade das suas estratégias. Trump ou Salvini, Le Pen ou os novos partidos surgidos de cisões do PSD, usam e abusam da palavra para justificarem políticas de exclusão contra os diferentes inimigos de estimação e abrirem, escancaradas, as portas para a otimização dos lucros de quem se fazem baluartes e os subsidia.
Porque as transformações sociais carecem de quem as estimule e promova não duvido da importância dos que apontam direções progressistas em contraponto aos que pretendem puxar o imaginário coletivo no sentido oposto. É esse o papel desempenhado pelas vanguardas, que tanto foram determinantes na concretização de sucessivas Revoluções, desde a francesa de 1789 até à bolchevique de 1917, e como artisticamente criaram os grandes movimentos de rutura com os valores e as estéticas cristalizadas em caducos conservadorismos.
Essas vanguardas são distintas das elites, que podemos associar aos iluministas da primeira metade do século XVIII, que prepararam ideologicamente as condições para as transformações seguintes, mas se assustaram quando elas começaram a afirmar-se.  Razão de sobra para rejeitar o discurso sempre reacionário sobre as elites e esteja atento aos múltiplos e dispersos sinais das vanguardas, desejando que se conjuguem no momento certo para novos momentos de rutura com as características malsãs da sociedade em que vivemos.

sexta-feira, junho 28, 2019

(DIM) «Daïna, a Mestiça» de Jean Grémillon (1931)


A História do Cinema conta com filmes esquecidos, que mereceriam ser apreciados com a atenção devida aos fenómenos incomuns. Vejam-se os dois minutos e pouco do clip deste «Daïna, la Métisse», que Jean Grémillon realizou, mas a que não quis dar o nome no genérico, porque os produtores decidiram amputá-lo de meia hora, estreando-o com uma montagem totalmente alheia ao projeto original. E, no entanto, mesmo truncado, ele surpreende pela ambiência: estamos numa viagem de mar a bordo de um navio, que se dirige para as colónias francesas do então designado ultramar. Há um espetáculo de ilusionismo para um público com singulares máscaras a ocultar-lhes as identidades. E é dado protagonismo a um ator negro e a uma atriz mestiça, coisa raríssima no cinema dos anos 30.
Ela é Laurence Clavius e parece ter aqui tido o primeiro e derradeiro desempenho no cinema sendo quase nulas as referências a seu respeito. Mas ela é a mulher capaz de sugerir um erotismo perturbador sem adivinhar o quanto ele será a causa da sua perda.
Há, de facto, uma divisão entre o mundo das aparências, que é o dos salões do navio e seu convés em contraponto com a casa das máquinas ilustrativa da bestialidade dos instintos primários. Ora Daïna excita um dos maquinistas, Michaux (interpretado por Charles Vanel), quase sendo por ele violada, restando-lhe defender-se mordendo-lhe o braço.
No dia seguinte quando o comandante providencia uma visita aos navio, e inclui a casa das máquinas, ela identifica o agressor através da ligadura, que lhe protege o braço mordido.
Ela não tarda a desaparecer como resultado da vingança do brutamontes mas, adivinhando o sucedido, o marido logo congemina o desagravo.
Seria interessante aceder à longa-metragem, que Grémillon congeminara, mas para a História do Cinema só ficou esta versão de 51 minutos, que basta para suspeitar do talento notável de um realizador maldito a quem foram negadas as condições para concretizar uma filmografia à medida do que, por esta amostra, o julgaríamos capaz.

(AV) Félix Valloton na Normandia


Das cidades francesas aonde conto regressar, por as considerar particularmente atrativas, Honfleur é uma das que integrará esse périplo obrigatório. Assim a considerava igualmente Félix Valloton, o pintor que viveu entre 1865 e 1925 e aí passou os verões do último quartel da sua vida encontrando inspiração para algumas das suas obras mais representativas.
A sorte sorriu-lhe em 1899 ao desposar Gabrielle, acabada de enviuvar de Gustave Henriques-Rodrigues - de uma família judia portuguesa fugida à Inquisição - e também herdeira da rica família Bernheim. Foi na lua-de-mel passada em Étretat, que Valloton deu com uma luminosidade, que o impressionou e lhe deu o ensejo de pintar quadros nos quais a ridícula burguesia, doravante também a sua própria classe social, ia a banhos à beira-mar. Sociologicamente interessavam-no bem mais as lavadeiras que, fora das horas de lazer dos veraneantes, exerciam na praia o seu mister.
O casal decide ser a costa normanda o seu lugar fixo de vilegiatura  em todos os verões seguintes, mas a partir de 1901 opta definitivamente por Honfleur por ser o local mais inspirador para o artista. As manchas do casario refletidas nas águas do Grand Bassin ou a luz do farol a estender-se pelo areal molhado correspondiam a estímulos utilizados por Velloton para alguns dos seus quadros.
Mesmo quando decidiu deixar a beira-mar e criar o atelier no fronteiro Mont Joli, Velloton continuou a ter a vila, o rio Sena e os campos à volta como temas de eleição, sendo particularmente referenciados os sete crepúsculos pintados em 1911, que exprimiam a magia dos momentos raros.
Embora sem a notoriedade de alguns dos seus contemporâneos, Valloton bem merece que se olhem com atenção muitos dos seus quadros...

quinta-feira, junho 27, 2019

(DIM) «Gestos e Fragmentos» de Alberto Seixas Santos



Em 1983 Alberto Seixas Santos convocava Otelo Saraiva de Carvalho, Robert Kramer e Eduardo Lourenço para, perante a sua câmara, explicarem as circunstâncias que tinham tornado possível a Revolução dos Cravos e depois os tinham deixado fenecer.
O militar explica o quanto mudara a instituição militar antes e de depois da Guerra Colonial, sobretudo quando a falta de oficiais obrigara o regime a alistar milicianos. O 25 de Abril decorrera de uma reivindicação corporativa aproveitada pelos mais politizados para empurrarem o Movimento dos Capitães em direção a objetivos políticos mais ambiciosos. Ainda assim com toda a falta de conhecimentos, que levavam o próprio Otelo a desconhecer a existência de Álvaro Cunhal, quando ele estava prestes a aterrar na Portela.
Kramer interroga-se como fora possível estar tão perto da Utopia e vê-la inviabilizada por um conjunto de episódios difíceis de interpretar mas desconfia terem sido condicionados por diversos compatriotas seus, aqui colocados pela CIA com o fito de orientarem os acontecimentos de acordo com os interesses dos patrões.
Mais datada é a presença de Eduardo Lourenço, que vai lendo partes de um ensaio em que interpreta as diversas fases da Revolução desde os prenúncios durante o salazarismo até ao fim da festa, quando a normalidade pretendida pela burguesia se converteu nesta «Democracia», que está longe de ser do povo, para o povo e pelo povo.
Embora os filmes já não sejam exequíveis neste tipo de conceito - o cinema militante teve de acompanhar a evolução das linguagens em que se exprime! - «Gestos e Fragmentos» mantém o interesse de nos devolver a um passado em que a História parecia passar por aqui, mas depressa a deixou transitar para outros lugares. Grandioso durante uns meses, Portugal regressou ajuizadamente ao estado diminutivo...

(DL) O Caminho Imperfeito de José Luís Peixoto


Nas primeiras páginas surge notícia de um caso macabro: jovens norte-americanos, em turismo pela Tailândia, foram a um mercado de Banguecoque, compraram partes de corpos humanos e quiseram enviá-los para Las Vegas, identificando-os como brinquedos para alguns amigos.
O livro de José Luís Peixoto versa sobre as suas experiências nesse país do Extremo Oriente, que os portugueses conheceram como Sião na época dos descobrimentos e que mantém apreciável quota de exotismo a par da vertente cosmopolita destinada ao usufruto dos turistas ocidentais. Eu que do país só conheci o aeroporto numa madrugada em que o avião para Tóquio teve de fazer aí escala e aproveitei as duas horas de paragem para pousar os pés em terra firme, não me senti tentado a lá voltar. Pela imundície, pela miséria, pelo obrigatório respeito a uma injustificável figura imperial e muitas outras razões acrescentadas pela leitura deste caminho imperfeito.
Peixoto não se fica por ali, porque também evoca as várias visitas à cidade do Nevada para onde os macabros despojos deveriam ter sido enviados acaso não tivessem sido confiscados logo à partida. E esse paralelismo entre Las Vegas e Banguecoque, afinal não tão diferentes quanto suporíamos à partida, perpassa todo o livro, que assinala o nosso país como outro vértice do triângulo, porque, amiúde, Peixoto convoca as memórias relativas a diversas fases do seu passado.
Há personagens incomuns, tatuagens em abundância e um olhar sobre as diversas geografias que as banaliza, as justapõe umas sobre as outras sem nelas sublinhar o que de genuíno possam ainda conter. Às tantas, e numa altura em que aumenta o número dos que associam as viagens de avião à aceleração das alterações climáticas, fica a questão de saber se valerá mesmo a pena buscar vivências assim tão longe de onde se está...

terça-feira, junho 25, 2019

(DIM) O Kung Fu como expressão identitária de uma comunidade


Nunca fizera a ligação causa-efeito, mas um documentário sobre Hong Kong, tal qual a terá vivido o ator Jackie Chan nos seus anos de escola, afirma-o como evidência incontestada: os filmes de kung-fu dos anos sessenta surgirão como expressão da vontade de afirmação da identidade chinesa dos habitantes do território em relação ao colonizador inglês. Os mangas-de-alpaca, cada vez mais numerosos numa sociedade em acelerada terciarização, saíam dos empregos e buscavam entretenimento nos cinemas e preferiam histórias situadas em tempos históricos recuados, pressentidos como fundamentais para a sua definição cultural.
Muito embora apalhaçados e inverosímeis esses filmes terão desempenhado involuntário contributo na afirmação da vontade local em dissociar-se de um império decadente, causador de sofrimentos incomensuráveis nos seus antepassados.
Nesse sentido, e tendo em conta o levantamento popular das últimas semanas, seria curioso investigar que imagens colhem agora os habitantes de Hong-Kong para se sentirem dissociados da pátria chinesa que mostram tanta relutância em integrar...

(DIM) «Paula» de Christian Schwochow (2016)


A História da Arte tem sido injusta com as numerosas artistas, que despontaram na segunda metade do século XVIII e viriam a afirmar-se já no século XX como tendo talento de sobra para equipararem-se com os colegas masculinos do mesmo ofício. Nos últimos tempos têm-se repetido os esforços para consagrar Berthe Morisot como um dos maiores expoentes do Impressionismo, mas muitas outras pintoras e escultoras estão por redescobrir.
Apesar de conhecida na Alemanha, onde até existe um museu a ela exclusivamente consagrado, Paula Modersohn-Becker é uma dessas artistas quase desconhecidas. Razão, que justifica o biopic de Christian Schwochow, mesmo tratando-se de obra enxuta sem grandes rasgos de brilhantismo e com exagerada liberdade criativa no respeito pelos factos. Sabe-se, por exemplo, que Paula alternou diversas estadias em Paris com outras em Worpswede, mas o realizador redu-las a uma só. Não é, igualmente, verdade que a primeira mulher de Otto Modersohn tenha morrido de parto em 1898, já que viria a falecer dois anos depois de ter dado à luz Elsbeth.
Aceitem-se esses atropelos à verdade dado respeitarem-se os demais factos relacionados com a curta vida da pintora, ainda assim capaz de deixar mais de 750 quadros concluídos e muitos outros estudos e desenhos. Estava o século XIX quase a concluir-se, quando a futura artista aproveita uma pequena herança para estudar na comunidade artística de Worpswede, contrariando a vontade do pai, que desejaria vê-la bem casada ou, em alternativa, governanta numa boa casa burguesa, quiçá professora numa escola privada.
O professor que a orienta, Fritz Mackersen, não a satisfaz por desprezar o talento de quem se escusa à representação fiel da realidade de acordo com os preceitos mais convencionais do figurativismo. Ele até nem esconde o convencimento de não existir qualquer talento nas mulheres, que se disponham a ser artistas, encarando-lhes a ambição como desprezível capricho. Azar o seu por só lhe irem chegando jovens mulheres decididas a ali fazerem formação.
Paula torna-se amiga de Clara Westhoff que terá uma filha com Rainer Maria Rilke, mas não conseguirá melhor futuro que o de servir de assistente a Rodin. É quando o dinheiro está  a acabar, sem que o pai lhe financie a continuação dos estudos, que acede ao casamento com outro pintor de Worpswede, Otto Modersohn, cuja filha será a sua amada enteada.
Nos cinco anos seguintes são frequentes os embates estéticos entre Paula e Mackensen com Otto a protege-la mesmo sem compreender-lhe as opções artísticas vertidas para os quadros.
Frustrada como artista, mas ainda mais desiludida como mulher, porque Otto revela-se impotente, nunca concretizando sexualmente o casamento, Paula parte para Paris a expensas de Rilke, que imagina torná-la sua amante, sem contudo vir a ser mais do que um frustrado amigo. Nos meses seguintes ela prosseguirá a formação na Academia Colarossi vivendo pobremente graças aos retratos desenhados aos que se passeiam pelas ruas da cidade e ao dinheiro enviado irregularmente por Otto.
Em Worpswede ele é pressionado por Mackersen para que recorra à lei alemã e interne a mulher por lesar-lhe a reputação. Em vez de o fazer vai procura-la a Paris, aí compreendendo quanto artisticamente ela amadurecera e se revelara tocada pela genialidade.
Os conjugues reconciliam-se e até experimentam finalmente os prazeres carnais. Engravidando Paula vai cumprir ao mesmo tempo a previsão, que confidenciara a Clara - teria vida breve depois de concluir pelo menos três bons quadros - e o terror de Otto cuja impotência se explicava por temer a réplica em Paula do que sucedera anteriormente com Helena.
Precursora do expressionismo Paula Modersohn-Becker desaparecia aos 31 anos depois de enfrentar a sociedade patriarcal, que tanto a pretendera aperrear, e de viver plenamente o ambiente boémio e artístico da capital francesa do início do século XX. Do filme retém-se a fotografia outonal e os enquadramentos ajustados a um filme sobre pintura, mas revela-se paradoxal a abordagem académica sobre a vida e obra de uma vanguardista.