domingo, maio 29, 2016

DIÁRIO DE LEITURA: «Noites de Cocaína» de J.G. Ballard (IV)

Retomo o romance, que Ballard escreveu em 1996, sobre um nómada dos tempos modernos, que se sedentariza na Costa do Sol para encontrar fundamentos para inocentar o irmão mais novo dos cinco crimes de que ele está acusado. No texto anterior deixei Charles Prentice a seguir aquele que constitui o seu principal suspeito: Bobby Crawford, um tenista, que é igualmente o grande animador de todas as atividades lúdicas em Estrella de Mar.
E, de facto, confirma facilmente ser ele quem controla os negócios da droga e da prostituição no aldeamento e quem rouba descaradamente as lojas e vivendas onde se introduz.
Discutindo essa evidência com o psiquiatra Sanger, cuja antipatia por Crawford estivera bem à vista no funeral de uma das vítimas, Charles ouve-lhe uma teoria surpreendente sobre o futuro das sociedades orientadas para o lazer, como então se prognosticava possível antes das crises financeiras verificadas já neste século:
“(…) o Crawford pode ter sido o salvador de toda a Costa del Sol, e até de um mundo muito mais vasto para além. (…) Os nossos governantes preparam-se para um futuro sem trabalho, e isso inclui os pequenos criminosos. O que nos espera são sociedades de lazer, como as que se podem ver nesta costa. As pessoas continuarão a trabalhar... ou melhor, algumas pessoas continuarão a trabalhar, mas apenas durante uma década das suas vidas. Reformar-se-ão antes dos quarenta, com cinquenta anos de ociosidade pela frente.
(…) No entanto, como activar as pessoas, dar-lhes um certo sentido de comunidade? Um mundo estendido de costas fica vulnerável a todo o género de predadores. A política é um passatempo para uma casta de profissionais e não consegue interessar a maior parte de nós. A fé religiosa exige um vasto esforço de empenhamento imaginativo e emocional, difícil de conseguir quando ainda se está zonzo do comprimido para dormir que se tomou na noite anterior. Só resta uma coisa capaz de mobilizar as pessoas, ameaçá-las directamente e obrigá-las a agir em conjunto.” (pág. 169)
São  várias as testemunhas a quem Charles consulta sobre Estrella de Mar antes e depois da chegada de Crawford e todas convergem para a mesma conclusão: ao ambiente pacato, em que os habitantes quase não comunicavam entre si, mantendo-se dentro das suas vivendas com piscina a ver televisão por satélite, sucedera-se um outro, bastante mais agitado, em que se tinham formado grupos de vigilantes para combater a delinquência e, criados tais laços, logo as aulas de ténis, de dança, de teatro e de muitas outras atividades de preenchimento dos tempos livres tinham esgotado as suas incrições. Porque, ameaçadas na sua solidão, os habitantes tinham sentido a vantagem de buscarem segurança na pertença ao grupo.
A ex-amante do irmão, Paula, que se torna também sua companhia de uma noite, alerta Charles para o facto dele estar a ficar perigosamente ligado àquele espaço, sentindo-o como o lar, que nunca conhecera, desde a morte da mãe em Riade, tinha ele 12 anos. De facto o fascínio por tal ambiente fragiliza-o, diminui-lhe as defesas para o que lhe irá acontecer no que resta do romance.

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