O livro foi publicado em 2013, mas só agora o comprei por ocasião da sua apresentação pelo autor numa sessão organizada pela Associação Gandaia da Costa da Caparica: «O Botequim da Liberdade» de Fernando Dacosta é um relato interessantíssimo das memórias por ele compilada de tudo quanto viveu no convívio com Natália Correia nos anos de brasa do antes e do pós-25 de abril.
Não sou propriamente um incondicional da escritora açoriana apesar de muito ter apreciado a sátira ao Morgado ou o poema «Inquietação», que José Mário Branco musicou e cantou.
Discordo até de muitas das suas teses sobre a portugalidade, que sempre me pareceram decorrentes de onanismos intelectualóides sem consistência sociológica ou histórica. Mas o livro de Dacosta é aliciante na recordação dos protagonistas de uma época convulsa, mesmo mostrando particular complacência, se não mesmo simpatia, por alguns notórios salazaristas, e uma indisfarçável antipatia pelos comunistas.
O prazer da leitura surge, pois, condicionado pelos cuidados a ter com a visão flagrantemente facciosa, que revela ter.
Porque está dividida em cinco partes, fiquemo-nos hoje pela primeira, aquela que Dacosta intitulou «Lua Quente», uma das muitas fases identificadas por Natália, que rejeitava liminarmente a convencionalidade das quatro que todos conhecemos.
Explica-se rapidamente o que tornou mítica a tertúlia que a escritora criou no bairro da Graça: “A magia do Botequim tornava-se, nas noites de festa, feérica. Como num iate de luxo, navegava-se delirantemente em demanda de continentes venturosos (ilhas de amores) que nunca se encontravam.
«O importante não é alcançá-los, mas procurá-los», incitava Natália, sobre ondas de fantasia e desmesura.
As tertúlias proporcionam a «comunhão com pessoas de espírito e ousadia», vincará ela, «por isso são fundamentais para se evitar a cultura desvivenciada, pois só quando se está muito na vida se pode transmiti-la aos outros». As reverberações das músicas, das luzes, dos vinhos, dos fumos, tudo faziam possível, apetecível.” (pág.17)
Sobre Natália, Dacosta reconhece-lhe o feitio difícil, que suscitou tantas paixões, quantas inimizades: “Não se tornava fácil compreendê-la, nem amá-la. Fazê-lo, exigia sentimentos, disponibilidades especiais. Era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos. Chegava a assustar.” (pág. 21)
E, mais adiante: “Muitas vezes perdia a cabeça connosco e nós com ela. Sufocava-nos. Muitas vezes apetecia-nos fugir. Não aguentávamos a sua lucidez, a sua exigência, o seu empenhamento, a sua implacabilidade. Muitas vezes tentámos matá-la em nós para sermos nós - até nisso nos ajudou. Era uma mulher inigualável. Nos caprichos, nos excessos, nas iras, nas premonições, nos exibicionismos, na sedução, na coragem, na esperança. Cantava, dançava, declamava, improvisava, discursava, polemizava como poucos entre nós alguma vez o fizeram, o somaram.” (pág. 24)
No seu feitio provocador, Natália fazia proclamações de singularidade pessoal, que nem sempre correspondiam à realidade como se desejasse trajar as palavras definidoras de quem não chegava a ser: «Não tenho uma religião, um partido, um clube, uma escola literária, não sou de associações mas de convívios, não sou de exclusões mas de acrescentamentos, tudo o que existe deve ser compreendido, pois faz parte da natureza, por mais estranho e diferente que possa parecer..» (pág. 41)
É quase no final desta primeira parte do livro que Fernando Dacosta nos dá um excelente argumento para conhecermos a história desse tempo e que, no meu caso, atravessou a infância, a adolescência e os verdes anos da vida adulta. Utiliza para isso uma citação do general Norton de Matos, que propõe como inicio da história pessoal de cada pessoa um quarto de século antes do seu nascimento, por estar nele contido muito do que a molda à partida: «A vida de um homem deve contar-se a partir de vinte e cinco anos antes do seu nascimento, pois o ambiente em que ele nasce forma-se por uma série de acontecimentos anteriores que criam a atmosfera moral onde o seu espírito se molda e evolui.» (pág, 59)
Em próximo texto passaremos para a Lua Crescente da autora.
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