domingo, maio 15, 2016

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «Ascensão» de Larissa Shepitko

Há filmes que ando há muitos anos para ver, seja por falta de disponibilidade, seja por me encontrar algures no meio de algum oceano, quando eles se estrearam.
Com este filme de Larissa Shepitko a espera durou quase quarenta anos: quando chegou a Portugal, depois de ganhar o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1977, estava num petroleiro da Soponata algures no Atlântico ou no Índico.
Calhou a oportunidade propiciada pelo Ciclo do Grande Cinema Russo, atualmente a decorrer no Nimas, para que suprisse mais uma falha - confirmei que relevante! - na minha cultura cinéfila.
Duas razões me poderiam afastar à partida da sua apreciação: tratar-se de um filme de guerra e alimentar-se de referências bíblicas. Ora, além de impenitente ateu, nunca gostei particularmente de obras tendo situações de conflito bélico como cenário. Só que «Ascensão» tem muito mais que o recomende do que aquelas duas vertentes. Há um trabalho de realização admirável, que justifica a questão: se Larissa Shetipko não tivesse morrido aos 40 anos num desastre de viação, em 1979, quando preparava o filme que se seguiria a este, a que dimensão chegaria a sua filmografia?
Ela tanto impressiona no recurso aos longos planos-sequência na primeira metade do filme, quando os dois resistentes russos avançam esforçadamente na neve, como na exploração dos rostos, quando eles são interrogados pelo inquietante Anatoli Solonitsyn, que já conhecíamos dos filmes de Tarkovski.
O filme começa com um grupo de clandestinos - com velhos, mulheres e crianças - a fugir dos Exterminadores, um batalhão nazi com a missão de eliminar todos quantos não aceitam a subjugação de viverem em aldeias policiadas pelo exército ocupante. Esgotados, esfomeados, o chefe desses desesperados envia dois soldados em busca de alimentos, que lhes permita ganhar forças para alcançarem uma zona melhor defendida pela Resistência.
Um é Sotnikov, antigo professor de matemática, que tem dificuldades em acompanhar o possante e menos instruído Rybak.
Após constatarem que a aldeia onde esperavam encontrar apoio estava completamente incendiada, Sotnikov é atingido na perna por uma bala alemã. Já estava decidido a matar-se para não ser apanhado com vida, quando Rybak, com um esforço sobre-humano o vem salvar, conseguindo levá-lo para uma cabana onde três crianças esperam a mãe.
O descanso é de curta duração, porque chegam milicianos pró-nazis, que os levam presos, conjuntamente com a mulher entretanto chegada com alguns alimentos para os filhos.
O colaboracionista que os interroga - um antigo professor na região, que se pusera ao serviço dos ocupantes - procura saber quem são e onde estão os outros clandestinos. Inverte-se, então, a força de cada um: o frágil Sotnikov recusa falar, mesmo quando barbaramente torturado, enquanto Rybak revela-se cobarde, capaz de vender a alma para que o não matem.

É nesta parte, que se revela esse lado bíblico assumido pela própria realizadora nas entrevistas da época, com Sotnikov a equiparar-se a uma figura crística capaz de se sacrificar em nome dos seus valores, enquanto Rybak é um verdadeiro Judas (uma das aldeãs acusá-lo-á disso mesmo!), capaz de trair os seus para salvar o coiro.
Shepitko conduz-nos desse cenário de neve que cega até à iluminação translúcida de uma cela, do esgotamento físico da primeira parte à quase insustentável tensão psicológica da segunda, até culminar na cena das cinco cordas preparadas no alto de uma colina, que remete por associação de ideias para a Gólgota.
Mais do que filme de guerra ou religioso, «Ascensão» tem  a ver com as escolhas morais, o sentido do sacrifício, a resistência e a cobardia, tudo tratado com uma ímpar sageza.

(link do filme com legendas em inglês)


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