quarta-feira, dezembro 30, 2020

(DL) A gelada e tempestuosa Terra do Fogo

 

Dos muitos sítios onde aportei Ushuaia e Punta Arenas foram dos mais memoráveis. Situadas no extremo sul da América do Sul as duas cidadezinhas, uma argentina, a outra chilena, serviram de refúgio ao «Funchal» numa altura em que falhámos a passagem do Cabo Horn por causa de violentíssima tempestade, que justificou rota mais calma através do Estreito de Magalhães. À volta de ambas, ou para a elas chegar, vi céus plúmbeos como nunca descortinados noutras paragens e, sobretudo, glaciares com os azuis mais impressionantes na sua limpidez quase homogénea.

Para norte estende-se essa Patagónia que Luís Sepúlveda dizia ter estepe propícia ao silêncio dos humanos, porque a voz poderosa do vento conta sempre donde provem. E silêncio foi sensação tida em ambas as cidades, porque quase desérticas nesses idos de março em que as visitei. E também extremamente caras: recordo que na cidade argentina decidi jantar num dos seus restaurantes, mas achei-lhes os preços tão absurdamente caros, que logo falou a sensatez de buscar a bordo o consolo para o estômago.

Não encontrei, pois, as personagens típicas dos romances do escritor chileno desaparecido há oito meses com o malfadado covid. Mas as ruas eram credíveis como destino dos seus aventureiros que perderam as respetivas bússolas e ali buscavam a porta de entrada para novos caminhos.  Mesmo que os demónios trazidos de outras paragens ali se mostrassem avessos a finalmente os abandonarem. Mas dali é conhecido o conselho de nunca fazer meia-volta para regressar donde se vem, sob pena de atrair o azar. Na austral Patagónia a orientação é sempre a de seguir sempre em frente. E assim também sucedeu com o navio que, liberto das tempestades atlânticas, não tardou a, nos dias seguintes, encontrar as bem mais tranquilas águas do Pacífico. 

terça-feira, dezembro 29, 2020

(DIM) Agente laranja: a última batalha, Alan Adelson e Kate Taverna, 2020

 

É um documentário devastador sobre os efeitos dos produtos químicos nas populações sujeitas à sua propagação. Especificamente sobre o agente laranja, um desfolhante utilizado pelo exército do tio Sam no Vietname entre 1962 e 1971 para destruir as florestas onde escondiam-se os guerrilheiros vietcongues e as culturas agrícolas, que os alimentavam, e depois ainda espalhado por florestas e pastagens norte-americanas onde, supostamente, a densidade populacional era reduzida. Mormente no Estado do Oregon onde muitas famílias ficariam sujeitas aos seus efeitos nocivos.

Quatro décadas e meia depois do fim da guerra na Indochina ainda são muitas as crianças aí nascidas com problemas de saúde e malformações, suscitadas pela contaminação dos solos das aldeias onde nascem. E as associações de veteranos norte-americanas têm abundante rol de casos de antigos militares afetados por cancros contraídos devido ao contacto com aquela que foi arma química abundantemente utilizada sob instruções do Pentágono para infletirem a evolução de uma guerra depressa pressentida como inevitavelmente perdida.

Só em 1983 é que, pressionada por sucessivos processos judiciais e má imprensa, a Dow Chemical retirou do mercado os seus produtos à base de dioxinas, comprovadamente causadoras de cancros e malformações genéticas.

O documentário focaliza-se em duas mulheres que, cada uma por seu lado, procuraram confrontar diversas empresas químicas com as suas responsabilidades: a antiga repórter de guerra Tran To Naga e a ativista Carol Van Strum, autora dos “Poison Papers”, envolvida há quatro décadas no combate contra esse desastre humano e ecológico. Sobretudo no caso desta última denunciam-se as pressões impostas pelas empresas para a silenciarem: desde ter o telefone sob escuta até ameaças explicitas a ela e aos filhos tudo valeu para que desistisse. Uma opção que nunca se colocou tendo em conta o sofrimento vivido por tantas famílias, vítimas colaterais da ganância dos acionistas de uma indústria apostada na maximização dos lucros em detrimento dos danos humanos que causem... 

(DIM) Decadências, Wilfried Hauke, 2020

 

Embora haja quem nos queira convencer quanto a estarmos mergulhado numa desesperante era de decadência civilizacional feita de ascensão das extremas-direitas ou de múltiplos agravamentos dos problemas ambientais (extinção de espécies, aumento de temperaturas, degelo de glaciares ou subida dos oceanos), não compro propriamente essa tese. São avassaladores os problemas rastreáveis nos anos atuais, mas confio plenamente na capacidade humana para superar os desafios e construir uma sociedade avançada, sustentável e menos desigual.  Ainda assim vi com todo o interesse este documentário dividido em duas partes, a primeira dedicada aos anseios e declínios, a segunda às lutas e desilusões.

À partida a História do mundo é rica em exemplos de decadência: na Roma antiga esta mostrava-se refinada na forma como se traduzia nos prazeres dos privilegiados. Os frescos de Pompeia eram bem explícitos quanto a uma alegria de viver, que ignorava a contagem decrescente para o momento em que os bárbaros viriam dividir entre si os despojos do finado  império e anunciarem as trevas medievais.

Mais próximos de nós os intelectuais e artistas do século XIX - de Baudelaire a Egon Schiele passando por Oscar Wilde - representaram uma outra forma de decadência, traduzida na subversão dos tabus burgueses.

Atualmente os venturas, que emergem em diversos países, invocam o nacionalismo e outros argumentos populistas para declararem a Democracia corrompida, havendo que assegurar o ressurgimento de valores passados aos quais pretendem limpar de intrincados mantos de poeira e de teias de aranha. Por seu lado as esquerdas verberam o consumismo, a globalização e a pobreza, enquanto os ecologistas penam pelo estado em que sabem estar o planeta.

Entre o declínio moral e o social, a decadência ora é deplorada, ora valorizada , consoante nela se identifica uma transgressão ou uma forma de resistência. Nuns casos a deslocalização industrial empurrou o proletariado para o desemprego e para a indignada revolta contra as elites, deslocando-se de um extremo político para o outro, completamente oposto.

Wilfried Hauke, o realizador do filme, convida filósofos, historiadores, artistas e militantes de causas diversas a pronunciarem-se sobre a instabilidade em que nos vemos mergulhados. Mas a socióloga Monique Pinçon–Charlot sugere a resposta óbvia: vivemos numa fase complexa da luta de classes que, como Hegel ou Marx defendiam, acabará numa resolução decisiva entre os contrários, que procuram prevalecer. Confiemos que entre o velho e o novo, volte a ser este a ditar as bases das contradições subsequentes... 

segunda-feira, dezembro 28, 2020

(DL) O futuro próximo na perspetiva de Don DeLillo

 

Talvez a vacinação nos dê termo à “insónia em massa desta época inconcebível”, feita só de presente, porque o passado é só memória e o futuro um ponto de interrogação sem resposta. O mesmo estado em que se encontram os personagens deste mais recente do escritor norte-americano a quem teria preferido ver atribuído o Nobel em vez do baladeiro conhecido por alertar para as mudanças suscitadas pelos tempos, mas que até o fizeram natural investidor de empresas de fabrico de material de guerra. Pelo contrário DeLillo não se tem limitado a adivinhar o que o futuro próximo contemplará: ele fundamenta-lhe os contornos. Não espanta, pois, que tenha concluído este romance poucas semanas antes da pandemia incidir fortemente no seu país. A exemplo do que acontecera nos seus romances anteriores ele coloca os personagens no eixo de interrogações, que os desconcertam por se confrontarem com acontecimentos inesperados, mas suficientes para os deixarem num limbo labiríntico sem aparente saída.

No início do romance temos um casal, Jim Kripps e Tessa Berens a regressarem de Paris num voo interminável em que vão alimentando uma conversa banal, porque o sono não lhes chega. A expetativa é chegarem a tempo de verem a final da Superbowl desse ano de 2022, acontecimento de incompreensível relevância para a enormíssima maioria dos americanos. No entretanto há quem os espere em Manhattan: um casal, Diane e Max, além de um ex-aluno dela Martin, também entretidos numa conversa de circunstância. Até que se dá o evento: todas as redes digitais se silenciam deixando-os numa barra sem rede de proteção onde a insegurança do desconhecido os tolhe. Deixa então de ter importância o que o telescópio no Chile desvenda, qual a marca preferida de whisky ou o manuscrito de 1912 sobre a Teoria da Relatividade. Entre Diane e Martin sugere-se uma atração erótica, que não escapa a Max, decidido a ir à rua indagar o que se passa sem nada dela informar quando regressa.

A urgência sexual também acontece com Jim e Tessa no hospital de Newark para onde, feridos, são transportados na sequência da queda do avião devido ao apagamento súbito de todos os aparelhos a bordo. Numa casa de banho o casal entrega-se à satisfação do desejo como se não existisse mais um amanhã.

Embora reduzindo a narrativa a menos de cem páginas, Don DeLillo volta a prenunciar os comportamentos humanos numa era de perplexidades. E eu teimo no imperativo de dar a este escritor de 83 anos a consagração merecida por ser autor de algumas das obras literárias mais interessantes da nossa contemporaneidade.

 

(DIM) Condenações à morte e amores improváveis

 

Nos últimos dias do seu lamentável mandato Donald Trump tem pretendido sair da Casa Branca com um record à medida do seu (mau) carácter: ser o presidente, que terá ordenado a execução do maior número de prisioneiros circunscritos nos corredores da morte dos cárceres federais. Momento oportuno para lembrar Rampage, um filme realizado em 1987 por William Friedkin, porque, se na primeira montagem ele dera-lhe um cunho anti pena de morte, o realizador de O Exorcista logo decidiu infletir o sentido ideológico do filme, defendendo exatamente o contrário, qual pioneiro de uma atitude hoje muitas vezes reconhecível no fascista, que lidera o Chega. Embora haja quem procure incensar Friedkin como uma vítima de Hollywood, convenhamos que este exemplo demonstra eloquentemente o seu perfil abjeto.

A história é a de um homicida (Alex MacArthur), que mata as vítimas para lhes beber o sangue numa espécie de ritual de purificação. Daí que o procurador (Michael Biehn) procure condená-lo à pena definitiva por temer que, libertado ao fim de muitos anos, ele volte à mesma conduta criminosa.

Por motivos, igualmente funestos, faz sentido lembrar Kim Ki-duk, recentemente desaparecido à conta do covid-19. Ferro 3, um belíssimo filme que rodou em 2004, era a história dum solitário, que procurava casas vazias para pernoitar, aproveitando de passagem para arranjar eventuais avarias, regar as plantas ou até dar digna sepultura a velhos encontrados já sem vida.  Tudo se manteria assim se não descobrisse entretanto Sun-hwa, uma mulher infeliz por conta da violência doméstica a que é sujeita. E é a oportunidade de Tae-suk conhecer um grande amor, mesmo que silencioso, mas completamente à margem de uma sociedade, que o deixa indiferente.

No fundo o amor entre Tae-suk e Sun-hwa não difere muito do de Alex e Michêle em Os Amantes do Pont-Neuf de Leos Carax (1991), melodrama romântico em que mais ninguém parece contar senão eles mesmos além do cenário, que lhes serve de lugar de descoberta mútua, mesmo que com sangue e mentiras à mistura. Um filme hoje datado, falhado e heterogéneo, mas que mantém um certo encanto na sua atormentada evolução. 


sábado, dezembro 26, 2020

(DL) Felicidade, João Tordo

 

João Tordo integra aquele pequeno lote de autores de literatura em língua portuguesa de quem procuro ler tudo quanto publicam, quase sempre comprando-lhes os novos títulos tão-só ficam disponíveis nas livrarias. A ele juntam-se Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Lídia Jorge, Mário de Carvalho, Ana Margarida de Carvalho, Valter Hugo Mãe e poucos mais.

Deste romance mais recente - Felicidade, lançado em outubro pela Companhia das Letras - confesso alguma surpresa, sobretudo com a vertente sobrenatural, que a história assume na sua segunda metade. Um racionalista puro e duro, como me considero, terá de sentir-se atónito com situações, que colidem com as suas convicções. Mas as virtudes ficcionais do escritor estão bem presentes permitindo uma leitura muito agilizada da evolução da narrativa.

Cumprindo o que costumamos encontrar na sua obra, deparamos novamente com quem tem em aberto todas as expetativas mais favoráveis para ser feliz, mormente no amor, mas acaba por conhecer queda abrupta, porque à prometida boa aventurança subjaz a frustração, a tragédia, sobretudo a morte. Como se a vontade humana nada pudesse para contrariar um destino aqui focalizado em três irmãs gémeas, as Kopejka, verdadeiras erínias, de quem o protagonista não se consegue dissociar. Uma delas, Felicidade, morre-lhe nos braços durante a mútua descoberta do orgasmo. Com outra, Esperança, ele casa, mas para ambos comungarem anos de infelicidade  até o narrador descobrir o insuportável adultério. À outra, Angélica, providenciara involuntário homicídio por interposta pessoa, mesmo que traduzido numa fuga através do suicídio.

Ficamos a conhecer o desiderato das três irmãs quando, logo no início do romance, o narrador lhes visita as sepulturas.  Só não imaginamos, que ele próprio é uma espécie de assombração do tipo da de Joe Gillis quando, em Sunset Boulevard nos conta a história da sua relação com Norma Desmond. Ao convidar-nos para o seu longo percurso até ao abismo, escolhe o relato linear e cronológico em que os personagens secundários vão fazendo figura de um heteróclito coro, que sublinha os contornos da tragédia ou dão ao protagonista o ensejo de se ater aos seus sucessivos estados de alma. Com o desenlace, que acaba por ser mais complexo do que, à partida, fôramos levados a crer...