quarta-feira, outubro 26, 2022

Como Romeu Correia continua demasiado atual


Dias atrás, ao falar com a minha irmã, que foi quem me deu a vontade de ir à descoberta do universo literário de Romeu Correia, ouvi-lhe a dúvida quanto a ser legítima ou não a integração do escritor almadense no lote dos neorrealistas. Porque, na verdade, e ao contrário do então verificado nos livros de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol ou Ferreira de Castro, não se sai dos seus livros com uma centelha de esperança quanto ao futuro dos seus personagens. Tudo ali é miséria, exploração, fome e desespero ... apesar da resiliência, que leva a maioria a ir superando o dia-a-dia.

Ao acabar a leitura do primeiro romance do autor - Trapo Azul  (1948) - impressiona-me, sobretudo como a realidade era tão difícil para a maioria das pessoas do meu concelho natal apenas uns anos antes do meu nascimento.  E, como trinta anos depois da publicação, o próprio Romeu Correia explicava aquele terrível estado de coisas à conta da falta de consciência de classe, que norteava a maioria das pessoas: parecia vingar o salve-se quem puder e, como Hobbes já constatara três séculos antes, o homem era mesmo o lobo do homem: «Na pacata vila de Almada, que por esses tempos não ia além de trinta mil almas, passei ao papel uma longa história das pobres costureiras dos fatos de ganga para os operários, profissão-último recurso, sujeita à mais desenfreada exploração das mestras, que nalguns casos (por paradoxo que pareça!) eram mulheres ou filhas de… operários.

A falta de consciência de classe tem sido uma constante anti-revolucionária do povo português; a mentalidade pequeno-burguesa uma alienação, uma nódoa impercetível, que alastra, traiçoeira, por todos os lados. A fome e o frio sofridos na carne não são vistos como uma flagrante e intolerável injustiça social a que devemos pôr fim.»

Infelizmente, e numa altura em que as televisões e outros meios de estupidificação coletiva empurraram uma percentagem significativa da população mais empobrecida da sociedade portuguesa para as ilusões da extrema-direita, só posso constatar que a perspetiva de Romeu Correia continua lamentavelmente atual...

terça-feira, outubro 25, 2022

A Sede do Mal, Orson Welles, 1958

 

Pode-se voltar a ser feliz no sítio onde antes se o foi? Posso afiança-lo a propósito de Robles, cidadezinha na fronteira americano-mexicano, onde dois polícias rivalizavam para explicar quem fora o culpado pela morte do seu mais influente milionário num atentado à bomba perpetrado quando percorria as ruas movimentadas da urbe ao volante do descapotável e tendo ao lado uma  stripteaser.

Não sei quantas vezes vi A Sede do Mal, que Orson Welles rodou para a Universal em 1958, por pressão de Charlton Heston, um dos protagonistas, que tinha uma profunda admiração pelo realizador de O Mundo a seus Pés. Mas todas elas deram-me um enorme prazer por constituírem uma renovada lição de cinema, sempre capaz de me porem a descobrir pormenores anteriormente indiscerníveis. Porque não são só os enquadramentos, com recurso a abundantes grandes angulares e a sombras expressionistas, que contribuem para todo o filme em nada se assemelhar ao que era comum em Hollywood. Os planos-sequência são de uma eficiência a toda a prova tanto mais que se fazem acompanhar de uma banda sonora capaz de aprofundar a dimensão da obra.

E há, sobretudo, a dimensão ideológica subjacente à história. Não podemos esquecer que o exílio de Orson Welles na Europa não se explicava apenas pelo rotundo fracasso de A Dama de Xangai em 1948: nos tempos mais sinistros do macartismo, o realizador merecera particular atenção dos apaniguados de Edgar Hoover, que o consideravam perigoso comunista. Ora Quinlan e Vargas representam duas visões opostas da América à luz do que então nela se vivia: enquanto o norte-americano não olhava a meios para prosseguir os seus objetivos e, por isso, forjava provas para inculpar quem considerava criminosos, o mexicano Vargas cingia-se aos princípios da legalidade e arriscava a vida (e sobretudo a da mulher com quem acabara de casar, aqui personificada em Janet Leigh, autêntica mártir de uma história para que se deixava arrastar imprudentemente) no intuito de os ver respeitados. Que Welles tenha transformado todo o argumento de forma a pôr-lhe em causa o maniqueísmo em que assentava e, sobretudo, tenha transportado a história para a zona de fronteira sul dos EUA de forma a dar ao personagem, interpretado por Charlton Heston, a oportunidade de se converter no alvo da sanha racista do colega americano, muito revela sobre o seu génio.

É claro que tudo isto bastou para pôr os cabelos em pé aos executivos do estúdio, que cuidaram de despedir o realizador tão-só assistiram ao filme, que estava prestes a entregar-lhes como produto finalizado. Para Welles esboroava-se a esperança de convencer Hollywood a financiar-lhe as milhentas ideias, que imaginava para espelhar este mundo de contradições e onde os seus tão glosados tiranos viam as circunstâncias adversas precipita-los na queda.

A Sede do Mal fica como um daqueles filmes, que nunca dou como definitivamente vistos. Porque lá virá o momento em que apetecerá revê-lo com o mesmo deslumbramento!

domingo, outubro 23, 2022

O fascinado encontro de Breton com Tenerife

 

Nunca apreciei o surrealismo embora os contos do gin tonic do Mário Henriques Leiria ou os quadros de Cruzeiro Seixas relativizem esse juízo. Mas, pelo contrário, sempre detestei a personalidade de Salvador Dali e antipatizei na generalidade com quantos fizeram desse credo artístico a assumida arma de arremesso contra o neorrealismo. Como foi o caso de André Breton depois da sua expulsão do Partido Comunista Francês em 1933.

Li uma vez L’Amour Fou e confesso ter-me deixado completamente indiferente. Embora tenha lido com particular interesse, pela coincidência de o descobrir logo após breve passagem por Tenerife, o capítulo agora evocado numa breve reportagem sobre a sua visita à ilha canarinha na primavera de 1935. Não tanto pela metáfora por ele encontrada na relação da paisagem com o desejo amoroso por Jacqueline Lamba, com quem foi aí viver três semanas de lua-de-mel, mas pelas surpresas por ela suscitadas. Por isso, mais do que a reaferição dos seus entusiasmos surrealistas, interessaram-me esses lugares por onde andou e tanto o impressionaram. Mormente as praias de areia negra a norte da ilha, que o puseram a refletir sobre o tempo e as origens da vida, dada a estranha realidade nelas vislumbrada. Ou os jardins paradisíacos do vale de Orotava com plantas de aspeto singularmente sexual, quer na fálica masculinidade, quer na carnuda feminilidade. Fascinou-o, sobretudo, o dragoeiro, cuja resina vermelha sugeriu ilações metafóricas, que lhe tenderiam a confirmar as premissas por que, então, se batia. Ou, enfim, a ascensão aos mais de três mil metros de altitude do vulcão Teide, ponto culminante da Espanha, que lhe permitiu mergulhar em opaca névoa, que conotou aos das portas do conhecimento.

Não consta que ele tenha alguma vez conseguido sair da névoa em que, ideologicamente, mergulhou, mas em que também se celebrizou. Tenerife terá sido um ponto de passagem, mas que o terá deixado na mesma confusão em que ali chegou. 

sexta-feira, outubro 21, 2022

Stargate, Roland Emmerich, 1994 

 

Estão tão longe os distantes dias de antes da Revolução de Abril, quando uma coleção de livros de capa preta da Europa-América disseminava os mais estapafúrdios disparates sobre as antigas civilizações, que teriam tido origem ou, pelo menos, a colaboração de seres alienígenas. As teorias da conspiração ainda andavam ao nível do mais pueril amadorismo, mas já denotavam uma imaginação, que pretendia distrair-nos das coisas verdadeiramente importantes então a passarem-se.

Hollywood deu a Roland Emmerich a possibilidade de assinar filmes de orçamentos generosos, mas ele nunca deixou de ser um tarimbeiro, que sempre intentou explorar a espetacularidade dos argumentos em detrimento da sua coerência. E é isso mesmo que se constata neste Stargate, iniciado com a descoberta de um portal para outro universo em Gizé em 1928 e depois aproveitado pelo Exército norte-americano para avaliar as potencialidades dessa novidade. Pelo meio há revoluções antiesclavagistas no Antigo Egipto, e depois no planeta Abidos, para onde se desloca um grupo de operacionais dispostos a espreitar o que se oculta do outro lado desse portal, levando consigo um linguista capaz de se expressar num rebuscado dialeto do tempo dos  faraós.

Há cenas de ação ao nível do mais comum cinema-pipoca e um romance amoroso com o seu quê de Eurídice devolvida da morte para a vida sem que o seu Orfeu se veja constrangido a grande prova.

Quase trinta anos depois o filme continua a ser muito fraquinho, mesmo contando com os contributos de Spader e de Russell. 

terça-feira, outubro 18, 2022

Os rostos velados de Magritte e o neonazismo alemão

 

1. Existe alguma relação causa-efeito entre a forma como foi encontrado o corpo da mãe de René Magritte e os quadros em que as personagens aparecem com tecidos a obscurecerem-nos a revelação dos seus traços? De facto terá sido assim - o rosto tapado pela camisa de dormir com que se fora afogar no rio perto de casa - que o rapaz de catorze anos lhe terá conservado a derradeira imagem.

Treze anos depois quando, em 1925, aderiria ao surrealismo, talvez nele buscasse resposta para os mistérios íntimos, que sabia inerentes à própria existência. E que não ignorariam as contradições de um espaço natal dividido entre duas línguas e outras tantas culturas. Talvez por isso os rostos, mesmo quando descobertos, são sempre inexpugnáveis quanto às suas emoções. E ninguém dele conseguia uma explicação para o conteúdo do que pintava apesar de muitos dos seus títulos (Ceci n’est pas une pipe é exemplo lapidar!) suscitarem efeitos desconcertantes nos que os tentavam interpretar.

Porque constituiu uma espécie de síntese de sua obra, talvez valesse a pena olhá-la nas enormes pinturas com que revestiu as paredes do casino de Knokke-le-Zout, estância balneária flamenga onde se atardava a olhar para o infinito horizonte e para as nuvens, que lhe sugeririam muitos dos trompe l’oeil vertidos para os seus quadros. Porque estão lá todos os motivos e personagens da obra, desde a icónica maçã (depois adotada para símbolos dos Beatles ou da Apple) até à inquietante forma como sempre gostou de reproduzir um cenário noturno.

2. Mistério é o que não sobra da visão do filme realizado por Aysun Bademsoy sobre os crimes neonazis perpetrados entre 2000 e 2007 e que vitimaram oito comerciantes turcos, um grego e uma polícia alemã.

Crimes neonazis du NSU é particularmente revoltante no facto das autoridades alemãs terem mantido anos a fio uma linha de investigação, que explicaria esses crimes como relacionados com tráfico de drogas e guerras entre gangs de emigrantes, ignorando as claras motivações racistas que, desde o início, poderiam explica-los. Não tivesse falhado um assalto a um banco com que o grupo de assassinos se financiava, e nada se saberia sobre grupos de fanáticos dispostos a assassinarem como forma de darem vazão ao seu ódio aos estrangeiros. E, mesmo em retrospetiva, as famílias das vítimas sentem-se injustiçadas por terem saído em liberdade muitos dos militantes clandestinos dessa organização criminosa. Em aparência é todo o aparelho judicial e policial alemão, que parece estranhamente comprometido com quem se furta a cumprir os pressupostos antinazis da constituição alemã!

sexta-feira, outubro 14, 2022

Histórias: ficcionadas umas, reais outras, falaciosas as demais

 

1. Que bem sabe ver um excelente filme sobre a vida real de quatro famílias romanas, pródigas em inquietações e tristezas, nunca encontrando as alegrias de que, em tempos, se terão sentido merecedoras. Numa Itália a tender para a extrema-direita, Nanni Moretti nem precisa de uma abordagem declaradamente política para caracterizar o ar dos tempos no seu país, porque entre um casal frustrado com o resultado da educação propiciada ao filho e a vizinha condenada a educar quase sózinha a filha, porque o marido está sempre ausente, entre o casal de velhos a contas com os efeitos da senilidade de um deles e a obsessão do vizinho, que teme ter tido a filha abusada sexualmente, somam-se quatro histórias, que nos são introduzidas com um início notável em que um acidente mortal logo nos esclarece quem são os condóminos de um prédio anódino.

Existe em “Três Andares” (2021) uma manifesta superioridade das mulheres sobre os homens, eles intrangisentes nos pontos de vista, elas mais assertivas, prontas a compreenderem as perspetiva alheias. Mas sem chegar a um ponto de vista feminista. Porque, como diz Moretti, para este último, que sejam as próprias mulheres a dá-lo.

2. Foi há cinquenta anos que Ribeiro Santos foi assassinado num anfiteatro do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Para assinalar o acontecimento Diana Andringa realizou “12 de Outubro de 1972: O Dia em que Perdemos o Medo” em que dá voz aos que participaram nesse acontecimento e o consideram basilar para o aceleramento do processo politico e social, que redundou na revolução de Abril.

Lamente-se, porém, que não se tenha sabido mais sobre o pide assassino. Teria sido grata a revelação de que, de uma forma ou de outra, ele terá pago pelo crime, apesar da Justiça fascista e do período pós-revolucionário o não tenham incomodado. A estar ainda vivo teria gostado que Diana Andringa tivesse-o confrontado com a sua consciência. Se é que alguma vez a teve!

3. História ainda menos conhecida a que poderemos ver amanhã ao fim da tarde na Arte: “Black Far West - Une contre-histoire de l'Ouest » de Cécile Denjean revela como a conquista do Oeste norte-americano foi empreendida por muitos negros, que viram nessa gesta  a forma de melhor se libertarem dos estigmas da escravatura. Mesmo contribuindo assim para o genocídio índio. Sendo percentualmente grande parte dos vaqueiros, também tiveram dos mais famosos xerifes das novas fronteiras, mesmo que o western os tenha depois embranquecido.

4. A CIA não se poupa a esforços para diabolizar tudo quanto possa contrariar o declínio do império norte-americano. “Des dollars pour Kim Jong-un“ de Meng Sam-hyun, Tristan Chytroschek e Cho Cheon-hyun assemelha-se à recente mistificação em torno das esquadras clandestinas chinesas nos países ocidentais. Neste caso denunciam-se trabalhadores norte-coreanos escravizados na Rússia, na China ou na Polónia para facultarem divisas ao regime de Pyongyang, assim capaz de financiar o seu programa nuclear. 

quarta-feira, outubro 12, 2022

Devant moi le Sud, Pepé Danquart, 2020

 

Em 1959 Pier Paolo Pasolini partiu à descoberta da Itália, percorrendo três mil quilómetros no seu Fiat Millecento desde Trieste até à Sicília com regresso ao ponto de partida pela costa adriática. E, sobre todas as vivências colhidas no contacto com as paisagens e as pessoas, foi escrevendo um diário de viagem, que retrata a complexidade da identidade italiana e as mudanças então em curso, que já incluíam a desertificação do sul em proveito da emigração para Milão, Suíça ou Alemanha.

O alemão Pepé Danquart refaz essa viagem em forma de filme pontuado pelos textos de Pasolini, mas também pelos encontros inesperados com quem lhe surge pelo caminho. O resultado é um road movie notável sobre uma Itália ameaçada pela globalização e onde tantos emigrantes vindos pelo Mediterrâneo encontram infernos, que contradizem os prometidos eldorados europeus. 

terça-feira, outubro 11, 2022

A Távola de Rocha, Samuel Barbosa, 2018

 

Uma frase de Paulo Rocha antes de começarem a desfilar as imagens do documentário de Samuel Barbosa: “o filme é uma espécie de mesa onde toda a gente traz aquilo de que for capaz e onde depois fica o melhor. Fico extremamente feliz quando alguém pensa que esse esforço vale a pena”.  E, não muito depois, as palavras ditas por quem muito bem o conheceu e o descreve pelo entusiasmo manifestado por uma qualquer janela capaz de lhe justificar o exercício de imaginação sobre o que poderia esconder-se por trás dela.

Paulo Rocha foi mais do que o pai do cinema novo português, que soube lançar com Os Verdes Anos em 1963 e  Mudar de Vida em 1966. Sempre apostado em fazer filmes diferentes uns dos outros neles vincou o entusiasmo pela civilização nipónica numa abordagem ao universo singular de Wenceslau de Moraes, ou ao fenómeno sebastianista, quando a Revolução de Abril já se esvaíra. Ou ainda ao fascínio pela aventura do próprio pai, esse jovem, que partira para o Brasil ainda adolescente e de lá regressara enquanto razoavelmente bem sucedido emigrante de torna-viagem.

Barbosa, que trabalhou com Paulo Rocha durante vários anos, ouviu quem com ele trabalhou - Isabel Ruth, Luis Miguel Cintra, Regina Guimarães - para dar-lhe um retrato complexo, porque multifacetada era a sua personalidade. E vai balizando esses testemunhos em muitos extratos dos filmes, que se fundamentavam numa ambição conceptual, que o afastava do mainstream, e o condenava a um estatuto de personalidade extravagante como o foi também Manoel de Oliveira (que o considerava o melhor realizador da sua geração) ou o é Pedro Costa. Revisitam-se esses momentos e confirma-se a conclusão de se entrar nos seus filmes com a única certeza de sugestionarem reações inesperadas. Porque, mais do que darem respostas às questões que se lhe colocavam, eram veículo dessas mesmas perguntas para as quais éramos nós próprios convocados a encontrar soluções. 

terça-feira, outubro 04, 2022

A Cidade Proibida revelada, Ian Bremner, 2017

 

Será um dos muitos itens da check list dos lugares a visitar, que ficará por contemplar com o respetivo visto. E, no entanto, até estive em Pequim no início do milénio, mas sem que os compromissos profissionais me tivessem dado o ensejo a aproveitar a oportunidade para conhecer o enorme palácio, que o imperador Yongle mandou construir entre 1406 e 1420, mobilizando para o efeito um número desconhecido de centenas de milhares de operários escravizados.

Yongle usurpara o trono ao sobrinho, que fora indigitado pelo próprio pai para lhe suceder no trono, desfeiteando-o da satisfação de uma ambição, que sentia sua por legítimo direito. Mesmo esmagando cruelmente a rebelião, que pretendia manter no trono quem o defunto imperador determinara como indigitado para tal, Yongle sabia que a capital, Nanquim, permaneceria hostil ao seu reinado. Daí a decisão de mudar a capital para Pequim, mandando ocupar os 72 hectares da futura Cidade Interdita, com um labirinto de palácios destinados à sua administração, às concubinas e eunucos, função que seria a sua nos cinco séculos seguinte, e também integrando templos, pontes de mármore e jardins simétricos.

O documentário de Ian Bremner desenvolve as condições históricas em que a construção se processou enquanto visível demonstração de poder do novo imperador mas, sobretudo, explicita a extraordinária estrutura de madeira, que a suporta, apenas baseada no encaixe das respetivas peças em vez de fundamentada numa qualquer argamassa. Atenção particular é dada às suas potencialidades antissísmicas, exemplarmente demonstradas nos muitos e violentos abanões padecidos numa região particularmente sensível a esse fenómeno natural.

É claro que um filme não substitui o prazer de sentir o espírito de um lugar enquanto o visitamos, mas o de Bremner quase satisfaz por completo essa frustração de sabê-lo inacessível no futuro, que nos resta. 

domingo, outubro 02, 2022

Pesticidas : a hipocrisia europeia, Stenka Quillet, 2022

 

Nos últimos anos Bolsonaro alavancou o Brasil como campeão mundial da agrotoxicidade, o que fez jus ao anúncio feito aos industriais do setor  químico, quando tomou posse, considerando-se seu empregado. Em vez de olhar para todos o povo brasileiro como seu legítimos patrão foi para os grandes interesses económicos, que perfilou-se como submisso intendente.

O documentário de Stenka Quillet, estreado há três meses, denuncia outra vertente do crime ecológico e de saúde pública relacionado com a disseminação de pesticidas por todas as grandes plantações brasileiras, ativas consumidoras dos produtos já proibidos na União Europeia. A indústria química europeia ali acrescenta avultados e obscenos milhões de euros aos anteriormente faturados enquanto Bruxelas não decretou o seu banimento. E contando, por exemplo, com Pélé como rosto publicitário de incitamento a esse indecoroso negócio.

O cinismo europeu, que finge ignorar os rentáveis negócios das alemãs Bayer e Basf ou da suíça Sygenta, exportadoras de 80 mil toneladas de pesticidas proibidos para o resto do mundo com a cumplicidade de políticos corruptos, traduz-se numa bomba ao retardador, que se manifesta em malformações e problemas de crescimento em crianças e a presença de compostos químicos danosos para a saúde na água potável das torneiras. Cedendo vergonhosamente aos interesses dos lóbis do setor a Comissão e o Parlamento europeus são coniventes com o facto dos consumidores do Velho Continente apanharem esses produtos tóxicos por ricochete, quando comem laranjas, melões, soja ou café oriundos de um país, onde o próprio governo tem sido conivente com os assassinatos de ativistas ambientais e os juízes dos tribunais - muitos deles também latifundiários! - produzem sentenças sempre favoráveis ao agronegócio.

O filme de Stenka Quillet é elucidativo quanto ao que está em causa com essa conivência europeia relativamente ao gigante político sul-americano, onde acelerou nos últimos anos a deflorestação amazónica. E, mesmo com Lula de regresso à chefia do Brasil, nada aponta para que este tipo de negócios não prossiga como habitualmente prejudicando-nos dia-a-dia num quotidiano em que, sem darmos por isso. são muitos os venenos ingeridos no que comemos ou bebemos.