terça-feira, maio 24, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Noites de Cocaína» de J.G. Ballard (III)

Quando Charles Prentice chegou à Costa Brava para inocentar o irmão, que se dera como culpado do incêndio de uma mansão onde estavam encerradas cinco cadáveres, não imaginava que ele nem sequer quisesse falar consigo.
Que teria Estrella de Mar provocado na personalidade de Frank para que se afirmasse responsável de crimes, que em nada coincidiam com a sua personalidade?
Essa é uma das questões levantadas pelo romance de J. G. Ballard: até que ponto um ambiente fechado, com um núcleo muito restrito de pessoas, poderá alterar o comportamento de alguém?
É por isso mesmo que Charles decide passar umas semanas ali a imbuir-se de uma cultura, que lhe terá sido estranha até então.
Quando se instala no apartamento do irmão encontra aí Paula Hamilton, uma psicóloga, que fora sua amante ocasional. Mas, ao contrário do que Charles julgaria, não estão sós: quando ela sai, a luz apaga-se e umas mãos possantes agarram-no pelo pescoço, estrangulando-o quase até ver ali concluídos os seus dias.
Esse é só o primeiro aviso de quem, agindo na sombra, o pretende vê-lo dali para
fora, sem aprofundar o mínimo que seja o que se terá passado realmente na mansão Hollinger, na noite em que o brinde ao aniversário da rainha inglesa, culminara com o edifício em chamas.
Na visita ao local, Charles consegue resgatar um filme pornográfico, que ficara no videogravador e onde se via a violação de uma rapariga vestida de noiva, possuída sucessivamente por vários homens com a cumplicidade das “damas-de-honor”.
Começando a habituar-se às surpresas, Charles descobre, num reflexo captado por um espelho, que quem filmava essa cena era Paula Hamilton.
Daí a questão: o que a levaria a ser cúmplice de algo tão perverso? “ A aberração era, em Estrella de Mar, um bem sob apertada guarda” (pág. 127).
Outra personalidade, que levanta dúvidas legítimas ao recém-chegado é Elisabeth Shand, que trabalhara anos a fio como contabilista dos Hollinger e lhes liquidara o falido negócio cinematográfico, convencendo-os ao investimento imobiliário naquela costa mediterrânica.
O narrador relata: “Regressei ao Club Nautico, a tentar decidir qual seria a minha próxima jogada. Elisabeth Shand, ainda que no limite do concebível, tinha um motivo para matar os Hollinger, quanto mais não fosse para deitar as mãos a uma valiosíssima propriedade, mas teria com toda a certeza escolhido um meio muito menos grosseiro do que fogo posto. Além disso, era evidente que fora amiga do casal de velhotes, e os cinco assassínios tinham sido péssimos para o negócio, afastando potenciais investidores.” (pág. 127)
Na casa da investidora, Charles consegue descobrir a identidade da rapariga violada na videocassete: Annie Hollinger, a sobrinha dos donos da mansão e que fora uma das cinco vítimas do incêndio.
Outra fora uma sueca, que trabalhava como empregada doméstica e que, segundo o ex-namorado, Andersson, continuava dependente das drogas. Ora, os barcos por ele reparados na marina, eram os mesmos que atravessavam o Mediterrâneo para trazerem para Espanha o haxixe e a heroína.
Cada vez mais desorientado com a falta de pistas, Charles escreve: “Perspetivas escondidas transformavam Estrella de Mar numa gigantesca charada. Corredores em trompe l’oeil pareciam chamar-me, mas não conduziam a parte alguma. Podia passar o dia inteiro a tecer cenários que provavam a inocência de Frank, mas os fios desmanchavam-se no instante em que deixavam os meus dedos.” (pág. 142)

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