quarta-feira, setembro 28, 2022

La Catedral Del Mar, Ildefonso Falcones, 2006

 

Nunca entrei na Catedral do Mar embora me tenha demorado a ver os artistas de rua no largo defronte da sua monumental porta de acesso ao interior. Talvez porque sempre priorizei as obras e casas concebidas por Gaudi ou as expostas na Fundação Miró para que sentisse a apetência de revisitar o gótico para além do tranquilo caminhar pelas estreitas ruas do respetivo bairro na direção da gigantesca estátua de Lichtenstein no Porto Velho.

Não sei se, depois de ler o calhamaço de Ildefonso Falcones sentiria maior apetência por tal visita. É claro que tem interesse conhecer as circunstâncias em que foi decidida a sua construção pela ascendente burguesia barcelonesa do século XIV, contando com o trabalho voluntário da plebe, convencida de assim chegar mais facilmente ao paraíso, que a compensasse do inferno inerente à sua estadia na Terra. Porque o edifício em si terá a grandiosidade de outras catedrais desse período, mas sem se equivaler às mais icónicas, e o romance fala preferencialmente dos tempos atuais apesar de aparentar focar-se nos tempos em que  se organizavam pogroms contra os judeus ou caía em desgraça quem, nascendo servo, a quase aristocrata chegara, motivando as invejas, que o levariam perante o Tribunal do Santo Ofício.

Arnau Estanyol, o protagonista do romance, revolta-se contra as atitudes dos senhores feudais, consegue acumular riqueza como cambista e não vê recompensada a devoção religiosa tantas vezes demonstrada na Catedral, tornando-se vítima de uma conjura em que a intolerância religiosa mais não é do que uma ferramenta para que a ganância dos ricos ainda mais se possa exercer.

O romance histórico tem particulares virtualidades, quando melhor reflete um presente, que nem o evidente conservadorismo de Falcones - um bem sucedido advogado católico catalão  - consegue escamotear. 

terça-feira, setembro 27, 2022

Robert Doisneau, O Rebelde do Maravilhoso, Clémentine Deroudille,2016

 

Um delicioso regabofe para o olhar é como evoco este documentário realizado pela neta de um dos grandes fotógrafos do século XX. Ouvindo a mãe e a tia, espécie de pitonisas do culto em torno do seu espólio, bem como alguns dos mais próximos amigos de Doisneau - aqui aparecem Daniel Pennac, Jean-Claude Carrière ou Sabine Azéma - Clémentine Deroudille dá-nos a ver o percurso de uma criança dos arrabaldes da Paris de antes da construção do périphérique, e esteve-a toda a vida a fotografar, enquanto laborioso artesão, que odiou a única experiência como assalariado de um patrão fixo (a fábrica da Renault).

O filme acaba também por ser o testemunho da prodigiosa transformação de uma cidade, que conhecera como somatório de um conjunto de aldeias marcadas pela pobreza e pela ligação umbilical às origens camponesas ou operárias, em megalópole cosmopolita.

Companheiro de Jacques Prévert em intermináveis deambulações pelos vários bairros da cidade, tê-lo-á ajudado a refinar a sensibilidade poética de que também se soube inebriar ao ponto de surpreender quem tinha o privilégio de repetir depois esses périplos, e descobria como o aparentemente feio ganhava surpreendente beleza.

O filme não nos cinge à ligação de Doisneau com a cidade onde captou a icónica fotografia do beijo dos amantes tendo por fundo o edifício da câmara municipal. Também evoca os enquadramentos de Palm Springs na época da revolução hippie, sem captar nenhum desses muito glosados personagens, os trabalhadores soviéticos ou a sua ligação ao Japão, onde ganhou peculiar notoriedade.

Homem simples no que essa caracterização tem de mais genuíno e grandioso, Doisneau sempre nos surpreenderá na forma como demonstrou a importância de reter de cada cenário o que de melhor pode transmitir-nos!

quinta-feira, setembro 22, 2022

As novas origens do Homo Sapiens

 

O filme de Olivier Julien já tem dois anos mas, fora dos circuitos especializados nos estudos das origens da espécie humana, pouco tem sido divulgado, e sobretudo quanto não se alterou o paradigma vigente sobre onde ela revelou os seus mais antigos vestígios.

Para a maioria dos interessados no assunto a resposta comum será a dos homo sapiens terem surgido em Omo Kibish, na zona etíope do Vale do Rift  de acordo com as descobertas aí feitas em 1967 sob a orientação de Richard Leakey. E, no entanto, os achados encontrados numa pedreira de Jebel Inhoud em Marrocos, a partir de 1960, depois de devidamente estudados e datados, superaram em muito os 195 mil anos reconhecidos para os da África Oriental: em vez dos quarenta mil anos inicialmente considerados, a termoluminescência - método mais preciso que o carbono 14 - concluiu tratarem-se de crânios, ossadas e ferramentas de há mais de trezentos mil anos.

Ficou assim posta em causa a tese do surgimento do homo sapiens na região anteriormente anunciada, donde se expandira em todas as direções para a Ásia e a Europa, ganhando credibilidade outra teoria, a da sua existência anterior noutras regiões do continente africano ainda por serem desvendadas. Estamos, pois, perante a incontornável  demonstração da efemeridade do conceito de verdade científica: algo tido como certo até prova em contrário, que a substitua por uma outra.

Nos despojos humanos encontrados na pedreira marroquina os investigadores - nomeadamente Jean Jacques Hublin, Abdelouhed Ben-Naer, Shannon McPherron ou Daniel Richter -  concluíram que ostentavam características mais arcaicas, que as constatadas nos das margens do rio Omo. E que, mediante o uso de sílexes primitivos, aqueles nossos antepassados procuravam caçar o seu alimento predileto: as gazelas da região.

Aprofundando a sua investigação os cientistas até concluíram quanto à causa da morte de uma família cujos cinco membros apareceram sepultados no mesmo espaço: um aluimento na gruta onde se tinham resguardado de possíveis ameaças! 

terça-feira, setembro 20, 2022

Volver, Pedro Almodovar, 2006

 

Este foi o último grande filme de Almodovar mesmo que, a exemplo de Woody Allen, nenhum dos títulos posteriores mereça reparos: agradam enquanto os vemos, mas não entusiasmam tanto quanto os do período, que incluíram Tudo Sobre a Minha Mãe (1999), Fala com Ela (2002) e este Volver.

Começa com a cena do cemitério: mulheres a cuidarem das campas dos familiares e até das de si próprias, porque há quem as tenha mandado construir em vida e as mantenha irrepreensíveis, a aguardarem o momento de terem ulterior préstimo. E inicia-se assim a caracterização da região da Mancha, onde Almodovar nascera e crescera nos anos 50, a ela voltando como homenagem à mãe, Francisca, que desaparecera sete anos antes.

E trata-se, de facto, de um filme sobre a importância das mães: as protetoras como Raimunda, que não hesita em poupar à filha a culpa de ter morto o próprio pai, quando dela quisera abusar sexualmente. Ou Irene, que se escondera em casa, a coberto da falsa notícia sobre a sua morte num incêndio, e transformara-se num fantasma, que acaba por ser desmascarado pelas filhas, precisamente quando lhes morre a cúmplice na trafulha, essa tia Paula que carece que a tratem de sepultar.

Quase só integrando personagens femininos, é um filme fotograficamente muito belo, porque Almodovar quis nele verter a paleta de cores de uma região, que nos amarelos, ocres e castanhos encontra cromática exuberância. Mas sem omitir a mentalidade conservadora de um ambiente em que todos cochicham os segredos e mentiras dos vizinhos por muito que estes procurem esconde-los dentro de casa. 

segunda-feira, setembro 12, 2022

American Graffiti, George Lucas, 1973

 

Faz toda a diferença ver este filme agora, como sexagenário, e meio século atrás, quando estava a sair da adolescência como estes personagens, mas sem saber verdadeiramente como seriam os anos vindouros. Porque, agora, com tudo quanto vivi, posso concluir que ficaram por cumprir tantos sonhos - e, pessoalmente, o mais notório terá sido o de tanto nos distanciarmos da Utopia a que, então, aspirava! - mas, no essencial, tudo ter-se passado razoavelmente bem, fazendo-me chegar a 2023 com a conclusão de, justificadamente, subscrever as palavras de Violeta Parra: agradecido à Vida por ter-me dado tanto!

Que fica então da revisão deste segundo título da filmografia de George Lucas, espécie de parêntesis entre o universo de ficção científica da obra anterior (THX 1138) e a saga dedicada à Guerra das Estrelas, tornada possível com o inesperado sucesso comercial desta evocação dos anos de final da adolescência em Modesto, Califórnia em 1962? Em poucas palavras podemos descrever American Graffiti como um baile automobilístico ao som de uma sucessão de êxitos musicais da época interligados pela voz de um DJ então famoso - Wolfman Jack - cooptado para integrar o elenco da história.

Steve Bolander quer partir para a Costa Leste para prosseguir os estudos universitários, mas anseia concretizar a primeira experiência sexual com a namorada que, depois propõe ambos ampliarem com novos parceiros. Curt deveria acompanhá-lo nessa mudança de ares, mas sente-se dividido entre fazê-lo ou ficar ali até por encontrar, entretanto, uma misteriosa mulher, que lhe alimenta os mais obsessivos devaneios. John Milner é mais velho do que eles e decidiu acomodar-se ao ofício de mecânico mas, apesar de tão jovem quanto James Dean, sente-se na curva descendente, porque até o título de condutor mais rápido da cidade fica em risco, quando aparece um rival a desafia-lo (Harrison Ford num dos seus primeiros desempenhos). E há ainda o desajeitado Terry, que está decidido a perder a virgindade nessa noite em que todo o filme decorre e vê sucederem-lhe as mais rocambolescas vicissitudes, nenhuma delas tão drástica quanto a que uma legenda final informa e dá maior sentido à aparente frivolidade em que tudo acontece.

Pauline Keel teve razão ao considerar misógino um filme que reduz as personagens femininas a meras comparsas dos fantasmas dos parceiros, mas foi esse o conceito escolhido por Lucas: através dos quatro personagens quis abordar outras tantas fases da sua própria biografia, entre o jovem tímido decidido a conquistar raparigas até ao desencanto de já nem sequer contar com o favorecimento das circunstâncias para as ter como convenientes adornos a seu lado. Mas até pode-se reconhecer o quanto de documental subsiste enquanto espelho do que era a juventude americana, quando Kennedy acabara de ser assassinado e o Pentágono se afadigava na preparação da guerra no Vietname. 

quinta-feira, setembro 08, 2022

Entre a superlativa rejeição e o rendido agrado

 

Faltam quase quatro meses para acabar o ano, mas estou convicto de ter chegado à última página do pior dos romances lidos em 2022. Não dou dele o título, nem o autor, mas limito-me a anotar o seu lançamento em 2016 por uma das principais editoras nacionais. E essa é a primeira estranheza: não me admiraria ver esse romance como edição de autor para distribuição por toda a família só para dar satisfação a quem o escrevinhou, doravante tratado como escritor de obra publicada nas festas de casamento e batizado dos parentes. Mas ter uma grande editora a integrar coisa tão indigesta no catálogo é coisa estranha. Não tanto pela intriga em si: uma família onde só nascem meninas para desgosto do pai, que as despreza, sempre ansioso pelo filho varão. Quando, enfim, o obtém, a mulher mata-se e a seis das sete filhas no lago próximo.

Anos depois, mediante uma vitória nas eleições autárquicas e a construção de mil e oitocentas estátuas de todos os habitantes da aldeia, a rapariga sobrevivente empreende trabalhosa vingança contra os vizinhos, que a amaldiçoaram, e forçaram a dali sair, logo após a tragédia se ter verificado.

Inverosímil quanto à trama, ignorante quanto ao funcionamento das autarquias, mas optando por diálogos ao nível dos argumentos para telenovelas rascas, a escrita é do que mais básico se poderia esperar.

Em suma: respeito o esforço de quem se deu ao trabalho de criar uma narrativa com pouco mais de duzentas páginas mas, no final, faz-se o balanço do que o romance nos deu e a conclusão é uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma.

2. É um dos meus muitos paradoxos: materialista dialético puro e duro não acredito em nenhuma forma de misticismo, nem sequer abro espaço para a eventual aceitação de uma qualquer transcendência. E, no entanto, gosto muito do que Le Clézio escreve, tendo-me agradado bastante a sua consagração com o Nobel em 2008. E, no entanto, existe nele o fascínio pelas crenças e rituais dos índios com quem viveu na província de Darien, no Panamá, junto à fronteira com a Colômbia, e sobre os quais escreveu em Haï (1971).  Talvez, porque mais do que o fascínio pelo invisível, que nos pudesse rodear sem que o apercebêssemos, tem-me interessado o sentido da errância solitária, que os seus personagens, ou narradores, têm assumido desde O processo de Adam Polo (1963), acabando por encontrar paliativos eficazes para travarem o curso do tempo como sucede com Mondo (1978), quando descobre um singular jardim secreto. 

quarta-feira, setembro 07, 2022

A Criança Zombie, Bertrand Bonello, 2019

 

Na sua oitava longa-metragem Bertrand Bonello inspirou-se na história real de Clairvius Narcisse que muitos haitianos acreditam ter sido um zombie, vivendo duas vezes entre 1922 e 1994, e tendo, por isso mesmo, sido objeto de estudos científicos muito sérios.

Não acreditando nesse tipo de fenómenos esotéricos, que Bonello dá como credíveis, olho para o filme de outra forma: há a denúncia do colonialismo, que a zombificação do avô de Melissa pressupõe, porque concretizada para dar satisfação a objetivos gananciosos de alguns familiares, mas sobretudo para fazê-lo escravo das plantações de cana-de-açúcar da ilha; há, igualmente uma reflexão sobre o racismo e a memória cultural, sobretudo naquilo que vive a neta de Clairvius em Paris, depois de sobreviver ao terramoto de 2010, que lhe matou os pais, e dando a conhecer às amigas algumas das principais características das crenças, que têm na tia uma intermediária entre as forças transcendentes e a comezinha realidade.

Bonello assume o fascínio, que o misticismo haitiano nele exerceu, sobretudo na relação permanente entre os vivos e os mortos e sem omitir a existência de uma sangrenta ditadura, que garantiu a exploração intensiva da mão-de-obra local com laivos de esclavagismo.

Ser aprendiz de feiticeiro de tais idiossincrasias comporta riscos como os que acabam por vitimar a tia de Melissa, dotada de poderes mediúnicos - por isso reconhecida como mambo - que acedera a ajudar uma colega dela, Fanny, a superar a dor provocada por uma desilusão amorosa, e vê-se atacada por quem delas personifica o lado maligno.

Se Bonello cria duas narrativas paralelas, em tempos diferentes, elas acabam por cruzar-se nesse exorcismo com que o filme se conclui. E envolvendo toda a intriga numa ambiência, que já fora sua imagem de marca nos filmes anteriores quando, as mais equívocas realidades ganharam uma envolvência sedutora, ele confirma um estilo, que se lhe cola como imagem de marca autoral.

segunda-feira, setembro 05, 2022

Dmitri Chostakovitch e Erri di Luca

 

1. Bem sei que o Torquemada de Kiev gostaria de proibir-nos a sua audição, mas bem fracote se revela para que nos consiga impedir a fruição da Valsa nº 2 ou da Sinfonia Leninegrado de Dmitri Chostakovitch. Nem tão pouco privar-nos da grande literatura russa, ou do notável cinema dos maiores realizadores do cinema soviético.

Se nem Estaline, que embirrou com Lady Macbeth de Mtsensk, demasiado vanguardista para o seu gosto conservador, conseguiu silenciar o compositor, que continuou a compor belíssimas partituras para os filmes dos amigos, muito menos conseguirá um comediante de meia tijela, por muito que, momentaneamente, tenha feito cingir Valery Gergiev, Anna Netrebko e outros grandes vultos da música russa, a fronteiras demasiado exíguas para a expressão dos seus talentos. E, por muito que haja quem dê grande enfase ao confessado medo de Chostakovitch nos anos 30, quando as purgas ameaçaram levá-lo, ninguém consegue negar que o compositor aderiu ao Partido Comunista em 1960.

A cultura russa é de uma riqueza imensa e querer ostracizá-la equivale a quererem-nos condenar à ignorância de livros, músicas e filmes, que ajudam a melhor entendermos esse lado do mundo euroasiático. Que também explica substancialmente o que está em questão nos campos de batalha na Ucrânia.

2. A notícia do Nobel da Literatura a alguns dos galardoados deu-me grandes alegrias nalguns idos anos. José Saramago a maior, mas também Garcia Marquez, Günter Grass, Le Clézio ou Modiano. Já quando premiou desconhecidos ou quem não cabe nas minhas simpatias - Bob Dylan ou Vargas Llosa - prefiro passar rapidamente adiante. Mas cabe à Academia o mérito de nunca terem dado satisfação a um prosador de Benfica que, por estes dias, perfez os oitenta anos, prova manifesta em como a inveja não afeta a esperança de vida e até é capaz de a prolongar.

Teria, porém, enorme alegria se visse recompensada a obra de Erri di Luca, escritor napolitano com um passado de militância de esquerda, mas também muito adestrado na composição de textos com muito de poético, mesmo quando adota a forma de romance. Como sucede neste Montedidio, que homenageia no título um bairro da cidade do sopé do Vesúvio e onde, logo nas primeiras páginas, ficamos a saber não ser fácil encontrar sítio entre as passadas onde depositar urgente escarro se para o chão o quisermos verter.

O protagonista do romance, um adolescente posto a trabalhar com treze anos depois de fazer cinco anos de escolaridade, irá testemunhar as múltiplas realidades da sua cidade nos anos 50, quando as ruas eram encimadas de tetos de roupas estendidas das janelas e havia dois níveis muito distintos da realidade: a que se passava na rua e a que se vivia nos terraços, sítio privilegiado dos primeiros namoros e de vigia de tudo quanto à volta ocorre.

Não falta San Gennaro, o santo padroeiro da cidade, que tem a população rendida à sua devoção pelo suposto poder de conseguir travar a lava se o vulcão despertar, nem sobretudo esse dialeto, que faz escrever ammor com dois émes e em que se expressam quase todos quantos rodeiam o rapaz, também atento ao velho sapateiro judeu vindo do norte da Europa e capaz de ver realizada uma profecia em forma de um bater de asas. 

domingo, setembro 04, 2022

Moonlight, Barry Jenkins, 2016

 

Recordo que, na altura da estreia do filme, a disponibilidade era escassa pelo que, sem grandes estados de alma, achei-o dispensável. Agora, uma mão cheia de anos depois, não enjeito a decisão: se Moonlight  é um filme competente, bem construído, fotografado e interpretado, não me suscitou maior entusiasmo do que reconhecer-lhe essas qualidades, sem as que mo tornariam doravante inolvidável.

A priori há uma intriga convencional: um miúdo dos bairros pobres de Miami, “educado” por uma mãe toxicómana, vai receber lições de um pai de substituição sobre como enfrentar a vida. É esse o primeiro ato de uma história, que conta três, com Chiron interpretado por outros tantos atores diferentes. Depois de vê-lo criança, descobrimo-lo adolescente, acabando o filme quando já se consolidara como adulto, singularmente a replicar o mesmo percurso, que esse Juan de quem recebera tão determinantes conhecimentos. De miúdo, quase mudo na sua timidez, converte-se num homem musculado, que criou a armadura como forma de sobreviver.

Não se trata de uma descida aos infernos porque, pelo contrário, deparamo-nos com a reinvenção identitária de quem é capaz de olhar com amor e perdão para quem tanto o fez sofrer no passado. Por isso é um filme sobre a dor, a ostracização social e o quanto é-se fruto do ambiente em que se cresce,

Na abordagem da homossexualidade existe uma consonância com Brokeback Mountain, quando importa ganhar um aspeto hiperviril para iludir a pulsão, que Chiron sente dentro de si e o leva a assumir um modelo de vida castamente monástico. E questiono-me se não terá sido a associação ao cinema LGBT, que garantiu ao filme a notoriedade, que não mereceria, dada a frieza com que Jenkins revela a evolução do protagonista. É que, chegado ao termo, fica-me a sensação de ter assistido a um estudo de caso com atores contratados para interpretarem os papéis congeminados pelos argumentistas, mas sem os sentirem intimamente seus... 

quinta-feira, setembro 01, 2022

Hannah Arendt, Igor Stravinsky e António Vivaldi

 

1. Ando por estes dias a revisitar o pensamento de Hannah Arendt, embora não me renda substantivamente a muitas das suas conclusões sobre o totalitarismo, tendo em conta que dá quase inteira primazia ao individualismo de cada pessoa, nela preterindo o efeito psicológico de se integrar uma classe social ou uma cultura. Posso ser sensível ao conceito sobre a banalidade do mal, tão deturpado pelos sionistas, quando fizeram indecorosa campanha contra ela por contribuir para desculpabilizar Eichmann - o que não fez! -, mas não compreendo que não se tenha chegado a dissociar da afeição por Heidegger, que mais não era do que outro exemplo lapidar de assumpção dos mesmos motivos por que o organizador da máquina de extermínio nazi nela se comprometera.

Nesta fase estou, porém, na altura em que propõe a ideia de ter-se criado o caldo de cultura para o Holocausto na forma como se destrataram os muitos refugiados herdados do final da Primeira Guerra Mundial, quando milhões de pessoas foram expulsas dos Estados a que tinham estado vinculadas e, como apátridas, se viram ostracizadas por todos os sítios onde buscaram asilo. Segundo ela um criminoso condenado a uma pena de prisão acabava por ter mais direitos do que gente inocente,  apenas apontada por ser «supérflua» nas terras onde tão malqueridas se viam!

2. A inovação artística pressupõe um conhecimento profundo do que ficou para trás. Igor Stravinsky é disso um exemplo lapidar: o criador d’ O Pássaro de Fogo (1910) ou d’ A Sagração da Primavera (1913) revolucionou a música erudita de forma tao determinante, que causou reações opostas em quem as escutou pela primeira vez, uns aderindo à rutura com os cânones anteriores, os outros indignando-se com essa heresia.

No entanto, se nos ativermos ao ambiente em que o jovem Igor nasceu e cresceu, como não dar importância ao facto de viver em frente ao Teatro Mariinski de São Petersburgo onde o pai era baixo-barítono. Terá sido ao vê-lo atuar em óperas de Glinka ou Moussorgsky, e depois, como aluno de Rimsky-Korsakov, que começou a modelar a criatividade para os novos sons, que entregaria a Diaguilev para dar a banda sonora aos seus vanguardistas bailados.

3. O ambiente em que nasceu também esteve na origem do talento manifestado por Antonio Vivaldi em criar As Quatro Estações e milhares de outras composições, a maior parte das quais se terá perdido nos séculos em que esteve esquecido.

Nascendo perto do Arsenal de Veneza, que continua a ser o seu bairro mais popular e menos turístico, o jovem Vivaldi era filho de um barbeiro tão virtuoso no seu violino, que se via amiúde convocado para acompanhar o coro da Basílica de São Marcos.

Influenciado pelos cantos populares e religiosos, e adestrado no instrumento desde muito novo, ele depressa deu expressão às sonoridades da cidade, seja as das águas, seja as dos ecos das suas gentes. Com a notável utilização do contraponto como forma de lançar o diálogo entre sucessivas frases melódicas.