Em outubro, quando o filme passou no Festival de Berlim, já aqui escrevi sobre a importância de «Censored Voices», assinado pela jovem realizadora israelita Mor Louchy. Mas agora a SIC Notícias anda a apresenta-lo quase clandestinamente de madrugada na rubrica «Toda a Verdade» e valerá a pena alertar para a sua imprescindível visualização.
Recuamos assim no tempo até 1967, quando Israel conseguiu uma retumbante vitória militar, ocupando Jerusalém, Gaza, o Monte Sinai, os Montes Golã e a Cisjordânia e aumentando significativamente o seu território reconhecido pelas Nações Unidas.
Nos dias seguintes à desmobilização dos reservistas, o futuro escritor Amos Oz e o seu amigo Avraham Shapita foram a diversos kibutz para gravarem entrevistas com os que tinham acabado de chegar das frentes de batalha.
O exército logo tratou de censurar a sua divulgação, que só agora foi tornada possível. É que, em vez de testemunhos entusiasmados pelo recente triunfo, as gravações denunciavam um enorme mal estar nos que se sentiam incomodados com a utilização propagandística da expressão «territórios libertados».
Havia os que ainda tinham na memória o que tinham sofrido no Holocausto e o viam agora repetido tendo as populações árabes como vítimas e o «Povo Eleito» transformado em algoz. Mas, mesmo os mais novos, mas chegados das diversas latitudes por onde se tinha espalhado a diáspora sionista, sentiam-se desconfortáveis pela participação em tão cruéis exações contra populações civis completamente desprotegidas.
Um deles confessa: “durante a guerra transformámo-nos todos em assassinos”. E vários reconhecem estar a ser cometido um roubo contra quem há muito criara raízes nas terras e habitações donde estavam a ser expulsos.
Se hoje nos indignamos com os crimes do Daesh o documentário não deixa margem para quaisquer dúvidas quanto aos fuzilamentos de soldados desarmados e de populações árabes, mesmo depois de assinado o cessar-fogo. A única diferença entre os assassinatos do Daesh e os do exército israelita reside na divulgação assumida pelo primeiro e a total censura do segundo. Mas a forma expedita de matar o mais possível no mais curto lapso de tempo é a mesma.
Mor Louchy desfaz o mito do David, que vencera Golias e conseguira assim criar uma nação forte e invencível. Os heróis tinham sido, afinal, criminosos que a Justiça internacional deveria ter levado ao merecido castigo pelo sofrimento perpetrado contra tantos velhos, mulheres e crianças.
Num desses testemunhos de há cinquenta anos um dos ex-soldados antecipa a forte probabilidade de estarem a lançar a semente para uma terrível e inesgotável vontade de vingança. E é essa a sina de Israel nesta altura em que se radicalizou na defesa do seu sionismo mais fanático: poderá ganhar ainda muitas guerras, mas a primeira que vier a perder, significará o fim da presença judaica naquela região. É que não deu, nem dá margem para lhe vir a ser perdoado todo o histórico de comportamento terrorista nestas décadas sucessivas, até por terem enfraquecido a corrente laica nos palestinianos, fomentando o crescimento do fanatismo religioso bem menos disponível para o diálogo e a negociação.
Um parágrafo final para o elogio à opção da realizadora em passar as gravações de 1967 enquanto se veem os rostos atuais dos que nelas testemunhavam alternando com as imagens de arquivo que melhor as enquadravam.
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