domingo, junho 24, 2007

Philip Roth: «A conspiração contra a América» (1)

Na mesma altura em que Hollywood preparava a produção do filme de Raoul Walsh a América passou por um tremendo perigo: a de se tornar numa extensão do regime nazi. Simpatizantes de Hitler, havia-os ao mais alto nível, e não precisavam de se acobertar com silenciosas estratégias como Errol Flynn: Charles Lindbergh, o herói da aviação, que entusiasmara os seus compatriotas ao voar até Paris no seu «Spirit of St. Louis» não escondia a admiração pelos valores do regime alemão. Incluindo essa reiterada intenção de discriminar e oprimir os judeus.
No seu livro «A Conspiração contra a América», Philip Roth redige uma espécie de autobiografia Não quanto ao que aconteceu, mas quanto ao que poderia ter sucedido se Lindbergh tivesse sido designado como candidato republicano à eleição norte-americana de 1940 e houvesse vencido a Franklin D. Roosevelt. Então com sete anos o jovem Philip teria visto a sua família mergulhada no pior dos pesadelos: o de ver reproduzido em território norte-americano o mesmo terror então em curso por toda a Europa.
O livro está apenas começado: vou para aí nas primeiras quarenta páginas, mas é já bastante aliciante o que nele descobrirei nas quatrocentas seguintes…

O Cerco de Leninegrado - parte 2

Enquanto Errol Flynn ia escamoteando a sua germanofilia em cercos de pacotilha, os habitantes de Leninegrado davam uma incomparável lição de heroísmo e de capacidade de suportar os maiores sacrifícios.
Leninegrado deve ser sempre evocada como o paradigma do impossível tornar-se uma forte possibilidade de se concretizar...

«Todos morreram calçados» de Raoul Walsh

Há uma cena em «Sleepless em Seattle», que dificilmente esquecerei: aquela em que Sam Balwin (Tom Hanks) e Greg (Victor Garber) troçam de Suzy (Rita Wilson), quando esta lhes descrevera em lágrimas a cena pungente do final do filme «Na Affair to Remember», no qual Cary Grant e Deborah Kerr se reencontram em circunstâncias melodramáticas no topo do Empire State Building.
Usando o mesmo tipo de choro irreprimido eles evocam o final dramático de «The Dirty Dozen», em que, um a um, os protagonistas do filme vão caindo sob as balas alemãs.
Mas podiam ter evocado, dentro da mesma veia cinéfila, o epílogo deste filme de Raoul Walsh em que se recria a batalha de Little Big Horn, na qual o Sétimo de Cavalaria comandado pelo General Custer foi dizimado pelas tribos índias lideradas por Crazy Horse. Porque o filme tem todos os condimentos que, há uns quarenta anos, tanto sugestionaram o miúdo, que eu era.
Realizado em 1941, o filme permite algumas leituras singulares se ajuizarmos as suspeitas quanto às ambíguas ligações de Errol Flynn nessa época em relação ao regime nazi. Porque os políticos são aqui venais contra os militares apostados em trabalhar para a paz em vez de para a guerra.
Ora se pensarmos que os norte-americanos estavam, nesse mesmo ano, em grandes debates políticos entre intervencionistas e isolacionistas, pode-se perspectivar este filme como ambíguo quanto à sua intenção.
Visto exclusivamente como objecto cinematográfico, com todas as reservas passíveis de se colocarem a essa perspectiva restrita de abordagem, ele revela-se extremamente eficaz: Custer aparece aqui como um herói impoluto, que leva o sentido do dever até ao sacrifício da própria vida, para combater a intriga e a cupidez de políticos e de capitalistas. Nesse sentido acaba por ser paradoxal que uma mensagem política criptofascista não deixe de se poder transler numa outra de sinal político absolutamente oposto. Até porque, no fim desta triste história foram os índios quem acabaram por se lixar…

sexta-feira, junho 22, 2007

Não fazer nem deixar fazer

É lamentável o papel assumido pelo PSD de marques Mendes na oposição ao Governo socialista.
Depois da fuga do arrivista Durão Barroso tão só garantiu os apoios necessários para chegar à frente da Comunidade Europeia - mesmo sujeitando-se ao papel de criado de mesa na Cimeira dos Açores - e após o descalabro dos meses de desgovernação de Santana Lopes, o partido de Alberto João Jardim e de Rui Rio anda desnorteado com toda a agenda reformista de José Sócrates e dos efeitos positivos dela resultantes. O reequilíbrio das contas públicas, o crescimento virtuoso da economia, a contenção dos corporativismos e a perspectiva de grandes obras estruturais, que possam servir de locomotiva para o pretendido arranque desenvolvimentista.
Travar o novo Aeroporto e o TGV sob pena de se gorarem as débeis possibilidades de regressar ao poder em 2009 é a alternativa que se coloca à direita. Mesmo contra o interesse dos portugueses e à revelia de compromissos de Estado já firmados por pretéritos Governos.
A direita é hoje o exemplo lapidar dos que nem fazer, nem querem deixar fazer. E vendo em tudo um motivo, mesmo que absurdo, para o derrotismo, o pessimismo, a maledicência. E o grave é assistir ao desaforo de Belmiros e outros capitalistas prejudicados pelas decisões do Governo, acolitarem essa política de terra queimada...

quinta-feira, junho 21, 2007

O Cerco de Leninegrado -1

Houve quem lhe voltasse a mudar o nome para Cidade de São Pedro. Coisas de anticomunistas primários.
Ninguém pode esquecer é que ocorreram ali das páginas mais superlativas de sofrimento e de heroísmo no Século XX. Foi na Cidade de Lenine, que o fascismo hitleriano começou a perder a sua guerra assassina...

«Long Way Home de Peter Sollett (2002)

Foi uma descoberta curiosa esta relativa à primeira longa metragem de Peter Sollett.
Estamos no Verão, em pleno Lower East Side de Nova Iorque. Um mundo à parte em relação a uma urbe recém perturbada pelos ataques do 11 de Setembro e que, aqui, jamais surgem referenciados.
Victor tem 16 anos e uma intensa pressa em descobrir o amor. A vizinha, Donna, poderia ser uma alternativa, mas a sua obesidade extrema só ameaça torná-lo no objecto de troça de todo o bairro.
Pelo contrário Judy é muito bonita. Mas está demasiado ciosa dos seus afectos, recusando-se a qualquer compromisso com quem apenas a julga pelo palminho de cara.
Mas há mais personagens singulares: a avó de Victor, que cuida dele e dos outros dois netos com um conservadorismo fora de moda. Se a neta Vicki começa a interessar-se por rapazes e Nino, o mais novo dos irmãos se masturba amiúde na casa de banho só acontece pela má influência do primogénito. Daí que o queira expulsar de casa: a seu ver a única alternativa para contrariar uma incontornável evolução dos acontecimentos à sua volta.
A crítica, quer a norte-americana, quer a francesa, foi pródiga em elogios a Sollett, enquanto realizador de um emergente cinema independente influenciado claramente pelo Sundance Festival ou por John Cassavetes. Quanto mais não seja pelo talento com que recorre à câmara ao ombro, capaz assim de criar uma dinâmica original. Segundo o crítico Julien Welter , o seu olhar fotográfico sobre estes jovens nova-iorquinos pode evocar alguns títulos de Larry Clark, mas de uma forma mais suave e pudica.
Subsiste, porém, uma certa dureza da condição adolescente com as raparigas estigmatizadas enquanto objectos sexuais e os rapazes empurrados para a sua condição viril, articulada com um racismo latente para com as camadas populares.
A opção de Sollett pela rodagem junto da comunidade porto-riquenha em Nova Iorque resultou de terem sido actores latinos os mais convincentes durante as audições pré-produção. Mas, a coberto de um romance típico do cinema independente americano (orçamento reduzido, filmagens em exteriores) mostram-se algumas realidades desagradáveis.

E no entanto ela move-se

A esquerda, claro.
Às vezes não parece. É nos dias em que os defensores do mercado liberalizado aparecem em força a ganhar eleições - como ainda sucedeu há pouco em França, com Sarkozy - ou a publicarem livros a que, provocadoramente, chamam «Revolucionários».
Mas, ao mesmo tempo, vão surgindo sinais de uma vaga de fundo a aproximar-se. E que pretenderá redimir esta fase grotesca do nosso tempo feito de globalização de capitais, que promovem maiores desigualdades sociais e a condenação à miséria de camadas progressivamente empobrecidas.
É, no entanto, o insuspeito «Financial Times», que dá conta do que se está a passar num dos principais países europeus: A fusão do ex-PDS comunista com os dissidentes do SPD gera, de um dia para o outro, o maior partido da Alemanha, com 72 mil militantes, e é capaz de abalar a arquitectura política do país.
Por outro lado, sabendo-se agora quanto deveu a vitória da direita francesa ao influente eleitorado da terceira idade, anote-se esta conclusão interessante do jornal «La Croix»: O centro urbano é habitado por elites e por jovens licenciados em asceñsão, o que na França de hoje corresponde a uma nova geração de esquerda.
Tendo em conta que os resultados das legislativas até temperaram a arrogância da direita sarkhoziana, pode-se concluir que os socialistas franceses têm, agora, a disponibilidade para, em cura de oposição, reformularem as suas estratégias de forma a engrossarem essa tendência política que, em breve, se revelará...

«Coração de Urso», um filme de Arvo Iho

É decerto uma novidade: um filme estoniano de 2001, filmado nos gelos siberianos. Aonde dominam os ursos e a taiga abriga tantos animais, que corresponde a um paraíso para os caçadores.
Niika é um deles: conseguindo uma concessão, ele divide-se entre a aldeia aonde se apaixona pela jovem professora e a liberdade superlativa dos grandes espaços gelados.
A sua integração parece bem sucedida, quer entre os aldeões, quer entre os nómadas da taiga.
Um dia, na floresta, ele assiste à cópula de um urso gigantesco com uma fêmea. Atacado pelo macho, ele mata-o com o seu último tiro, sendo perseguido pela fêmea que, em vez de o morder, o trata com doçura.
No Inverno seguinte, quando já casado com Guitia, ele exaspera-se ao ver desarticuladas as suas armadilhas. Usando a inteligência ele captura quem o está a prejudicar: uma jovem esquimó, envolvida em pele de urso, e que ele recolhe na sua cabana, embora ela pareça semi-selvagem.
O seu casamento desfaz-se com a destruição da escola e com a partida de Guitia a quem ele recusa a seguir no regresso à civilização.
O seu encontro é com a taiga e com a estranha mulher a quem crisma de Emilie. É ela quem lhe dá um filho, com quem desaparece ao reassumir a sua personalidade efectiva: a de ursa. Que ele acaba por matar com um tiro certeiro.
Ele vegeta então no alcoolismo e na loucura até conseguir encontrar morto a própria sombra: um esquimó explica-lhe, então, que ele está purificado…
Trata-se, pois, de um filme estranho, que não se deixa abordar com facilidade tão distinto é o seu misticismo em paralelo com os nossos valores.
Niika acaba por ser um homem em busca de si mesmo, encontrando-se com o seu lado mais obscuro.
Talvez ajudasse o conhecimento do livro de Nikolai Baturin em que se baseia. Mas, para um espectador não iniciado nas lendas dessa região, há o encantamento de uma belíssima fotografia, que reproduz a magia desses lugares inóspitos em que radica a sua acção.

quarta-feira, junho 20, 2007

So Much So Fast trailer

Ao ver um filme destes dá-se ainda maior importância à urgência em se aproveitar a vida como um supremo bem, que mais tarde ou mais cedo nos falha...

Viver Depressa

«So Much/So Fast», filme de Jeanne Jordan e de Steven Archer datado de 2006, convoca a sempiterna questão do voyeurismo nas imagens do sofrimento alheio.
Trata-se de um documentário, que mostra a evolução da esclerose lateral amiotrófica no corpo do jovem arquitecto Stephen Heywood e do gigantesco esforço da família para combater o inevitável.
Durante seis anos, acompanhamos o nascimento da fundação lançada por Jamie, irmão mais velho de Stephen, para convocar os meios e as vontades da sociedade civil e dos cientistas de forma a apressar a descoberta da cura.
Entretanto, inexoravelmente, os tecidos do sistema nervoso de Stephen vão sendo destruídos até à sua morte em 2006, quando contava 37 anos.
Entre as esperanças mais infundadas e os períodos de maior desânimo - nomeadamente quando, por falta de fundos, a fundação é obrigada a reduzir-se à mínima dimensão possível - o filme é elucidativo quanto à incapacidade em alcançar em tempo útil o objectivo do tremendo esforço dos seus protagonistas…
Que abdicaram de carreiras profissionais promissoras e de vida familiar para se dedicarem a quem, por natureza, está condenado à partida…

segunda-feira, junho 18, 2007

Auschwitz num documentário da BBC

Quem já foi a Auschwitz confessa uma sensação estranha ao percorrer aquele espaço onde morreram centenas de milhares de pessoas.
Um documentário televisivo, com a chancela da BBC, não expressa essa sensação de aperto no estômago perante o significado daquelas camaratas ou do percurso para as câmaras de gás, mas revela a injustiça de mais de 90% dos criminosos aí colocados para fazerem funcionar aquela máquina de morte, nem chegarem a ser julgados. A condenação à morte, por enforcamento do antigo chefe do campo, Rudolf Hoess, de pouco consolo serviu a quem viu a família esfumar-se pelas chaminés de Auschwitz.
Mas o documentário, apesar de diabolizar o Exército Vermelho, enfatizando as violações de mulheres alemãs e judias nas semanas subsequentes à libertação dos campos, tem a vantagem de pôr um dos esbirros ainda sobreviventes, Oskar Groning, a desmentir as teses revisionistas sobre o Holocausto: «eu estive lá e vi as atrocidades cometidas sobre os prisioneiros!», é a mensagem por ele deixada no final do documentário.

Auschwitz

Para o horror estão dispensadas as palavras...

domingo, junho 17, 2007

Martin Scorcese e JR no «Metropolis»

Embora a nova fórmula do programa, ensaiada este ano, esteja longe do interesse despertado durante a longa gestão de Pierre André Boutang, o «Metropolis» ainda continua incontornável de entre a oferta de programa culturais acessíveis pela televisão por cabo.
O programa desta semana começou com uma reportagem a propósito da edição francês em DVD do filme mais recente de Martin Scorcese: «Os Infiltrados».
Na origem estava uma trilogia de filmes de Hong Kong com gangsters ultra violentos inspirados nos dos primeiros filmes do realizador.
Mas Scorcese reescreve a história com as idiossincrasias tipicamente americanas : polícias que se comportam como cowboys, gangsters virulentos, armas em todas as mãos e a palavra “fuck” em todas as bocas.
Por outro lado, Leonardo DiCaprio substituiu definitivamente Robert de Niro como actor fetiche do realizador. Ele já fora o emigrante esfomeado de Gangs of New York, nababo de Hollywood em o Aviator, e polícia infiltrado e sacrificado neste «Os Infiltrados»: todos símbolos do nascimento de uma nação, da sua idade de ouro e da sua decadência.
Com uma forte envergadura, um rosto tenso, pele avermelhada, ombros descaídos e mãos nos bolsos como se fosse o herói de Taxi Driver, ele torna-se no herói trágico, quase num émulo de Cristo atirado para o sacrifício, disposto a resistir a todos: aos polícias e aos gangsters num mundo onde a fronteira entre o Bem e o Mal se torna cada vez mais difícil de determinar.

Outra reportagem do programa desta semana foi sobre JR, um jovem fotógrafo francês, que quis responder a duas perguntas - o que é um israelita? O que é um palestiniano? - mediante a realização de um conjunto de retratos gigantescos, que colou nas paredes e muros de Hebron e de Ramallah.
Como antes já fizera em Nova Iorque, Berlim ou Paris.
Vendo esses retratos nas paredes, os israelitas e os palestinianos compreendem como é tão difícil distinguir-se entre si. Que os motivos de divisão acabam por parecer fúteis face aos que os pode unir.
A fotografia acaba, assim, por assumir uma função política assinalável.

Rosa de Hiroshima

O espectáculo do Ney Matogrosso no Coliseu até deu para confirmar quão aquém do desejável é a acústica da sala. Mas o Ney é sempre o Ney, mesmo aos 65 anos: a música sensualizada pelas palavras e pelos gestos.
E o Coliseu quase vinha abaixo com os aplausos...

«O ANO DO PENSAMENTO MÁGICO» de JOAN DIDION (2)

Primeiro: o sofrimento. Só depois o luto. É esta a experiência transmitida por Joan Didion na sua evocação dos meses subsequentes à morte de John Gregory Dunne, com quem estivera casada durante quase toda a sua vida adulta.
As preocupações não lhe dão oportunidade para se entregar à reflexão racional da sua provação. Sobretudo, porque os problemas de saúde da filha, Quintana, não lhe dão descanso. E, enquanto ela volta a estar nos Cuidados Intensivos de um hospital em Los Angeles, Joan só procura evitar cruzar-se com as casas e com as ruas aonde outrora fora feliz. Não é impunemente, que se regressa em tão dramáticas circunstâncias ao sítio aonde se vivera vinte e quatro anos.
Há a sensação de viver num limbo, aonde os gestos se sucedem, os pensamentos caóticos se entrecruzam, sem darem resposta à obsessão contínua de se perspectivar como se poderá continuar a viver na ausência de quem comparticipava numa forte cumplicidade afectiva.
Acaso fosse crente haveria sempre a esperança num qualquer além. Mas, no casal era John quem perfilhava as concepções próprias de um catolicismo meio-céptico.
Quando, enfim, a saúde de Quintana melhora, ela pode assumir duas atitudes opostas: a de culpa por ter agido desta ou daquela maneira, que tivesse alterado o desiderato da noite de 30 de Dezembro de 2003, mas também a de raiva por John Gregory não poder ilibar-se do abandono a que a sujeitou…

Primeiro Tempo de Antena UNIR LISBOA

É curioso como o candidato do PS está a fazer convergir apoios de gente vinda de áreas políticas tão diversas...

sábado, junho 16, 2007

«Família Rodante», um filme de Pablo Trapero

A família é um verdadeiro local de massacre, quando mingua o espaço para os seus integrantes respirarem.
Esta é a conclusão mais óbvia, que se retira de «A Família Rodante», filme do argentino Pablo Trapero, que passara no Festival Indie de 2005.
Tudo começa no 84º aniversário de uma anciã, Emília a quem telefonam da sua quase esquecida cidade natal, Missiones. De lá convidam-na para madrinha de uma prima, que está em vias de se casa.
Logicamente as filhas, os cunhados, os sobrinhos, os netos e até uma bisneta associam-se à viagem de mil quilómetros até à fronteira brasileira a bordo de uma caravana fabricada e conduzida pelo genro Óscar.
Se o veículo está decrépito deixando-os apeados mais de uma vez à beira da estrada, muito mais complicada é a relação entre os doze viajantes.
Há um genro, que assedia incessantemente a cunhada até quase a vergar ao seu desejo e se vê expulso da viagem pelo despeitado e quase traído condutor.
Dois dos dois netos da anciã, Gustavo e Yarina, trocam os primeiros beijos até quase chegarem à concretização dos seus mútuos desejos, apesar das reservas morais levantadas pelo quase incesto.
Há a neta já mãe de uma criança resultante de uma relação - condenada por Óscar - com um motoqueiro mais ou menos duvidoso quanto às drogas.
Acresce ainda Matias, um miúdo com meia dúzia de anos, que consegue enfiar um rafeiro abandonado no já apertado espaço em que viajam.
Nessa verdadeira odisseia rumo ao norte, eles vão olhando para as mudanças na paisagem, para as pessoas com quem se vão cruzando, mas sobretudo para o quanto eles próprios estão a mudar dentro de si próprios.
É uma sociedade moralmente conservadora a contas com as suas pulsões sexuais, que permanecem reprimidas nas mais profundas das suas convenções. Aquelas cujo epílogo se anuncia nos choros de arrependimento de alguns dos seus pecadores, ainda sem compreenderem como puseram em causa a sua integração dentro do precário equilíbrio de uma família muito mais disfuncional do que, a princípio, aparentava.

sábado, junho 09, 2007

No S. Luiz: «Quando o Inverno Chegar»

Ao levantar o pano temos a floresta à nossa frente: troncos de árvores a denotarem uma densidade frondosa desse lugar fronteiro ao sanatório aonde Hans, Melchior e Emil esperam que a sua temperatura baixe.
A paisagem pressentida, esse receio em relação à tuberculose, os lieder interpretados por Carla Simões, remetem-nos para o universo romântico. Embora a gravidez de Lena e a sua condição de criada iludida pelas falsas promessas do jovem patrão remetam para as denúncias do ideário realista.
O tema não podia, porém, ser mais actual: os três doentes até não o estarão tanto quanto o desejariam. Porque o que eles ali vivem é a segurança de um espaço aonde não se sentem ameaçados.
Eles sabem que a verdadeira vida acontece lá fora. E que eles até almejariam por nela encontrar forma de integração. Mas Melchior nunca conseguirá ser o actor, que arrebataria plateias com os seus desempenhos. E, quanto a Emil, a proibição de sair dali ainda é mais contundente, já que, mais do que a doença, terá sido a paixão incestuosa pela própria irmã, a encerrá-lo naquele hospício das montanhas.
É Hans, quem menos se ilude com a possibilidade de sair da vigilância das freiras: ali, pelo menos, a sua condição de bastardo pouca importância tem até ser desmascarada por Emil num jogo de massacre lá para o final. Quando Lena, a jovem grávida, que começara por se querer enforcar, mas agora se quer arriscar a um regresso à planície, os desafia a acompanhá-la.
A peça encenada pelo realizador Marco Martins a partir de um texto de José Luís Peixoto e conceptualizada em conjunto com os quatro actores, vale, sobretudo pelo desempenho superlativo destes.
Beatriz Batarda é credível na sua fragilidade de mulher traída. Dinarte Branco é um Emil ingénuo, mas o mais idealista dos doentes do sanatório. Nuno Lopes é o alcoólico inveterado, que já perdeu a capacidade de acreditar em si, mas é capaz de reavaliar as suas possibilidades. E Gonçalo Waddington veste o mais cruel desses personagens por reduzir tudo o que vivem a um enquadramento de valores niilistas sem margem para a redenção.
Toda a história aparece embrulhada numa partitura musical muito tensa a cargo de um punhado de executantes muito jovens, escondidos para lá dessa floresta.
A cena teatral lisboeta está pujante com a revelação de actores menos conhecidos do que os habituais consagrados, mas com um talento notável.
Ainda que muito extensa e desigual, a peça em cena no S. Luiz acaba por ser dos grandes espectáculos deste ano.

Joan Didion e o ano do pensamento mágico

Em 30 de Dezembro de 2003 a escritora Joan Didion vai conhecer a maior provação da sua vida: a morte inesperada do seu companheiro de quase quarenta anos de visa, John Gregory Dunne, que sucumbe a um fulminante ataque cardíaco.
Nada a preparara para essa experiência, algo que ela quase sente como um «banal instante».
E, no entanto, esses eram dias bastante difíceis para o casal: a filha, Quintana, ainda estava num estado muito grave depois de ter contraído uma pneumonia, seguida de choque séptico, que a deixava em coma na Unidade dos Cuidados Intensivos do Beth Israel Hospital.
«O Ano do Pensamento Mágico» é o livro, que resulta da sua longa catarse, do seu lento renascer depois de, com a morte dele, se sentir quase morrer.
O tema é aliciante para quem já passou o meio século de vida e começa a pôr em causa a secreta expectativa de imortalidade.
É também um livro de uma enorme erudição: a autora investigou os comportamentos perante a morte, mormente a evolução histórica dessa vivência. Confirmando o que o historiador francês Philippe Ariés teorizou: nas nossas sociedades contemporâneas, em que tudo está canalizado para enfatizar a fruição dos prazeres da vida, a morte ganha foros de clandestinidade, de coisa quase obscena.
A atitude de Jane é muito contida: para o exterior, sabe que dá aparência de racionalidade na forma como fica sem o seu cúmplice. Mas essa contenção é relativa: mais do que contrôle das emoções, ela confessa uma certa forma de apatia. Como se, por um passe de mágica, se criassem as condições para a reversibilidade dos acontecimentos.
Há também um reviver do passado: aquelas palavras ditas por John nas suas últimas semanas de vida e que, interpretadas a posteriori, poderiam pressagiar um conhecimento inconsciente do desenlace iminente. Até porque o coração dele já andava periclitante: um pace maker procurava dar um comportamento normal a um órgão já muito desgastado.
Um exemplo disso mesmo é quando ele anda a tomar notas para um livro seu sobre as práticas desportivas e, sabendo-a igualmente com um projecto de contornos semelhantes, dissera à mulher para as aproveitar.
A leitura do livro pode comportar características voyeuristas: espreitamos como é que outrem viveu uma experiência pela qual nós temos bastantes probabilidades de passar. Mas o papel de leitor não é, afinal, a busca de respostas para o que nos inquieta nas palavras alheias?

quinta-feira, junho 07, 2007

S. Petersburgo ou Leninegrado?

A cimeira de Heilingendamm, que decorre a partir de hoje na Alemanha, revelará um Vladimir Putin cioso do seu papel de guardião dos interesses de uma Rússia à procura do seu passado imperial.
Poder-se-á condená-lo por isso, como o fazem os comentadores políticos com maior visibilidade nos nossos media, alinhados que estão com a defesa do eixo euro-atlântico?
Embora ainda não tenha avançado para uma estratégia visivelmente a contracorrente dos conceitos vigentes da democracia formal - como já parece ser o caso de Hugo Chavez na Venezuela - o actual ocupante do Kremlin já terá interiorizado algumas conclusões óbvias: que nunca a Rússia foi tão forte a nível internacional como na época da sua supremacia imperial sob a designação de União Soviética.
Nem mesmo Catarina ou Pedro, o Grande, terão rivalizado em poderio com Estaline, sobretudo quando a Segunda Guerra Mundial se concluiu com a influência de Moscovo sobre um conjunto significativo de outras nações leste-europeias.
Da mesma forma, também nunca a generalidade do povo russo terá acedido a condições de vida tão favoráveis como nos tempos de Khrustchev, quando o regime soviético tendia a aligeirar os seus constrangimentos a nível da liberdade de expressão sem pôr em causa a plena ocupação dos cargos políticos pelo seu partido único. No fundo algo que o Partido Comunista Chinês está hoje a gerir com maior eficácia e melhores resultados.
Por outro lado, os dirigentes da Nato e do Pentágono também ajudaram Putin a consolidar um sentimento nacionalista já nele anteriormente formatado na sua passagem pelo KGB: essa pressa em estender a União Europeia ou as mais avançadas armas ocidentais até países com uma mentalidade muito pouco consonante com os valores civilizacionais dessa comunidade de nações - hoje bem demonstrada no totalitarismo dos gémeos polacos ou no racismo anti-russo dos países bálticos - só arreigou a sua convicção da urgência de outro caminho, que não o seguido pelo seu antecessor Ieltsin.
Começaram por padecer essa mudança de estratégia os oligarcas que, à conta da tal democracia à ocidental, se apossaram dos principais recursos naturais do país. Que os mais emblemáticos desses sujeitos estejam nas prisões siberianas ou nos exílios londrinos, prova bem quanto os actuais líderes russos viraram costas a uma forma de capitalismo assente no primado da propriedade privada.
Padecem-na, igualmente, os jornalistas cuja liberdade de argumentação em favor desses interesses privados, ficou seriamente condicionada com sucessivos atentados, que tendem a serem mais prudentes na forma como interpretam o seu papel na defesa dos superiores interesses da nação russa. Sobretudo, quando se mostravam tão lestos a dar credibilidade a terroristas islâmicos, que defendem a transformação da Chechénia em mais um foco do expansionismo do fascismo muçulmano.
Se antigas repúblicas soviéticas ganharam a independência para se transformarem em países a soldo de ditadores sem escrúpulos, que reduziram os seus povos a uma profunda miséria, o Kremlin não mostrará sinais de abertura para outras aventuras desse tipo. Nem sequer para as repúblicas, que a Geórgia reclama como suas.
Um factor de relevante importância fortalece Putin nas suas posições: num mundo em que as fontes de energia escasseiam, a Rússia ganha um poder significativo face a uma Europa sem outra alternativa, que não seja a de se abastecer aí ou nos instáveis países do Médio Oriente.
Será, pois, provável uma deriva progressiva das autoridades russas no sentido de uma redução das liberdades formais defendidas a ocidente. Que foi perdendo, pouco a pouco, a sua argumentação pró Direitos Humanos nos seus contactos com as autoridades de Pequim.
Num mundo em permanente mutação, o pragmatismo dos condicionalismos económicos tenderá a limitar as tentações em enfatizar questões, que outrora garantiram prestígio a Sakharovs ou a Soljenitsins.
Poderá até ocorrer o que, ainda há pouco tempo, se afigurava improvável: a redenção dos antigos líderes soviéticos: no fundo talvez não falte muito para que S. Petersburgo volte a chamar-se Leninegrado. Quanto mais não seja por ter sido na cidade então assim chamada que o heroísmo russo escreveu uma das suas mais gloriosas páginas do século XX. E bem sabemos como todos os nacionalismos dão tanta importância aos símbolos.