terça-feira, junho 28, 2022

Quando os lobos voltam a ser dóceis cordeirinhos

Vale a pena voltar ao mais recente ensaio de Boris Cyrulnik -  Le laboureur et les mangeurs de vent - para ver explicadas as condições em que descobriu algo depois escalpelizado ao longo da sua vasta experiência como neurologista ou psiquiatra: a possibilidade dos lobos abdicarem da sua condição predadora tão-só se alterem as condições em que, antes, o podiam ser. O espírito de alcateia, que norteia muitos dos comedores de vento do título do livro, esvai-se quando se confrontam com as manipulações de que foram objeto e os fizeram voluntários servidores de uma narrativa mentirosa. Porque, como Cyrulnik atesta, quem uiva com os lobos acaba por sentir-se lobo participando ativamente em genocídios, mesmo tratando-se de gente medíocre na forma como interpreta e executa aquilo que Hanna Arendt qualificou de banalidade do mal.

 De leitura estimulante o ensaio incita-nos a refletir nas propostas do autor para que sejamos, tanto quanto possível, esse laboureur, que não se conforma com o pensamento dominante e ousa retirar as próprias conclusões do que vê, ouve ou lê. Mesmo arriscando-se a ficar isolado num contexto em que quase todos os demais parecem convergir para conclusões, que não são as suas.

Fica aqui a tradução das primeiras páginas do livro:

Quando foram derrotados, os terríveis super-homens transformaram-se em companheiros agradáveis. Eu tinha 7 anos quando testemunhei essa metamorfose.

Em 1941, o exército alemão entrou vencedor em Bordeaux. Maravilhoso! Desfile impecável, o alinhamento de capacetes e armas deu a impressão de poder irresistível. A beleza dos cavalos arreados com penas vermelhas, a música guerreira, os tambores hipnotizantes davam a sensação de força formidável. À minha volta as pessoas choravam.

Após quatro anos de ocupação, prisões nas ruas, incursões matinais, proibições e patrulhas, os alemães refugiaram-se em Castillon-la-Bataille. Ocuparam a vila, colocaram sentinelas nos pontos de observação e ergueram barreiras nas entradas. Os combatentes da resistência, comunistas e gaullistas, cercaram-nos. Em 1944, o oficial sabia que o nazismo perdera a guerra e qualquer luta só poderia causar mortes desnecessárias. Baixou as armas para proteger os seus homens. As palavras que ouvi significavam "render-se", na linguagem quotidiana: "Ach... a guerra!" E o capitão assinou. De um dia para o outro os temíveis super-homens transformaram-se em gentis camponeses. Quando se renderam, vi milhares de soldados maltrapilhos a marcharem em fila indiana, vigiados por uma dúzia de crianças mal armadas que os enfileiraram na praça do vilarejo. Os super-homens sujos, barbudos e desabotoados olharam para o chão e sentaram-se inertes, sem dizerem palavra.

Assinado o armistício, os orgulhosos soldados tornaram-se "prisioneiros de guerra" e despiram as fardas para trabalharem com os camponeses que os abrigavam. Cuidavam das vinhas e dos animais, brincavam com os transeuntes. Acenavam para as crianças, diziam palavras em francês ou alemão. Em suma vi esses homens a sorrirem e a colherem as frutas que não conseguíamos alcançar.

Uma simples frase, "acabou a guerra", algumas palavras num papel com assinatura, foram suficientes para transformar mentalidades. Deixámos de ter medo dos alemães. Os resistentes impediam que fossem alvos de insultos ou cuspidelas, pedindo aos agressores franceses que mostrassem alguma dignidade. Na minha cabeça de criança, achava possível odiar, matar e, de súbito, mudar de mentalidade. Uma palavra era suficiente para ver o mundo de forma diferente.

É na infância que colocamos os problemas fundamentais com os quais vivemos  as nossas vidas. É com a idade que descobrimos que bastam duas ou três palavras para estruturar uma existência.

Encontros Imediatos de Terceiro Grau, Steven Spielberg, 1976

 

Gosto de voltar a filmes, que me tenham agradavelmente impressionado no passado, reencontrando-os com a grata sensação de sempre neles encontrar algo de novo.

Curiosamente não voltei a este de Spielberg, talvez porque julgasse recordá-lo tão bem, que sentiria estulta a disponibilidade de duas horas e um quarto para conferir o que dele já julgava conhecer.

A surpresa foi concluir o quanto o havia esquecido. Se o fio condutor da intriga ainda estava nítida na memória, multiplicaram-se os detalhes esquecidos e fundamentais para a estruturarem no seu todo. Nesse sentido posso reconhecer que, sem me fascinar tanto quanto ocorrera nos vinte anos de idade, ainda conseguiu dar a este sexagenário que sou, um bocado bem passado. Até porque melhor escalpelizei o que, então, escapara tornando mais compreensível muitas das cenas à luz daquilo que viemos a saber sobre o realizador: o quanto sofrera com o divórcio dos pais numa altura em que essa opção de rutura conjugal não era tão comum. E como elas se inserem na melhor demonstração do tema preponderante da história: a incomunicabilidade - não só dentro do casal -, mas também entre as gerações, entre as diferentes nacionalidades e, sobretudo, entre a elite política, militar e científica e a generalidade da população.

Para o ateu que sou não me agrada a tentação religiosa, que consiste em associar os extraterrestres a uma representação do próprio Deus de quem se esperam todas as respostas (o personagem de Dreyfus a olhar para o céu e a gritar por ajuda, por uma explicação) e para quem se canalizam todas as expetativas. Mas a entrada desse personagem na nave não corresponderá alternativamente a uma entrada no contraponto da vida, ou seja na morte?

A costela cinéfila satisfaz-se com a presença de François Truffaut, mesmo que como inverosímil cientista, mas à procura e propondo novos códigos para uma linguagem de entendimento com os aliens, naquela que constitui uma homenagem à nouvelle vague. Há, igualmente, o prazer de evocar muitas outras referências cinematográficas, nomeadamente o Hitchcock de A Intriga Internacional com os helicópteros a pairarem sobre as cabeças dos protagonistas ou a analogia da montanha do filme com a do Monte Rushmore.

À sua terceira longa-metragem (quarta se contarmos com o telefilme Duel, que teve distribuição nos cinemas europeus), Spielberg lançou aquela que seria a matriz da sua obra nos quinze anos seguintes, aqueles em que foi visto como um jovem com muito de infantil, mas capaz de criar impressivos entretenimentos para todas as gerações.

À distância lamentei que o seu sucesso, a par do de George Lucas e outros cineastas da geração New Wave tenham forçado o dobre de finados dos que procuravam impor um tipo de filmes mais políticos e adultos. Através de metáforas propunham uma visão semelhante da América, mas menos explicita e mobilizadora. Porque aqueles que então questionavam o falhanço dos sonhos e a sobreposição dos pesadelos nas terras do Tio Sam, foram silenciados ou condenados a curvarem-se perante a emergência  de um tipo de cinema de mera diversão. Como este assumidamente continua a ser... 


segunda-feira, junho 27, 2022

Quando se procura algo e se obtém o contrário

 

Remonta a milénios a procura de um elixir para a imortalidade.  Alguns dos mais antigos monumentos da Antiguidade - as pirâmides do Egito ou o exército de terracota de Xian - atestam-no. Mas não deixa de ser paradoxal que os chineses  tenham inventado a pólvora precisamente ao buscarem a solução para garantir ao seu imperador a duração da vida muito para além do que impunham - e continuam a  impor! - as contingências terrenas.

O que nos leva a uma constatação singular: ao criarem a forma mais expedita de abreviarem a morte, quando procuravam forma de a adiar o mais possível, comprovaram a forte possibilidade de se chegar ao resultado mais oposto quando, obsessivamente, se busca um determinado objetivo. 

sexta-feira, junho 24, 2022

Carrie, Brian De Palma, 1976

 

Quarenta e cinco anos depois volto a um filme que deu-me muito prazer, porque confirmou o interesse pela filmografia do então prometedor Brian De Palma (de quem já vira o singular Fantasma do Paraíso), pelos romances de Stephen King (de quem me tornaria leitor frequente) e pelo talento de Sissy Spacek (se bem que este título figurasse doravante como a sua mais icónica interpretação).

De Palma começava o filme com o recurso ao seu muito glosado plano-sequência, primeiro na cena do jogo de voleibol, que permite situar Carrie como alguém à parte das colegas de liceu, depois na do duche a acompanhar o genérico e pela qual assistimos ao terror de se ver hemorrágica, sem compreender o significado da até então desconhecida menstruação. Inesquecível o momento em que, na posição fetal, é acarinhada pela surpreendida professora de ginástica.

Melhor lhe compreendemos a personalidade timorata, quando conhecemos a mãe, interpretada pela excelente Piper Laurie, que criou uma forma muito pessoal de entender a religião com o pecado da carne a motivar-lhe a quase exclusiva obsessão. E, se o liceu se chama Bates - o mesmo apelido que o hotel de Hitchcock em Psico - intuímos ser esse cenário o melhor ajustado na referência cinéfila ao mestre ou não ocorra aí a cena com o facalhão, que começará a travar a fúria destruidora da protagonista.

De fio a pavio o filme expressará contínuas relações de forças entre todos os seus personagens, seja entre professores e alunos, mães e filhas, alunos assediadores e suas vítimas.

Na cena culminante - a do baile em que Carrie e Tommy Ross serão eleitos o par do ano - De Palma recorre ao suspense baseado no McGuffin tão explorado por Hitchcock: nós espectadores sabemos aquilo que os personagens desconhecem, antecipando assim o que se seguirá. À magia do instante da consagração seguir-se-á o horror sem limites, potenciado no recurso ao ralenti para ainda mais o perdurar.

Quando Carrie usa os poderes telecinésicos para a catarse do trauma em que se vê sanguinolentamente mergulhada, deixa de haver fronteira entre o bem e o mal, entre rapazes e raparigas, entre crença e agnosticismo, entre real e imaginário. De Palma multiplica os artifícios técnicos para a exaltação visual e sonora do massacre num caleidoscópio que acentua a ideia de caos.

Se o fogo induz a ideia de purificação é por ele que culpados e inocentes morrem. E arrisco dizer que nunca mais De Palma foi tão eficaz em fazer-nos perdurar a memória de um dos seus filmes. Porque, quarenta e cinco anos depois, ao revê-lo, concluí quase nada dele ter esquecido. E continuar-me a fascinar! 

terça-feira, junho 21, 2022

Só Duas Coisas Que, Entre Tantas, Me Afligiram, Alice Vieira

 

 

Todos os dias podem-se arranjar matérias, que sirvam para escrever pequenas crónicas: eis um dos argumentos de Alice Vieira para justificar este livro, que congrega muitas das por si publicadas num jornal de Mafra.

Somos assim convidados para associarmo-nos às suas memórias de uma vida já longa em que o mister de jornalista foi assumido com sentido de missão e autêntica devoção.

Daí que ele nos tenha durado pouco, porque num instante o lemos. Cada um desses textos deram-nos prazer, mesmo neles não reconhecendo a pretensão de se assumir como Literatura com maiúscula. Até porque incorrem no risco de ficarem datados rapidamente tão profundas são as mudanças a que vamos assistindo. Mas enquanto dura o prazer de o ler, que poderemos querer mais?

Um Crime Imperfeito, James Toback, 2017

 

Foi assim como uma espécie de alien  na oferta disponibilizada pelos canais de cabo dedicados ao cinema: este filme de James Toback - também ele execrado pelo movimento MeToo neste mesmo ano de 2017 por quantas se disseram por ele assediadas  - começa com o crime anunciado no título logo no genérico inicial e, durante algum tempo, questionamo-nos se aconteceu mesmo ou é fruto da fértil imaginação da protagonista, uma atriz remetida ao refugio caseiro enquanto não encontra convite propício a voltar à frente das câmaras ou ideia suficientemente interessante para a situar atrás dela.

A reprodução de O Jardim das Delícias de Bosch está na parede a prometer utopias inalcançáveis, enquanto na banda sonora, a Sétima Sinfonia de Shostakovitch, dirigida por Gergiev, serve-lhe de contraponto. E desfilam pelo apartamento um conjunto de personagens, que servem a Vera Lockman (Sienna Miller) para se questionar, não só quanto ao que irá fazer ou fez, mas sobretudo quanto ao que sente ou passará a sentir.

O crime muda-lhe a forma de olhar para o mundo à volta, porventura permitindo-lhe sair do tentador estado depressivo para outro bem mais animoso, o da resiliência. Mesmo que a demência do avô - Charles Grodin no seu derradeiro desempenho! - a incite a relativizar a diferença entre o que parece ser a realidade e o que é de facto. Ou que a presença inquietante do detetive McCutcheon lhe lembre os perigos de se ver desmascarada se não se revelar suficientemente previdente. Até porque fica evidente o sentir-se numa sociedade em que a noção de privacidade é limitada e qualquer conversa, telefonada ou não, pode ser sujeita a escuta.

Surpreende-se o espectador - mesmo sabendo-se que Toback funciona dentro dos cânones da máquina de Hollywood - perante a tentação de, relativamente a eles, Toback fazer algo diferente até deixando em aberto um final, que pode ser aquele que lhe for mais conveniente... 


sexta-feira, junho 17, 2022

A Maestra da Vida

 

A Lua atua em todos os oceanos do planeta sujeitando-os aos ciclos das marés, que constituem a melhor demonstração dos seus efeitos de atração gravitacional. Mas também se crê que influencia a espécie humana no sono e reprodução. Os mitos a seu respeito vão tão longe que levem a crenças tão esdrúxulas como a dos cabelos crescerem mais saudáveis se cortados nas noites de Lua Cheia.

No reino vegetal há também quem constate o efeito no crescimento e longevidade das árvores levando alguns madeireiros a agirem de acordo com os ciclos lunares, cortando-as preferencialmente nas luas novas, porque a produção apresenta melhor qualidade. Na sua opinião a respiração das árvores faz-se de acordo com a movimentação do nosso satélite.

Os cientistas corroboram essa influência da Lua em todos os mecanismos biológicos do planeta numa complementaridade com o que também o faz o sol. Crê-se que sem ela nem sequer existiríamos, porque, há 4,5 mil milhões de anos a Terra rodava em torno de si própria em apenas duas ou três horas, condições nas quais nunca a vida teria podido desenvolver-se. A Lua, então mais próxima, causava efeitos de marés intensíssimos, com amplitudes cataclísmicas bastante maiores do que as atuais. Foi o progressivo afastamento da Lua para a sua órbita atual, e a consequente desaceleração na rotação da Terra que possibilitou a eclosão da vida.

A Lua é, igualmente, determinante na alternância das estações do ano, propiciando a diversidade da fauna e da flora que conhecemos. Existem tartarugas que escolhem as noites de Lua Cheia para depositarem os ovos nas praias ou corais da Grande Barreira australiana que reproduzem-se num efeito que lembra o da neve, mas debaixo de água.

No papel que as suas fases desempenham na reprodução de muitas espécies a Lua deve ser vista como a grande maestra da Vida. E os que têm maiores capacidades criativas também não ficam indiferentes às potencialidades suscitadas pelas horas noturnas e, particularmente, naquelas em que a Lua faz valer a sua presença. 

quinta-feira, junho 16, 2022

Mon Amour, David Teboul, 2022

 

Estreou-se ontem em França este documentário, que passou no DocLisboa há dois anos e produto de um conceito singular: em 2007, depois de uma relação amorosa, que durara dez anos, Teboul soube da morte por overdose dessa pessoa de quem recentemente se separara. E questionara-se desde então quanto à forma de fazer o luto de uma história afetiva que, mesmo saldada num fracasso, deixara uma memória inesquecível associada à culpa por quanto poderia ter feito para evitar o trágico desenlace?

Durante quase três horas surgem-nos os testemunhos confessionais de aldeões siberianos de todas as gerações, que evocam a sua ideia quanto ao significado do amor e como o vivem ou viveram quando se enamoraram. E de quanto sofreram, quando voltaram a ficar sós.

Nessa paisagem gelada onde todos conhecem bem demais o frio, o álcool, a frustração do que se ambicionou e nunca se alcançou, todos têm a sua versão do amor e de como o exprimiram empenhadamente.

À France Culture Teboul explica o que quis fazer e o quão difícil continua a ser a aceitação do que disso resultou:

“Em lugares distintos, todos vivemos uma história de amor. E eu queria ir muito longe para conhecer essas pessoas, para me reconstruir através delas. Era uma forma de evitar o "eu" narcísico da autoficção e ir em direção ao "eu". Para isso, senti a necessidade de filmar pessoas que nunca são questionadas sobre a questão do amor. Não desapareço por trás dessas pessoas, mas testo a narrativa desconstruída dessa história. Na verdade, as personagens permitem-me reconstruir essa história, porque, para mim, é mais fácil falarmos de nós falando dos outros.(...)

O que foi muito difícil foi abordar o meu próprio amor. Como fazê-lo quando o outro deixou de existir? Agora o filme estreia-se nas salas e sinto a estranheza de falar do presente de um passado. Sinto-me em falta, porque não consigo exprimir o que sinto, só consigo fazer os outros falarem, por isso faço filmes sobre outras vidas que não a minha.” 

terça-feira, junho 14, 2022

Fanny e Alexandre, Ingmar Bergman, 1982

 

Das muitas hipóteses de efemérides a comemorar durante o corrente ano o do 40º aniversário da estreia deste filme de Bergman faz todo o sentido. Porque as referências autobiográficas nele inseridas, muito ajudam a explicar o conjunto da sua obra, seja na versão longa com cinco horas de duração, seja na mais curta, que não perde a coerência por se ver privada de algumas das cenas da que lhe serve de alternativa. Em ambas temos a expressão do ambiente e dos valores, que nortearam a construção da personalidade do jovem Ingmar nos anos em que viveu em Upsala, ao mesmo tempo que serve de ajuste de contas contra uma matriz religiosa cerceadora do espírito de liberdade, que sempre almejou como direito inalienável.

Se o filme começa no ambiente festivo de um Natal, que dá da família das duas crianças uma aparência ideal, depressa se compreendem as mentiras, que descobrem por acaso e as prepara para a fase seguinte quando o pai lhes morre em cena - era ator numa representação de Hamlet - e veem-se sujeitas a um padrasto, que personifica o Mal absoluto embora na aparência de clérigo religioso. Porque se esse mal, relativamente bonançoso que haviam antes descoberto, acobertava-se na clandestinidade do que se escondia por trás das portas fechadas, o que vêm a enfrentar na casa do padrasto será vivido sem quaisquer disfarces.

Se Saramago precisasse de apresentar um exemplo lapidar da sua justificada desconfiança quanto à bondade de qualquer das religiões monoteístas, o deste filme cumprir-lhe-ia o objetivo na perfeição. Porque, na rigidez dos dogmas e na forma como se julga no direito de castigar quem a eles se não submete, o Bispo Vergérus, corresponde à máxima expressão do que é um refinado patife.

Que o filme entre na terceira parte a levar-nos a assumir a empatia com os esforços da família Ekdahl para libertar a jovem esposa do bispo e os seus enteados das grilhetas em que ele os enclausurou só o enquadra como defensor da tese em como o virar costas a um qualquer deus é a condição maior para alguém se sentir livre. 

segunda-feira, junho 13, 2022

Varda por Agnés, Agnés Varda, 2018

 

Admirável Agnés! E o nosso infinito agradecimento por tão jubilatórios momentos proporcionados pelos filmes, que rodou ao longo de mais de seis décadas.

Dirão os mais cínicos que este seu último filme pouco adianta em relação às Praias, rodadas dez anos antes, quando se vira octogenária e entendera justificável a apresentação do testamento cinematográfico. Mas, se quis repetir o esforço, agora como nonagenária, o resultado não deixa de ser delicioso porque, embora sabendo-se na iminência da despedida, só uma vez a confessa por serem as dores constantes, deixando o reconhecimento do iminente desfecho - ocorrido no mês seguinte ao da estreia do filme na edição de 2019 do Festival de Berlim - para a cena final na forma de despedida numa das suas bem amadas praias e a imagem a escurecer até a tornar invisível, já não se seguindo depois o genérico porque, precavera-se a apresenta-lo no princípio.

Em relação ao testamento anterior há novidades a captar, mesmo pelos mais especializados dos vardianos! Por exemplo a estrutura de construção do seu Sem Eira Nem Beira  em treze travellings  e como eles se interligavam. Ou a maior importância conferida à condição de artista visual com instalações de notável criatividade apresentadas em museus e festivais artísticos de vários continentes, mormente os que dedicou às viúvas da ilha de Noirmentier ou às batatas em forma de coração.

Nas duas horas de revisão da matéria dada passamos por todas as fases por que passou a sua criatividade, dando particular importância às que resultaram da militância feminista, mas também social, não omitindo os fracassos comerciais, que se escusa a justificar ou a comentar. Mesmo quando, no mais aparatoso de todos eles, conseguiu juntar Catherine Deneuve e Robert de Niro numa mesma cena a bordo de um barco.

A evidência maior do longo percurso criativo foi a de sempre se mostrar atenta ao que ia acontecendo de novo, quer em termos de tecnologia - o surgimento das pequenas câmaras digitais, que lhe permitiram a rodagem dos Respigadores - quer na própria linguagem artística em geral. E daí o exultante encontro com J.R.

segunda-feira, junho 06, 2022

Vivian Maier no Alpes

 

Quem tirou esta fotografia a Vivian Maier com os Alpes por fundo onde regressara, aos 24 anos, para receber uma oportuna herança de família? Alguém com quem se cruzou nos seus passeios solitários ou uma secreta amizade, que desmentisse a costela misantropa a ela associada?

Tanto quanto dá para perceber terá encetado por essa altura a secreta atividade de fotógrafa, primeiro de convencionais instantâneos familiares, depois com intenção documental, que a tornaria numa das mais importantes testemunhas das idiossincrasias da burguesia de Nova Iorque e de Chicago na segunda metade do século XX. Mesmo que só depois da sua morte, em 2009, viesse a ser revelada esse intenso labor.

Em Saint-Julien en Champsaur, pequena aldeia do sudeste francês, entre as montanhas e convivendo com os camponeses locais, Vivian quis reter as imagens felizes da infância, quando aí vivera com a mãe, fugida da turbulenta vida conjugal para procurar abrigo junto de familiares no outro lado do Atlântico. Com a Rolleiflex a jovem norte-americana captou quem cumpria os afazeres agrícolas desde o miúdo, que levava as vacas a pastar até ao velho, que sorria para a fotógrafa escondido pela pala do chapéu e pelo bigode farfalhudo.