terça-feira, fevereiro 28, 2023

As cambalhotas ideológicas de sentido contrário

 

Um documentário sobre Tarsila do Amaral mostra como a conceituada artista brasileira - porventura a mais importante do período modernista - evoluiu ideologicamente da família esclavagista em que nasceu, e lhe proporcionou educação esmerada na Europa, para o comunismo, com que passou a simpatizar a partir de 1931.

Alguém capaz de se libertar da sua condição de classe privilegiada para se colocar artisticamente ao serviço dos explorados, merece naturalmente o meu respeito. Ao contrário de um nerd, que por aí pontifica a irritar-nos com a sua voz heliolizada (como o RAP a tem caracterizado) a ambicionar a ascensão à liderança das direitas e que me põe a congeminar o que sobre isso pensaria o progenitor, tanto quanto se sabe, ativo comunista na capital do Baixo Alentejo. 

segunda-feira, fevereiro 27, 2023

O premiado filme de Canijo e um outro que mostra o Irão tal qual é

 

Começa a contagem decrescente até 11 de maio, altura em que poderemos ver o dítico Mal Viver/ Viver Mal, acabdo de consagrar na Berlinale deste ano com um Urso de Prata atribuído à primeira parte da obra.

Rodado durante a pandemia num hotel do norte do país, anuncia-se como retomando alguns dos temas recorrentes na obra do realizador, ou seja, os conflitos familiares, sobretudo os relacionados com mães e filhas, ora na família que gere o negócio, ora nas dos seus clientes.

A fotografia de Leonor Teles foi muito elogiada pelo realizador e vamos ao encontro dos rostos, que com ele costumam colaborar, mormente Rita Blanco e Anabela Moreira, a quem se associam Nuno Lopes ou Leonor Silveira.

Muito embora tivessemos dispensado a enfática jura de amor à Ucrânia no momento de agradecer a atribuição do prémio, fica reservado espaço na agenda para reencontrarmos o universo canijiano na altura em que filas de peregrinos continuarão a replicar o cortejo a que, há dúzia de anos, ele deu testemunho na direção de Fátima.

2. Enquanto esperamos pelo filme de Canijo temos para ver Holy Spider do sueco de origem iraniana Ali Abbasi.

Na sua terceira longa-metragem o realizador baseia-se numa história verídica passada na cidade de Mashhad em que um pedreiro, antigo militar na guerra de 2000-2001 contra o Iraque, iniciou um périplo de serial killer, vitimando mulheres que, para ele, ofenderiam o ideal religioso da proclamada capital espiritual do Irão. Daí que, apesar de desmascarado por uma jornalista em registo de thriller, esse assassino se visse heroicizado pelos setores ultraconservadores identificados com a sua idiossincrasia, ajustada às características dos perpetradores da banalidade do mal. E é sobre esse tipo de personalidade frustrada e, por isso mesmo, fanatizada, que o realizador mais se atarda.



domingo, fevereiro 26, 2023

Outras mulheres conhecidas através de Eva Luna

 

São contos de uma dezena de páginas, com retratos de mulheres mergulhadas nas múltiplas realidades latino-americanas. Com mais ou menos realismo, e magia muitas vezes revestida de sinistras perversões.

Muitos anos passados sobre a compra deste livro de Isabel Allende, até agora esquecido na biblioteca a aguardar por dias favoráveis à sua descoberta, tem sido prazeroso descobri-lo.

Hermelinda, a prostituta da Terra do Fogo, tão apreciada pelos peões dispostos da gastarem as soldadas no seu negócio e a deixar-lhes imensas saudades, quando dali partiu com um forasteiro capaz de a encantar como nunca sucedera até então.

Antonia Sierra e Concha Diaz, a mulher e a amante do sovina Tomás Vasquez, que conseguem vencer a tentação da rivalidade e vingarem-se de quem a tantas privações as sujeitara, partilhando o esconso tesouro por ele clandestinamente acumulado.

Hortensia, a jovem mentalmente limitada, que Amedeo Peralta aprisiona durante meio século numa cave e justifica a queda de quem toda a vida se julgara tão poderoso que nada, nem ninguém, lhe beliscaria o livre arbítrio.

Patricia Zimmermann, a burguesa, por quem Horacio Fortunato se embeiça obsessivamente, embora nada dela consiga apesar dos muitas prendas enviadas. Até conseguir abrir-lhe o franco riso ao associar a sua companhia de circo ao propósito de, definitivamente, a convencer.

Maurizia Rugieri, a romântica enfeitiçada pelo fascínio das óperas de Verdi ou Puccini e, tardiamente, a compreender o engano sobre a verdadeira identidade do herói a quem deveria ter dedicado os fervores amorosos.

A rapariga sem nome, sujeita a terrível escravatura sexual num acampamento de colheita de borracha na selva amazónica, e liberta dos seus dias sem esperança pelo índio com nome de vento, ali momentaneamente de passagem só para compreender os perigos vindos dos brancos. 

sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Um realizador sobrevalorizado e direitista

 

Passados dois anos sobre a sua estreia lá me armei de paciência para ver Tenet, o filme de Christopher Nolan, que levara uns quantos amigos a reputarem-no de difícil entendimento aquando da estreia, ainda a pandemia estava a afastar boa parte dos espectadores das salas de cinema. E confirmei o que já me habituei a ver na filmografia do realizador: personagens estereotipados sem características, que lhes deem substância (com ligeira exceção do Neil interpretado por Robert Pattinson, talvez por iniciativa do ator, ao sugerir ambiguidades não esclarecidas no argumento. Olhando para o protagonista, que nem a nome tem direito, para o vilão (russo, claro está!) representado por Kenneth Branagh ou para a sua esposa em estilo femme fatale, lá estão os modelos triviais de filmes de série B mas inflacionado com as pretensões de quem se assume como seu exclusivo criador-argumentista.

Há, igualmente, a habitual ideologia direitista de Nolan às tantas apostado em devolver ordem a um mundo minado pelo caos de acordo com o preceito de deixar o capitalismo destruir totalmente o planeta incumbindo o protagonista de livrar de aborrecimentos quem quer manter tudo como está.

A ideia subjacente à história até era interessante, mas Nolan nem sequer se deu ao trabalho de ilustrar os sinais daquilo que os motiva: recorrendo a uma forma de inversão temporal os nossos descendentes no futuro enviam os seus exércitos para o presente a fim de atenuarem os danos de uma situação distópica com que devem lidar. A expressão proferida pelo protagonista sobre caber a cada geração tomar as melhores medidas para viver o melhor possível é todo um programa político, que vale para quem ainda insiste na exploração das energias fósseis por muito que se saiba qual será o desenlace dessa opção.

Em Nolan irrita, sobretudo, essa persistente intenção de criar grandes blockbusters vendendo gato por lebre: algumas das teses científicas, influindo seriamente na ação, não merecem outra credibilidade senão a de parecerem vistosas para sustentarem uma variante de ficção científica associada aos filmes de ação.

Não se trata de ficarmos a discutir sobre entropias reversíveis e outras hipóteses lançadas de raspão, mas constatarmos o habitual foguetório de efeitos especiais, que pode impressionar os parolos, mas deixa indiferentes quem aspira a algo com outros fundamentos.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Relatos de um genocídio e a sombra da aventesma

 

1. No ano que vem passarão trinta anos sobre os dias de maio de 1994 quando a população hutu do Ruanda empunhou as catanas e matou os vizinhos tutsis depois de um processo de diabolização, que o governo instigara à semelhança do que os nazis tinham feito com os judeus durante a década de trinta do século transato.

O que surpreende da leitura dos três livros, que o antigo jornalista do «Libération» Jean Hatzfeld publicou sobre o tema, é o complexo de culpa das vítimas sobreviventes perante a morte de tantos amigos e familiares e a falta de remorso dos assassinos, que dificilmente reprimem a pena de não terem levado o genocídio até ao fim, mesmo saldando-o em centenas de milhares de assassinados.

Ouvindo as vítimas (Dans le nu de la vie), os algozes (Une Saison des Machettes) e testemunhando como voltaram a interagir juntos nas mesmas aldeias e vilas em que decorreram os massacres (La Stratégie des Antilopes), Hatzfeld dá-nos sobejos motivos de reflexão, sobretudo nesta altura em que, uma vez mais sentimos, enquanto europeus, os efeitos de uma guerra absurda, que tarda a resolver-se na mesa das negociações.

2. A qualidade literária é pobre, mas as Memórias de Edmundo Pedro valem pelo interesse em conhecer a sua versão sobre os tempos de jovem comunista, mesmo não se cansando de abjurar essas crenças, e, sobretudo sobre a experiência de dez anos no Tarrafal.

À distância de quase um século fica o testemunho de quanto uma geração se afadigou e sofreu para acabar com a ditadura salazarista, não sendo raras as mortes por tuberculose ou por brutais agressões, que resultavam no incremento da determinação para a luta por parte dos que nela investiriam maior valentia. E Edmundo Pedro - por isso mesmo tão vilipendiado pelos admiradores da aventesma! - foi por certo um dos seus mais corajosos opositores.

segunda-feira, fevereiro 20, 2023

As mulheres dos contos de Isabel Allende

 

Rolf pede a Eva Luna, que lhe conte histórias. E, qual Xerazade, ela fá-lo, tomando por protagonistas sucessivas mulheres.

Belisa Crepusculario, por exemplo, nasceu muito pobre, mas aprendeu a importância das palavras para se sustentar com o seu uso, escrevendo cartas para quem as não saberia escrever ou inventando-as para quem delas precisasse para emitir inéditos e contundentes insultos. Um dia, um coronel, apostado em ser presidente, decide calar as armas na guerra civil e conseguir dela um discurso capaz de se traduzir em maioritários votos nos eleitores. Com imediato e espetacular sucesso. Mas duas palavras secretas, só a ele sopradas, desarmam-lhe a vontade e mortificam-no sem que os lugares-tenentes lhe devolvam a perdida belicosidade.

Elena Mejias consegue outro tipo de sortilégio no padrasto, por ela obcecado quando é uma jovem Lolita. Mas sem  lhe encontrar aparente memória do assédio, durante anos sentido com complexo de culpa, quando a reencontra muitos anos depois na condição de austera noiva destinada a esposa de influente militar.

E há também Clarisa a surpreender na clandestina contradição entre a sua muito admirada santidade e aquilo que dela descobre quem lhe conta a história: depois de dois filhos anormais, gerara dois perfeitamente competentes com um amante apenas para garantir aos mais velhos o apoio perdido, quando viesse a morrer.

Nos três primeiros contos do livro as mulheres têm duas facetas, a benigna e a mágica na primeira, a sedutora e a sisuda na segunda, a piedosa e a infiel na terceira. Abrindo-se justificada expetativa para quantas vier a conhecer de seguida.

Entre o realismo mágico e as peculiaridades de um subcontinente a contas com a aguerrida ânsia de poder dos homens, são as mulheres quem, clandestinamente, parecem condicionar-lhes os destinos...

domingo, fevereiro 19, 2023

Quando Griffith afinava a intenção propagandística

 

Rodado em 1918, três anos depois de O Nascimento de uma Nação, e dois após Intolerância, Aos Corações do Mundo  conclui uma espécie de trilogia épica na filmografia de Griffith em jeito de superprodução, mesmo que, na ideologia e nas opções estéticas, os três títulos se cheguem a contradizer.

A versão acessível no You Tube, com os cortes impostos pelo produtor Adolph Zukor, desvirtua a coerência da obra na interligação com os filmes anteriores, mas permite entender como, após os propósitos pacifistas de Intolerância, Griffith apostou numa lógica propagandística destinada a apoiar a causa aliada na Primeira Guerra então em curso, havendo quem afiance a participação de Churchill na participação inglesa no financiamento da produção.

Rodado em Londres, na França e na América Aos Corações do Mundo associa as contingências da guerra às vicissitudes do triângulo amoroso interpretado pelas irmãs Gish e por Robert Harron. É um mundo noturno com as batalhas captadas à distância e as câmaras a atardarem-se demoradamente no equipamento militar envolvido.

Uma das cenas referenciadas por quem mais apreciou o filme é a da falsa justaposição da noite de núpcias entre a personagem de Lilian Gish e o marido em pleno campo de batalha, quando ele parece prestes a morrer. É antológico o longo plano em que os corpos se enlaçam, justificando a descoberta de uma obra, que as vicissitudes da distribuição subalternizaram injustamente em relação a outras desse período em que a indústria cinematográfica se consolidava.