quinta-feira, novembro 30, 2017

(S) Valéry Gergiev a dirigir «Romeu e Julieta» de Prokofiev

(DIM) Reelogiando Twin Peaks

Agora que chego ao episódio 16, e as coisas começam a clarificar-se, prossigo o elogio enfático à terceira temporada de «Twin Peaks», rodada no ano transato, e que confirma David Lynch como um grande experimentador narrativo criando mistérios na fronteira porosa entre o mundo e o seu duplo sobrenatural. Mesmo quem é profundamente materialista e descrê dessas realidades alteradas deixa-se embalar pela lógica de preferir a lenda à verdade, se ela se revelar mais atrativa enquanto espetáculo. Até porque a revisão dos rostos de há vinte cinco anos, com os efeitos entretanto provocados por tal distância temporal, só nos pode estimular à nostalgia: nós próprios envelhecemos como esses atores e atrizes, que ali surgem com cabelos brancos, adiposidades e rugas, que lhes desconhecíamos quando, mal saídos da adolescência, tinham protagonizado as temporadas anteriores.
Entrando resolutamente na história descobrimos um número infinito de pesadelos prestes a invadir o mundo dos vivos, gerando muitas questões sem resposta.
O universo de Twin Peaks que, inicialmente, tanto se assemelhara ao de aldeias remotas, que conhecemos na juventude, perdeu essa familiaridade e tornou-se tão singular como essa sequência dos primeiros episódios da temporada de 2016 em que um jovem ganha uns patacos a olhar para um cubo de vidro, donde o avisaram provir algo de estranho. De tal forma, que virá dali a morte dele e da namorada…
Depressa começamos a intuir que o passado e o presente tendem a confrontar-se segundo uma de duas lógicas possíveis: num casos substituem-se, noutros reunificam-se. Mas o presente é também uma noção algo problemática: passado um quarto de século a telefonista Lucy do gabinete do xerife continua presa à lógica dos telefones fixos tardando a perceber o significado dos seus modelos móveis. Essa mesma candura surge também em Dougie Jones, a versão solar de Dale Cooper, que qual recém-nascido tem de aprender tudo desde princípio nessa vida para a qual foi lançado sem rede de proteção. Não admira que, para se integrar, passe sucessivos episódios a repetir as palavras ouvidas aos interlocutores, que nessas repetições encontram tanto sentido quanto outrora um outro desadaptado, Mr. Chance, que se via propulsionado a presidente dos EUA.
Há também a cinefilia óbvia de ver num desses primeiros episódios uma réplica de Marlon Brando em pose de «motard»  na personagem do filho dessa citada Lucy e do não menos cândido Andy em cena destinada tão-só a dar essa piscadela de olho a um público mais cinéfilo. No entanto se há algo que ganhe lógicas metonímicas encontramo-las no facto de David Lynch ser o diretor do FBI, que anda à procura de Dale Cooper vinte cinco anos depois, tal qual ele mesmo, enquanto realizador voltou a demandar este universo de que o julgáramos definitivamente apartado.

(S) Hoje à noite há Rebecca Martin na Casa da Música

quarta-feira, novembro 29, 2017

(DL) A história de um europeu

Em 22 de fevereiro de 1942, depois de ter redigido cartas de despedida aos amigos e às autoridades de Petrópolis - a cidade brasileira onde tinham encontrado asilo político -, Stefan Zweig e a esposa, Lotte, suicidaram-se com uma dose excessiva de barbitúricos. Apesar de todas as atenções estarem concentradas nos desenvolvimentos da Segunda Guerra Mundial, o suicídio do escritor suscitou uma enorme emoção nas tertúlias intelectuais, quer das nações aliadas, quer nas que sobreviviam clandestinamente sob o jugo dos ocupantes nazis.
O Brasil promoveu uma grande homenagem aos defuntos a pretexto do funeral, convertido numa vibrante cerimónia oficial.
A questão então mais frequente era a de se tentar compreender como é que um romancista tão famoso, cujos livros tinham merecido tanto sucesso junto de milhares de leitores em todo o mundo, cedera a tão irreversível apelo pelo vazio?
Sabe-se hoje que, ao contrário de muitos compatriotas, Zweig não vira com maus olhos o advento do nazismo, que prometia trazer «ordem e progresso» a países devastados pelas lutas sociais. Não é, pois, inteiramente crível a imagem convencional de Zweig ter tido sempre um comportamento exemplar na busca pela liberdade, mesmo se a crença na possibilidade de ser alcançada uma sociedade mais perfeita graças aos contributos da psicanálise e dos progressos técnicos, o aproximassem das ideias mais progressistas, as que pretendiam uma Europa mais desenvolvida e cosmopolita. Em vez de tomar partido contra o nazismo, como muitos dos seus devotados leitores teriam desejado, Zweig deixou-se distrair com a arqueologia das paixões amorosas, que integravam os temas dos seus livros.
Quando despertou para o ostracismo a que estava sujeito na própria terra natal, com piras de livros seus a alimentarem gigantescas fogueiras, Zweig sentiu-se incapaz de conter o medo que o passou a consumir intimamente. Até ao desenlace fatal já em espaço onde todos os julgariam a salvo das contingências de então. 

(DIM) Um filme mudo de László Moholy Nagy sobre como era Marselha em 1929

(DIM) «O Piano» de Jane Campion

Há duas dúzias de anos, os nossos olhos e ouvidos de cinéfilos encantaram-se com um filme de Jane Campion, que nos pareceu bem melhor do que, passados tantos anos, o recordamos.
Em «O Piano» recuávamos até ao século XIX, quando Ada e a filha, Flora, desembarcavam numa praia neozelandesa para que se consumasse o casamento por procuração entre ela e um rico fazendeiro, Stewart.
Muda não se sabe desde quando, Ada virá a ter no estranho vizinho, George Baines, o prestimoso voluntário para que o piano que a acompanhara, entretanto deixado ao abandono na praia, lhe chegasse a casa. Mas sentindo a paixão com que ela interpreta tão bela música, ele transfere o instrumento para a sua própria casa, desafiando Ada a ensinar-lhe como deve tocá-lo. Inicia-se assim uma chantagem erótica, que acaba por se revelar bem mais consensual do que os bons costumes da época recomendariam…
O piano acaba por ser a voz e o corpo de Ada na sua revolta perante o asfixiante microcosmos puritano em que se veio integrar. A música e o correspondente despertar da sensualidade resgatá-la-ão do mutismo, sendo antológica a cena em que Baines lhe explora a pele poro a poro como se se tratasse de um delicado teclado de piano.
A amputação do dedo de Ada pelo vingativo Stewart, destrói-lhe a vontade de viver, como se de uma castração se tratasse. Nessa altura já o espectador está rendido à ambiência proposta pela realizadora, que conseguia aliciar o grande público para uma história empática, suscitadora de irreprimíveis emoções.

terça-feira, novembro 28, 2017

(AV) Susan Meiselas na primeira linha

Ela é fotógrafa, membro da agência Magnum, e tornou-se conhecida com as imagens  coloridas da América Central nos anos 70 e 80, sobretudo na Nicarágua. No início do ano Susan Meiselas terá uma retrospetiva de referência na Jeu de Paume, em Paris, e acaba de publicar um álbum, que irá servir de aperitivo de material de apoio para tal exposição.
Instada a escolher a fotografia mais significativa nos quarenta anos de profissão ela escolhe a do Molotov Man, tirada precisamente na Nicarágua, no último dia da insurreição, e que se tornaria icónica  de tal revolução.
Sem qualquer prévia formação nas artes  visuais, Susan Meiselas responsabiliza os muitos filmes, que viu, como estando na origem da sua vocação. Até porque, nesses longínquos anos sessenta, quando estava na universidade, ainda não existiam disponíveis cadeiras ou cursos sobre esta área artística. Em compensação alimentava-a uma enorme curiosidade por tudo quanto se passava à volta e ansiava entender. À distância considera ter sido uma benesse essa ausência de saber académico, por ter sido obrigada a tudo aprender no terreno, quando já estava perante a tal realidade, que pretendia escalpelizar.
Na fotografia também lhe interessa descobrir o percurso, que faz cada imagem desde o momento em que a capta até à sua publicação e à capacidade para que perdure muito mais duradouramente servindo objetivos, que lhe vão escapando.
Normalmente sabe que tipo de fotografia lhe interessa obter, que enquadramento escolher para nela dar expressão a várias leituras e planos, possibilitando que o olhar nela se passeie para se fixar em vários focos de interesse para além do principal. Trata-se de, em cada uma delas, conseguir o melhor compromisso entre a vertente estética e o conteúdo. Sem esquecer que ela própria está em causa, porque cada imagem revela muito da relação do fotógrafo com o seu tema. A própria cultura da Magnum, com que plenamente se identifica, é a de não se sentir fotojornalista, mas assumidamente uma autora no que isso significa de especificidade na sua identidade artística.
A exemplo de Raymond Depardon, Meiselas considera que tão importante, quanto aquilo que a imagem mostra, é também o que sugere, o que deixa implícito, o que revela nessa ausência do que representa mas o espectador conclui. O tema deve sair do próprio enquadramento em que a imagem se mostra. Porque esse enquadramento tende a limitar a autenticidade, esse momento de verdade captado num efémero instante.
Antes de passar uma década a fotografar as relações de poder na América Central, também se dedicou a abordá-los na ótica entre homem e mulher nos EUA até por então se sentir sugestionada pelas reivindicações do Women’s Lib. Tendo escolhido os temas a que se dedicou, também de alguma forma se viu por eles escolhida, por ter estado no momento certo, no lugar certo para os  captar. Embora trabalhando em sítios onde imperava a violência ela quis captar imagens, que demonstrassem como a vida prosseguia o seu curso dentro desse contexto peculiar e é isso que se constata em muitas páginas do álbum agora publicado.
Nesse livro o leitor encontra-a a expressar-se na primeira pessoa do singular, revelando o processo criativo em todas as séries de fotografias, que criou: das strippers das festas populares da Nova Inglaterra ás zonas de guerra em El salvador ou no Curdistão, passando pela insurreição sandinista na Nicarágua.  Muitas dessas imagens atingiram um público muito alargado, mas outras quase são inéditas, revelando todo o seu percurso.
Susan Meiselas contesta a atitude de muitos colegas, que se consideram no direito de tudo fotografar sem qualquer consentimento explicito ou implícito de quem fica no seu enquadramento. Ela vê a fotografia como uma espécie de colaboração entre quem fotografa e quem é fotografado. Por isso quer que este esteja consciente da sua presença e da possibilidade de se fazer captar pela câmara. Esta tanto pode ser a Leica, como o iphone. A primeira vez que utilizou este meio mais comum na atualidade foi num salão de cabeleireiro em África onde várias mulheres cuidavam dos sublimes penteados enquanto consultavam os telemóveis. Por uma questão de conseguir uma maior autenticidade decidiu-se pela câmara que melhor se assemelhava a tal gadget. Infelizmente uma das melhores fotografias assim colhidas foi rejeitada por quem captara e não gostou de assim se ver retratada. A bem da sua ética viu-se no dever de a apagar. 

segunda-feira, novembro 27, 2017

(S) João Paulo Esteves da Silva, Mário Franco e Samuel Rohrer

(DIM) Que estimulante Quadrado se estreou agora em Lisboa!

A primeira vez que vi um filme de Ruben Östlund fiquei rendido a uma história onde estavam em causa dilemas morais: perante a ameaça de uma avalancha, que ameaçava soterrar o hotel onde a família passa férias, um pai abandonava a mulher e os filhos para cuidar da própria pele, sendo depois confrontado com a impossibilidade de justificar tal cobardia. Necessariamente o espectador era confrontado com a questão: que faria se estivesse no papel desse pai em tal circunstância? Mostraria desapego á própria vida para acautelar primeiro a dos filhos e da mulher ou imitar-lhe-ia o egoísmo? E, se a identificação fosse com a mulher: perdoaria ou não esse ato sem remissão?
Em «O Quadrado», filme que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e está agora em exibição no Ideal Paraíso, o espectador volta a ser confrontado com dilemas, que não são fáceis: como comportarmo-nos perante os insistentes mendigosa incomodaram-nos na pretendida serenidade com que nos movimentamos nos espaços, até então sentidos como nossos, mas agora tomados de assalto por gente desconhecida?
A questão é tanto mais pertinente quanto, com o afluxo de muitos milhares de refugiados, a esquerda europeia viu-se confrontada entre a necessidade de lançar campanhas humanistas, e, ao mesmo tempo, perder influência eleitoral em detrimento dos partidos xenófobos, os que efetivamente beneficiaram com esse fenómeno migratório. Entre a ética e a realidade que a nega, por haver uma maioria de eleitores descontentes dispostos a votarem contra tanta gentrificação, que opção resta aos mais bem intencionados?
Christian, o curador de um dos principais museus de arte contemporânea de Estocolmo vai conhecer um destino semelhante ao do pai cobarde de «Força Maior»: espoliado do telemóvel e da carteira por um golpe bem elaborado pelos seus autores não imagina como todo o seu quotidiano se virará do avesso, quando procura reaver os bens roubados e acaba por sofrer as consequências da estratégia para os conseguir. Mais roda mandada do que roda mandante de uma engrenagem cujos contornos verdadeiramente desconhece, ele acumulará erros sucessivos na gestão da sua instituição e acabará despedido. Não sem antes se tornar responsável por um hediondo vídeo onde se vê uma criancinha loira ficar em estilhaços ou em participar numa performance manifestamente incómoda para os mecenas do museu, ameaçados por uma artista apostado em revelar o lado mais selvagem da natureza animal.
Tais episódios complementam outras questões não menos relevantes: até que ponto é lícito censurar uma qualquer expressão artística? Ao limitar-lhe as coordenadas aceitáveis não estamos a abrir campo para a autocensura? E o que é a arte, hoje em dia? O efémero pode ter tanta importância como o suporte físico que dela sempre nos habituámos a apreciar?
Filme inteligente, não admira que venha assinado por um cineasta que se confessa abertamente marxista e materialista. A proposta preenche cabalmente essa mundividência: apresenta um sem número de contradições e desafia-nos a sobre elas tomarmos posição. 

(S) Benjamin Grosvenor a interpretar Chopin, Mompou, Medtner, Ravel, Gounod e Liszt

domingo, novembro 26, 2017

(DIM) Ando rendido à superlatividade da versão de 2017 de «Twin Peaks»

Coisa gigantesca, brilhante, explosiva, enorme, incomensurável - eis alguns dos epítetos, que a crítica internacional está a dedicar à versão de 2017 de «Twin Peaks» sobre a qual só me atrevo a escrever, quando já vi doze dos dezoito episódios. Porque, horas a fio, tenho estado desconcertado, que é uma das melhores reações a ter enquanto espectador de um qualquer objeto artístico usufruído.
Há também quem diga que, na sua monumentalidade, David Lynch terá decidido criar uma proposta testamentária, e se havia quem o já dava como artisticamente esgotado, a sua resposta, sob a  forma desta série, é tão entusiasmante como a que, décadas atrás, sucedera com Léo Ferré a quem a crítica musical ousara dizer o mesmo e ele, em poucos meses, cuidou de a desmentir com um memorável triplo-álbum.
Audácia é característica que Lynch cola a cada um dos episódios onde não faltam motivos de surpresa. Há cenas longas em que os personagens parecem expectantes a aguardarem que os interlocutores lhes respondam ao que indagaram, ou comentem algo que os preocupa, e o realizador deixa o tempo fluir, com eles estáticos, o silencio a interpor-se-lhes até, finalmente, vir uma reação excêntrica na sua banalidade.
Há igualmente a excitação de ali ver sucederem-se tantos atores e atrizes, que credibilizam os seus pequenos papéis com toda a arte do seu conhecido talento: Harry Dean Stanton, Naomi Watts, Tim Roth, Miguel Ferrer, Ashley Judd, James Belushi, Laura Dern, entre muitos outros, que quase parecem ter encabeçado uma longa fila de gente conhecida e disposta a participar nesta que será, doravante, uma obra de arte, perdurável muito para além da sua efémera presença no pequeno ecrã.
Reencontramos igualmente muitas das estranhas personagens de vinte cinco anos atrás como a singular  e visionária senhora do tronco, que se intercalam com outras não menos singulares como essas donzelas de cor-de-rosa com um comportamento próximo do dos robôs.
Temos, pois, o fio da narrativa a ser continuamente sabotado pelo estilhaçamento de todos os limites que se quisessem colocar à imaginação. Trata-se de uma viagem através dos sonhos e dos pesadelos, que tem particular expressão no já aclamado episódio 8: mais do que um objeto televisivo é em si mesmo uma notável peça de videoarte.
Conclua-se esta primeira abordagem com um enorme elogio ao desempenho de Kyle MacLachlan, ora dividido na faceta de apático manga-de-alpaca, ora na de crapuloso delinquente, e a excelente banda sonora, mormente nos temas que acompanham o genérico final de cada episódio.

(S) «Lark» das Au Revoir Simone a concluir um episódio de «Twin Peaks»

(DIM) «Um Dia Frio» de Cláudia Varejão

Em 2009 Cláudia Varejão começava a consolidar o seu percurso no cinema nacional onde se tornaria depois um dos seus nomes de referência. Nesta curta-metragem, realizada no âmbito de um curso organizado pela Fundação Gulbenkian em colaboração com uma prestigiada instituição alemã, temos por tema a incomunicabilidade entre os quatro membros de uma família convencional, que vivem os seus pequenos segredos sem os partilharem com os demais.
Há o medo da doença terrível na mulher, que se vai sujeitar a uma mamografia, a angústia da demência da mãe no marido, que a visita depois de um dia numa casa das máquinas, a cumplicidade sáfica da filha com ima amiga e as onanísticas descobertas do filho mais novo.
A música é de Bernardo Sassetti e muito contribui para a ambiência de um filme, que dá a família como espaço onde cada um nunca deixa de estar só.

(DL) Um escritor corajoso e sempre disposto a lutar pelo que acreditava

Publicado em 2014, o livro de crónicas «Tempo de Combate» é o derradeiro de Baptista Bastos, um dos escritores mais influentes do nosso século XX português. Na altura do seu aparecimento ele não poderia revelar-se mais oportuno ou não estivéssemos a viver o tempo sombrio do governo da troika, que a todos pretendia conformar com o empobrecimento e a aceitação de um agravamento obsceno das diferenças de rendimentos entre os cada vez mais ricos e os que sofriam cortes nas pensões, nos salários e nos direitos fundamentais, não lhes sendo sequer facultada a esperança num qualquer amanhã. Eram os idosos abandonados à sua má sorte e os jovens empurrados para o êxodo onde pudessem ter qualquer hipótese de se empregarem.
Baptista Bastos reiterava o carácter sagrado do 25 de abril e de tudo quanto ele representara e continuava a irradiar como contraponto a esse tenebroso viver.  Porque, apesar de tudo, o desalento não era maior do que o por ele vivido nos tempos do fascismo, época em que, mesmo nos piores tempos de escuridão, nunca faltara quem resistisse, quem dissesse não. Daí que recordasse o grande jornalismo, que se praticara contra a censura, e sem qualquer semelhança com a degenerescência em que caiu nos anos de Democracia, sobretudo nos que temos presenciado mais recentemente. Fora o tempo em que pudera aprender com grandes mestres, que tanto comandavam as linhas editoriais dos jornais - um Aquilino, um Raul Brandão - como depois assumiam um outro registo, superlativamente literário, nos romances e ensaios, que publicavam.
Bastos nunca deixou de prestar reverência aos companheiros inesquecíveis com que alimentou mil tertúlias: Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado e tantos outros com que partilhava indignações e utópicos augúrios. A relatividade das certezas aparentes depressa a adquiriu, constatando a rapidez com que elas se transformavam em dúvidas de sinal contrário. Um bom exemplo de que se lembra é o de, poucas semanas antes de se ver apeado do poder, Marcelo Caetano ter sido recebido com calorosas saudações pelo repleto Estádio de Alvalade em dia de importante jogo de futebol. Quantos desses que, então, lhe bateram palmas, afiançariam um mês depois sempre terem sido convictos oposicionistas ao regime?
Bastos recorda, igualmente, as dificuldades que passou desde criança e tão importantes para lhe criarem a consciência política e social doravante parte integrante da sua forma de ser e de estar. Data de então a total repulsa pelos mentirosos e pelos cobardes, o que condiz com a lenda de frequentemente ter defendido a punhos e pontapés as injúrias de que se via alvo. 
Escritor a que vale a pena sempre voltar, ele sempre se assumiu tão contraditório que, ateu convicto, deixou Bíblias sublinhadas e comentadas, porque a elas voltava amiúde por lhes reconhecer a qualidade de se constituírem em verdadeiros tratados da consciência. 

sábado, novembro 25, 2017

(S) As Gymnopédies de Satie na versão de Pascal Rogé

(DIM) «A Mosca», um grande clássico do cinema de terror

Foi por David Cronenberg, e com Jeff Goldblum no papel principal, que cheguei pela primeira vez à história do homem-mosca, transformado num monstro devido a uma acidente no laboratório. Desconhecia então este filme de culto dos anos 50, produzido e dirigido por Kurt Neumann, que tem o enorme Vincent Price a protagoniza-lo.
Numa época em que aumentam os cultores dessa coisa aberrante chamada trans-humanismo este filme pode servir de estímulo para se discutirem questões como a definição do que é ou não humano ou como impedir que experiências científicas saem do controle dos seus investigadores e se convertam em algo assaz diferente do que se considerava previsível obter.
(O filme passa hoje à noite na Cinemateca.)



sexta-feira, novembro 24, 2017

(AV) Quando Léger descobriu o que quereria vir a ser

Fernand Lèger chegou à Córsega em 1906, quando tinha 25 anos e uma tuberculose por curar. Os invernos na Normandia eram demasiado húmidos e frios para a fragilidade dos seus pulmões, e os médicos vaticinavam-lhe estadias em climas mais amenos. Nada mais natural, pois, do que fazer estadias de alguns meses na ilha mediterrânica.
Integrando-se no quotidiano da aldeia onde se alojou, tudo lhe interessou para reproduzir nas telas onde se ia distraindo sem ter a certeza de querer vir a ser pintor. Se é que a saúde lhe permitiria vir a ser alguma coisa…
Provavelmente não adivinhava que as espaçadas temporadas seriam de crucial definição para o que virá a ser o seu futuro: o de constituir-se como um dos máximos expoentes do movimento cubista. A paisagem da Ilha de Rousse irá fascina-lo quer pelas cores das rochas, quer pelos efeitos de luz nelas produzidos. É ali que opera aprofundada reflexão sobre tudo quanto trazia de Paris enquanto memória do que ali via ou ouvia.
Se no início o olhar ainda era marcado pela estética impressionista de que vinha imbuído - evidencia-o quadro de 1907 em que representa rapazes a banharem-se na praia - sentia desconforto por ainda se ver identificado com quanto ia reproduzindo nas telas.
Dois anos depois quando, curado, regressa a Paris, Léger já vai convicto quanto ao que doravante fará: os quadros de Picasso e de Braque tinham-no fascinado e estimulado para seguir-lhes as pisadas e encontrar o seu estilo. Vivendo-se, então, uma pujante confrontação entre as vanguardas e as abordagens canónicas da representação artística, Léger começa por saber o que não quer. Por isso mesmo queima ou destrói quase todos os quadros anteriores - salvar-se-ão os que já constam de coleções particulares - e decide começar tudo de novo.
Nas quatro décadas seguintes ele confirmar-se-á como um dos principais vultos artísticos da primeira metade do século XX.



quinta-feira, novembro 23, 2017

(DIM) A importância de voltar à obra de Clouzot sem reservas mentais

Na Cinemateca de Paris está a decorrer uma retrospetiva da obra de Henri Georges Clouzot, complementada com uma exposição que se prolongará até julho de 2018.  Trata-se de uma oportunidade ímpar para recuperar um autor, que a geração dos «Cahiers» odiava, considerando-o paradigma do cinema clássico sem capacidade para sair dos padrões académicos. Mas a exposição desmente essa ilação, porque constata-se a sua sempiterna vontade de inovar, de procurar soluções estéticas diferentes, sobretudo quando se dedicou á fotografia.
Outras razões subsistiram para que fosse odiado, quase comparado a Hitchcock na forma como destratava atores e atrizes. Uma bofetada inesperada na face de uma pouco convincente intérprete levava-a a exceder-se, a vestir a personagem tal qual ele pretendia.
Perfecionista, buscava a forma ideal, aquela que o aproximasse da verdade absoluta, fosse lá o que isso para ele representava.  Ademais, pessimista angustiado e fetichista, teve grande prazer em satirizar a França do pós-guerra, sem deixar de manter vivo o permanente fascínio pelas facetas mais sombrias da alma humana.
Além de «Quai des Orfévres» ou «Le Salaire de la Peur», recordo-lhe sobretudo os excelentes documentários, que fez com Picasso («Le Mystère Picasso») ou com Karajan.
Razões mais do que bastantes para lhe revisitarmos a obra sem os filtros depreciativos dos que o queriam menosprezar para melhor imporem os princípios da «nouvelle vague». 

(S) Celebrando a memória de Dmitri Hvorostovsky

O mundo da música lírica ficou ontem enlutado com a morte de Dmitri Hvorostovsky, que não resistiu ao cancro cerebral, de que se sabia acometido desde junho de 2015. Fizera 55 anos no mês passado e era tido como barítono de voz polida, dotado de um incrível controle de respiração e grande expressividade dramática.
Nascera em 1962 na cidade siberiana de Krasnoiarsk, filho único de um engenheiro e de uma ginecologista, demasiado ocupados para cuidarem-lhe da educação, que ficou entregue a uma das avós e ao bisavô, que se vangloriava de ser herói de guerra, mas que ele sempre consideraria inútil, arrogante e permanentemente bêbedo. Talvez tenha havido algo de hereditário para ele próprio ter dado cabo do primeiro casamento por causa da sua própria crise alcoólica, que o levou a cortar definitivamente com tal dependência em janeiro de 2001.
O desapego dos pais, que só via aos fins-de-semana, explica também a atração sentida pelo gangues de delinquentes, que imperavam na sua cidade, quando tinha 14 anos, aparecendo umas quantas vezes com o nariz partido devido às brigas em que se metia.
Em desespero de causa, o pai, grande melómano, vai matriculá-lo no Conservatório da cidade, confiando-o à educação da grande mestra Ekaterina Yoffel, que será a grande responsável pela forma como soube potenciar-lhe o talento.
Em 1986, quando concluiu os estudos a União Soviética entrara na fase da perestroika e as viagens ao estrangeiro estavam facilitadas. O jovem Dmitri concorre e ganha o Concours International de Chant em França, chamando a atenção para os críticos sempre atentos aos jovens com características para se virem a afirmar nos palcos internacionais dos teatros de ópera.
Hvorostovsky começa por sobressair nos papéis de Valentin no «Fausto» de Gounod, no Belcore do «Elixir do Amor» de Donizetti e no papel principal do «Don Giovanni» de Mozart. Mas ganhará fama de insuperável no desempenho de «Eugene Onegin» de Tchaikovsky.
Vendo-se-lhe os cabelos embranquecer totalmente nos trintas, especializa-se então em papéis verdianos, comparecendo amiúde no Metropolitan de Nova Iorque, onde atuará por cento e oitenta vezes em treze papéis diferentes desde 1995.
Já em tratamento as últimas atuações foram em Nova Iorque, contracenando com Anna Netrebko no «Il Trovatore»  no Met ainda em 2015 e aparecendo em maio deste ano, já inseguro nas pernas a cantar a ária «Cortigiano, vil razza dannata» do «Rigoletto» na gala  do 50º aniversário do Lincoln Center. De permeio ainda ganhara coragem para, em fevereiro de 2016, dar um recital no Carnegie Hall, entoando músicas russas, ele que ultimamente voltara a sentir um forte apelo das origens.
 

(DIM) Esta noite no Cineclube Gandaia iremos escalpelizar «Paranoid Park» de Gus Van Sant

Em 2006 o realizador Gus Van Sant estava num impasse quanto ao que faria a seguir, depois de concluída a trilogia sobre a morte, que incluíra como títulos o «Gerry» de 2002, o «Elephant» de 2003 e o «Last Days» de 2005.
Entusiasmou-se, então, por um livro de Blake Nelson intitulado «Paranoid Park» e que tinha como cenário a cidade de Portland, no Oregon, um daqueles locais raramente objeto da atenção dos cinéfilos e onde poderia explorar personagens incomuns. O tema do romance ajustava-se à intenção de abordar a forma como a aprendizagem da vida poderia ser feita tão abruptamente, através de uma espécie de remake do «Crime e Castigo» de Dostoievski transferido para um ambiente contemporâneo. Tal como na obra maior do autor russo temos um anti-herói mergulhado num abismo metafísico. Com a diferença de aqui ter-se tratado da morte acidental de um segurança, brutalmente cortado em dois por um comboio, quando o protagonista tentava dele escapar.
Um dos aspetos que fascinam no filme é Gus Van Sant ter-se dissociado da estrutura linear da narrativa optando por baralhar e dar voltas no tempo. Logo de início há algo de premonitório na frase anotada por Alex no seu diário quanto a ninguém estar preparado para a experiência do Paranoid Park. O nome verdadeiro de tal espaço é Burnside Skate Park e foi construído e mantido por miúdos, ainda sendo um dos maiores e míticos recintos da modalidade a nível mundial.
Porque pretendia jovens atores, que ninguém conhecesse, e fossem hábeis praticantes de tal desporto, Gus Van Sant procurou recrutá-los nas redes sociais, tendo feito quase três mil audições para conseguir preencher os papéis congeminados no argumento, que levara apenas dois dias a criar.
Temos assim Alex, o Raskolnikov de serviço, a contas com a desagregação da família (os pais em processo de divórcio) e mais interessado nas sessões de skate do que nas tardes de sexo com a namorada. Há Jared, o colega de turma, que o levara pela primeira vez ao Paranoid Park, mas não o acompanhara na obsessão por ali vivenciar todo o tempo disponível. Há Scratch, o homem mais velho, que o convidara para divertirem-se à pendura nos comboios ali ao lado e, na prática, o aliciador para o drama, que se seguiria. E há o detetive Lu com a sua paciência asiática para conseguir a revelação do sucedido, esclarecendo que o aparente acidente comportava uma realidade complexa e enquadrável na classificação de homicídio. Se o Paranoid Park começara por representar a possibilidade de transgressão, acabaria por se converter em cenário de crime com a respetiva investigação policial mediatizada. E, como sucede habitualmente nos filmes de Van Sant a amizade serve de contrapeso à solidão e à desorientação suscitada pela dissolução dos laços familiares.
Existem poucos diálogos, mas atenção ao notável trabalho sonoro, que confere ao filme a ambiência pesada. O trabalho de fotografia, dirigido por Christopher Doyle é merecedor de particular atenção: além do recurso frequente da câmara ao ombro, não faltam os longos travellings típicos da filmografia gusvansantiana, distinguindo-se as cenas rodadas em 35 mm das que se optou pelo Super 8 (quase todas em que existem exibições dos skaters).
A música desempenha, igualmente, um papel determinante, podendo os apreciadores de Fellini encontrar aqui as sonoridades compostas por Nino Rota para «Amarcord» e «Julieta dos Espíritos».
Como balanço podemos questionarmo-nos sobre que sentido nos leva a integrar este filme num ciclo sobre o Sonho Americano e a facilidade com que ele se transforma num pesadelo. Mas parece-nos óbvia essa quase inevitável queda no abismo suscitada por circunstâncias, que prometiam compensações, mas afinal se convertem em angustiantes e insolúveis labirintos.
Pessoalmente este é o meu filme preferido neste ciclo, que corrobora afinal o motivo porque o prestigiado «Cahiers du Cinema» o tenha enaltecido como o melhor de quantos foram estreados em França em 2007.