quarta-feira, agosto 31, 2022

Antoine Abel, o pai da literatura das Seychelles

 


As ilhas Seychelles foram das mais paradisíacas, que conheci. As tartarugas gigantes a passearem-se pelas ruas de Victoria ou as praias de Praslin, que mais apeteceram frequentar, deram-me a convicção de estar num dos cenários de eleição para utopicamente passar os anos de reformado. Tanto mais que ali estive quando o governo era um dos mais progressistas do continente africano.

Só mais de trinta anos passados sobre ali ter estado é que me chegou ao conhecimento a importância de Antoine Abel como fundador da literatura do seu país. Nos seus poemas, contos e romances denunciam-se os crimes da colonização, quer francesa, quer inglesa, que tinham recorrido fartamente à escravatura. E, ecologista premonitório, ele pôs a decana das suas tartarugas a contar a história de uma nação, que só ascendera à independência em 1976 e com tanto para fazer depois da destruição dos ecossistemas ali perpetrados pelos que tinham personificado o instinto predador dos exploradores sem escrúpulos. 

terça-feira, agosto 30, 2022

Falamos de António de Campos, Catarina Alves da Costa, 2009

 

Justíssima a homenagem a António Campos empreendida por Catarina Alves da Costa sob a forma de um documentário em que dão testemunho muitos dos que o conheceram ou só puderam apreciar-lhe a obra.

Nos sombrios anos 50, quando o cinema português bateu no fundo quanto à quantidade e qualidade dos filmes produzidos, o modesto empregado de secretaria da escola industrial de Leiria começou a filmar com a sua câmara de super 8 e, quase instintivamente, criou um tipo de cinema aparentado com o neorrealismo, mas que era mais do que isso. Porque depois de um documentário sobre o rio Lis em 1957 e duas experiências ficcionais - O Senhor (1958) e Um Tesouro (1959) -, António Campos decidiu instalar-se por algumas semanas numa aldeia algarvia para colher imagens do quotidiano dos pescadores do atum: A Almadraba Atuneira (1961).

Desvalorizado, porém, como lobo solitário, que prosseguia a sua filmografia na condição de amador, porfiaria no esforço de rodar filmes de ficção - A Invenção do Amor (1965) - embora fossem os documentários os que lhe garantiriam melhor reconhecimento: Vilarinho das Furnas (1971) , Falamos de Rio de Onor (1974) e Gente da Praia da Vieira (1975).

Voltando à ficção em 1992, com a adaptação de um romance de Ferreira de Castro, Terra Fria (1992), morreria em 1999 sem nunca ter conseguido os apoios, que lhe proporcionariam condições para concretizar os seus muitos projetos. Nem sequer a Gulbenkian, para a qual episodicamente trabalhou, lhe possibilitou ser profissionalmente mais do que o funcionário público em cujo estatuto se reformou. Culpa da timidez, que não conseguiu compensar com a teimosia em fazer cinema, mesmo quando se lhe opunham os maiores obstáculos. Que, muitas vezes, vinham dos que desejava dar memória futura e o rejeitavam com a desconfiança de nele terem um inimigo. Que foi como foi recebido pela população de Vilarinho das Furnas, porém, por ele imortalizada!

segunda-feira, agosto 29, 2022

Ma Loute, Bruno Dumont, 2016

 

Não nos tivesse Dumont brindado dois anos antes com O Pequeno Quinquin e Ma Loute seria uma imensa surpresa. Como já estranhámos e entranhámos essa vertente criativa do realizador - autor de outro filmes deste tão díspares - pudemos preparar-nos para o que nos esperava. Por exemplo ver três excelentes atores (Luchini, Binoche e Bruni-Tedeschi) em deleitados overactings, tão a contrario daquilo que nos  habituaram e por isso ambíguos na forma de se autocaricaturarem. Ou misteriosos desaparecimentos de turistas nos areais costeiros do norte de França numa colorida belle époque, que não exclui os espaços para nudistas. Ou os patéticos polícias, ridículos ora por serem redondamente gordos, minusculamente albinos ou incrivelmente desafinados a tocarem uma trombeta. Ou a família burguesa, dona de grandes indústrias na região de Turcoing, ora capaz de se espantar com o mais trivial, ora disputando-se por lhes estar na pele a incestuosa concupiscência. Ou o rapaz, que era afinal uma rapariga ou, em alternativa, uma vistosa moçoila afinal dotada de uns comprometedores testículos. 

Numa história desopilante há polícias a voarem pelo ar, supostos milagres da Virgem Maria e uma demonstração de como a luta de classes pode ser mostrada numa lógica em que os de baixo servem de burros de carga aos ricos, mas estes acabarão, mais cedo ou mais tarde, nos seus pratos.

Cereja em cima do bolo existe um cuidado estético na fotografia, verdadeiro regalo para os olhos em tantos fotogramas!

domingo, agosto 28, 2022

Uma breve pausa de Aragon à beira do Mediterrâneo

 

Pode-se aprender a gostar de uma cidade, que não se escolheu para viver? A questão pôs-se a Louis Aragon, quando chegou a Nice em dezembro de 1941 para garantir fugaz segurança na parte francesa sujeita ao regime de Vichy, mesmo sabendo-se desde o primeiro dia vigiado pelos esbirros de Pétain.

Acompanhado por Elsa Triolet, com quem casara dois anos antes, não conseguiu eximir-se à culpabilidade de adiar a luta ativa contra os ocupantes em benefício de uma momentânea pausa para respirar. Até porque, aprisionado em Paris, conseguira evadir-se, mas sabia-se alvo potencial dos que não hesitariam em dar-lhe destino igual ao dos muitos outros resistentes.

Enquanto não voltou à luta ativa fez da escrita um catártico exercício não só com textos de apoio aos que lutavam e tombavam, mas também regressando à ficção e à poesia, que deixara em pousio nos cinco anos anteriores. Surgiu assim Aurélien, romance sobre uma frustrada história de amor entre dois jovens na Paris dos anos 20, ele burguês, ela oriunda da província, e ambos a buscarem um no outro aquilo que não conseguiriam nem poderiam encontrar. E também a coletânea de poemas Les Yeux d’Elsa, que continua a ser tido com um exemplo lapidar de um tipo de escrita, ao mesmo tempo amorosa e militante. Porque o ser amado coincide com uma França, também ela obsessivamente querida.

A estadia na cidade mediterrânica durou pouco mais de um ano, porque Mussolini invadiu-a e obrigou o casal e entrar na clandestinidade mais a norte. Mas, antes de partir, Aragon ainda teve a alegria de conhecer Matisse no hotel Regina, tornando-se seu amigo e arvorando-o como o símbolo da esperança nos amanhãs que cantam através das suas multicoloridas telas. 

quarta-feira, agosto 24, 2022

A memória dos ameríndios canadianos

 

Os crimes cometidos sobre os índios, que viviam no atual Canadá, foram execráveis, justificando o pedido recente de perdão do papa Francisco pelo contributo para eles conferido pela Igreja Católica. Mas o debate sobre a forma como os colonos britânicos humilharam e quase eliminaram as Primeiras Nações continua a ser tema muito atual por todo o Canadá.

Nancy Huston, escritora nascida no estado de Alberta, mas a viver em França há muitos anos, pôde ganhar a distância suficiente para aliar o militante feminismo à frequente referência ao genocídio perpetrado nessa terra natal. Neste romance, publicado em 1993, ela tem em Paula a protagonista, apostada em iniciar um longo périplo estrada fora para evocar o avô acabado de morrer. Debaixo do asfalto das autoestradas que rasgam as grandes planícies adivinha os possíveis sinais das comunidades chacinadas pela ganância dos emigrantes brancos a quem se atribuíram quintas, logo transformadas em ranchos de cri

ação de gado, onde outrora os Black Foot e outras tribos haviam cavalgado em liberdade, sem se verem cingidos nas exíguas e improdutivas terras das reservas.

Vindo da Irlanda nos finais do século XIX, onde falira o negócio de vacas leiteiras, o antepassado de Paula que começara por atravessar o oceano e instalar-se na região, seria um dos perpetradores do crime coletivo, convertendo-se num peão das ambições do governo da colónia britânica. 

Momento alto do romance é a descrição do Stampide, primeiro desfile em Calgary, no ano de 1912, em que índios foram trazidos das reservas para, enfeitados com os seus trajes, sujeitarem-se à humilhação de serem apresentados como os derrotados do sucesso branco. Mas nasce então a relação amorosa desse avô Paddon com a mestiça Miranda, sem que ele nunca venha a ter a coragem de romper com a família pequeno-burguesa para se entregar seriamente a quem representa uma filosofia de vida, que sabe mais de acordo com quanto melhor o realizaria. O professor primário, que ganhara respeitabilidade na cidadezinha onde se estabelecera, não poderia associar-se publicamente a quem representava o lado selvagem de uma terra, que os brancos pretendiam domesticada.

terça-feira, agosto 23, 2022

Abraços Desfeitos, Pedro Almodovar, 2009

 

Nas Canárias é a ilha de Lanzarote a que prefiro, compreendendo perfeitamente que tenha sido a escolhida por José Saramago para se exilar depois da desconsideração imposta pelo (des)governo de Durão Barroso. A estadia em Arrecife garantiu-me o encontro com essa paisagem lunar, que depois vi exemplarmente vertida para cinema em dois filmes quase simultâneos: este de Almodovar e o José e Pilar  de Miguel Gonçalves Mendes no ano seguinte. A cena em que, neste último, o nosso Nobel resume a morte a um dia estarmos aqui e no seguinte já não - tendo o vento a agitar-lhe as melenas e a esvoaçar os cabelos da companheira -, nunca mais a esqueci.

Quando o realizador espanhol perdeu a mãe, figura tutelar e quase imprescindível, foi para essa ilha, que quis fazer a catarse por se ver num décor condizente com a sua tristeza. E quando, dez anos depois, criou o argumento deste filme, também ele focado num longo luto, foi para esse cenário que remeteu. Aí ocorre o suposto acidente, que vitima o realizador Mateo Blanc e Helena, a atriz do seu último filme e com quem vivera paixão tão assolapada, quanto efémera, por culpa do marido dela, cujos ciúmes assumiram uma intenção assassina.

Ela morrera, ele ficara cego, reconvertendo-se em argumentista bem sucedido graças à colaboração de Diego, seu secretário e quase filho adotivo. Quando um acidente atira o rapaz para uma cama de hospital é a ele que Harry Caine, o pseudónimo com que escolhera ocultar a sua antiga identidade, revela o sucedido catorze anos antes, quando vivera a felicidade absoluta e dela se vira drasticamente apartado.

Misturando o thriller com o melodrama, Abraços Desfeitos é um dos mais apreciados filmes de Almodovar por nele se poderem encontrar múltiplas referências a muitos dos filmes anteriores, mormente ao Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos.

Pessoalmente, e depois dos seus melhores títulos - Tudo sobre a minha mãe (1999) e Fala com Ela (2002) - foi com este filme (em parte) lanzarotiano, que Almodovar melhor se aproximou dos píncaros do seu talento.

segunda-feira, agosto 22, 2022

O prazer na leitura de Simenon

 

Se há escritor que lamento ter lido pouco, embora lhe conheça razoavelmente a obra à conta da sua adaptação em séries televisivas, é Georges Simenon. Daí corrigir a falha lendo-lhe alguns livros, comprovando aquilo que ele confessava: “cada capítulo dos meus duzentos e vinte romances é o resultado de algumas horas a caminhar”.

Maigret, o emblemático protagonista da maioria desses títulos, é um polícia particularmente atento aos pormenores da vida dos contemporâneos, desde que Simenon o fez surgir no início dos anos 30 em Pietr, le letton. O comissário, vindo do Auvergne para instalar-se no seu quartel-general no nº 36 da rua Quai des Orfèvres, começava a demonstrar a apetência para ter as melhores intuições ao comer num bistrot ou beber um copo num café.

A tendência para tomar por cenários os meios operários ou pequeno-burgueses nem sempre se confirma: em Les Caves du Majestic (1942) aproveita para centralizar-se num hotel de luxo - do tipo do Claridge onde Simenon tanto apreciava ficar, quando passou a dispor dos meios para tal! - a pretexto do aparecimento do corpo de uma rica americana nas suas caves.

Simenon também faz aprofundado retrato de Paris, que percorreu de lés-a-lés, pondo o comissário a investigar os crimes de um serial-killer nas ruas labirínticas em torno do cemitério de Montmartre num romance intitulado Maigret tend un piège (1955). Mas, mais interessante é Maigret et la jeune morte, publicado no ano anterior, e em que, para desvendar um crime perpetrado em Pigalle, vai investigar todo o passado da rapariga nele vitimada.

Neste deleitado exercício de leitura é inevitável dar a Maigret o rosto de Jean Richard, o ator que, mais do que Gabin ou Bruno Cremer, preferi ver no desempenho daquele personagem! 

sábado, agosto 20, 2022

A falsa objetividade da Inteligência Artificial

 

Quem toma decisões ao mais alto nível procura dotar-se dos melhores elementos para o ajudar nessa tarefa. Pode ser um consultor pago a valores abaixo do estipulado pelo mercado, mas capaz de causar um escândalo político mal gerido por quem o protagonizou, como sucedeu agora com Fernando Medina e Sérgio Figueiredo, que nunca deveriam ter cedido ao ulular da choldra mediática. Para alguns o futuro passa pela Inteligência Artificial, que se mostraria insuperável em objetividade, transparência e sageza. Por isso há quem preconize o seu uso intensivo para definir penas judiciais, selecionar recursos humanos e outras aplicações, que retire o preconceito das variáveis implicadas numa qualquer decisão.

O pior é existir à partida quem cria o modelo de algoritmos destinados a servir tais propósitos e esse programador, por mais bem intencionado que seja, não conseguir libertar-se das suas arreigadas intolerâncias. Resultado: onde a IA já é aplicada detetam-se erros grosseiros, que levam por exemplo a, nos Estados Unidos, inocentes serem presos por confusão com os retratos dos supostos suspeitos. Motivo para pôr em causa uma tecnologia afinal condicionada pelos efeitos das emoções, que se pretenderiam à partida removidas da equação.

terça-feira, agosto 16, 2022

Fado nos Balcãs e movimentos sem propósito definido

 

1. Não consigo decidir-me se existe ou não fundamento para considerar a Sevdalinka como o «fado dos Balcãs». Sei que “U Stambolu Na Bosforu” de Dafne Kritharas é das mais belas canções, que ouvi nos últimos tempos, e está impregnada do sentido de nostalgia tantas vezes associado à nossa tradição musical. E, no entanto, tão distintas são as geografias em que uns e outros sons emergiram, não faltando evidências quanto às diferentes idiossincrasias de portugueses e dos vários povos da antiga Jugoslávia. A não ser que sobrevenha a relevância da condição peninsular, que torne o mar numa presença incisiva e Ulisses (ou Sebastião) num iminente viajante prestes a chegar. Não posso, aliás, esquecer aquele domingo de asfixiante verão no Pireu, em que me refugiava no ar condicionado do quarto de hotel, e o rádio, sintonizado numa estação grega, começou a emitir o “Barco Negro” na voz de Amália.

Reconheço que Amália nesse tema e Dafne Kritaras no aqui referenciado, remetem-me para emoções semelhantes, difíceis de detalhar por estarem no domínio do indizível. Mas que, eventualmente, corroboram a similitude entre ambas as tradições musicais.

2. As esculturas móveis de Jean Tinguely também são dificilmente traduzíveis em palavras: esculturas feitas de peças mecânicas, que se movimentam, mas só servem para suscitar uma reação de surpresa em quem as descobre e lhes tenta descortinar o sentido estético. Pode ser uma descrição básica, mas manifestamente insuficiente!

Julgo ter sido em Beaubourg, que vi uma obra do artista suíço pela primeira vez, quase ao lado dum mobile de Alexander Calder. E ambas as cinesias abriram-me horizontes quanto às coordenadas propostas pela arte contemporânea. Que, por esta altura, já se torna clássica, por outras propostas inovadoras continuarem a mostrar quão ilimitadas podem ser as imaginações de quem as criam. 

quinta-feira, agosto 11, 2022

Mulheres a contas com dificuldades extremas

 

1. As coincidências não acontecem só nos livros de Paul Auster: dois primeiros romances, um de Doris Lessing, o outro de Marguerite Duras, corroboram a ideia de, literariamente, ser eficaz a demonstração do fracasso dos fazendeiros brancos em territórios em que quiseram assentar como conquistadores e lhes foi inevitável a falência. A elas poderia juntar outra mulher, Karen Blixen, também prova viva dessa evidência através da experiência colhida na sua quinta no Quénia. Em ambos os casos ficou comprovada a distância entre a puerilidade dos sonhos coloniais e o banho frio da realidade.

Publicado em 1950, e logo garantindo a possibilidade de se profissionalizar como escritora, The Grass is Singing, permitiu à escritora britânica verter para o papel aquilo que vivera na quinta familiar de Banket, no norte do atual Zimbabwe, onde o pai nunca conseguiu o prometido eldorado nos 1200 hectares de terra recebidos da tutela colonial depois de perder um braço na Primeira Guerra Mundial. Mas aborda, igualmente, o tema da sexualidade inter-racial, através dessa Mary Turner, que morrera assassinada depois da ligação íntima com o criado Moses e cuja história se conta em flash back.

Curiosamente, Marguerite Duras publicou Uma Barragem contra o Pacífico no mesmo ano, relatando, através da sua alter-ego Suzanne, a ineficaz ajuda à mãe viúva na salvaguarda da propriedade indochinesa a que ela se candidatara mas, invariavelmente, inundada todos os anos pelas águas vivas das monções. Ademais, não contando com grande ajuda do irmão, Joseph.

Ambos são romances sobre mulheres desencorajadas pelos desafios suscitados por circunstâncias desfavoráveis, com Lessing e Duras a darem dos homens a imagem de fraqueza que, ao invés de ajudarem, mais contribuem para agravar as dificuldades.

2. Por outro tipo de adversidades passou Marianne Faithful que a France Culture evocou num dos seus recentes programas a propósito do seu momentâneo desaparecimento durante a primeira metade dos anos 70 quando, separada de Mick Jagger, foi sem-abrigo nas ruas do Soho e levou as experiências com drogas até à beira do abismo.

Renascendo em 1976 com o álbum Dreamin’ my dreams, ela é um dos mais animosos exemplos de uma Eurídice abeirada do inferno e dele conseguindo regressar transformada para melhor.

Mas a evocação conteve outra curiosidade: no meio desse período sombrio ela apareceu num programa da NBC, vestida de freira a cantar o I Got You  dos Sonny & Cher, acompanhada do ainda quase desconhecido David Bowie.