sexta-feira, dezembro 31, 2021

O QAnon nos antípodas (e também por cá?)

 

1. A princípio começaram a ser afirmações estranhas, que Karen Stewart não levou muito a sério. Estaria o irmão a brincar com ela testando-lhe a lucidez? Mas logo viu a cunhada e o sobrinho a replicarem o que ele teimava com crescente insistência: que uma elite pedófila tomara conta do mundo e havia que a combater como forma de salvar as criancinhas sujeitas a violações ou a rituais satânicos de feição vampiresca. E, como ela própria fora violada aos catorze anos por dois acólitos da igreja local, procurava associá-la ao seu militantismo conspirativo.

Às tantas a distância de crenças de Ted, da mulher e do filho com o resto da família tomou tão avassaladora dimensão, que deixaram de aparecer. Porque as discussões eram intensas e nunca delas saíam vencedores.

O pior foi Karen conhecer a proximidade antiga do irmão com o primeiro-ministro Scott Morrison, que alegava influenciar como sua marioneta para abreviar a chegada do Grande Despertar. E o político andava a dar-lhe razão ao inserir nos discursos algumas passagens a contento dos sectários do QAnon: por exemplo a de terem existido “rituais satânicos” contra as vítimas de abusos e violações como as padecidas por Karen dentro das instituições religiosas australianas.

No Senado há quem leve muito a sério esse conúbio e o queira esclarecido. Porque quem anda a denunciar a existência de um Sistema passível de ser derrubado (aqui também replicado no Ventura do Chega e em Rui Rio) já não pode ser desvalorizado ao nível dos que defendem a platitude da Terra. Como se viu com a invasão do Capitólio no início do ano em curso, essa gente é perigosa ao deixar-se manipular por quem a sabe dócil carne para canhão, quando se trata de defender os seus inconfessáveis interesses.

2. E, no entanto, nem mesmo os impérios destinados a existirem por mil anos conseguiram perdurar por mais de uma dúzia de anos a assassina vocação. Ao revisitarmos os impressionantes desfiles em Nuremberga, tais quais Leni Riefenstahl os encenou, surge inevitável a suposição do que terão sentido os grandes dignitários nazis, quando neles participaram entre 1933 e 1938. Terão Hitler, Goering ou Himmler confiado na sua invencibilidade? Julgariam repetir-se as circunstâncias excecionais, que os tinham levado ao poder graças às rivalidades palacianas entre o general Kurt Von Schleicher e o ambicioso Franz Van Papen sob o beneplácito do presidente Hindenburg?

Muitos milhões de pessoas morreram como consequência da desmedida apetência pelo poder absoluto e muitas outras ficaram traumatizadas para o resto das suas vidas, mas quem o quis personificar não teve melhor sorte abreviando-se-lhe o fim e adornando-se-o com indelével ignomínia. E, no entanto, olha-se para os partidos e militantes da extrema-direita e somos levados a questionar: não aprenderam nada com a História do século XX? Não percecionam para onde seriam levados se condições favoráveis os devolvessem a essa sensação de invencibilidade dos antecessores nazis? Infelizmente temos de reconhecer que a essa hipótese se fazem cegos, surdos e mudos. 


quarta-feira, dezembro 29, 2021

Os Retornados do Estado Islâmico

 

Em 2016 Joshua Baker quase morreu no Iraque, quando a explosão de um carro-bomba lhe partiu a coluna. Rodava então o documentário «A Batalha de Mossul», produzido pelo «The Guardian».

No ano seguinte, ainda estava a recuperar das sequelas físicas e psicológicas da experiência, quando descobriu a história de Samantha El-Hussani, uma norte-americana alistada no Daesh cujo filho mais velho protagonizara um mediático filme de propaganda em que Trump era o alvo de ameaças.

Nos anos seguintes, e apesar da decisão de não voltar a uma região onde os perigos se tinham revelado tão potencialmente letais, Baker foi a Raqqa, às zonas dos yazidis e aos Estados Unidos para melhor conhecer toda a história por trás de quem, alegando inocência, acabaria condenada a seis anos de prisão por confesso financiamento do terrorismo. Sobretudo durante uma deslocação a Hong King, motivada por essa intenção.

Resulta daqui um filme muito curioso, porque os testemunhos sobre Sam são tão antagónicos - comprometedores os dos pais e o do pai do seu filho mais velho, abonatórios os da rapariga e do miúdo comprados pelo marido como escravos para os servirem - que acaba por ser  difícil perceber quanta inocência e culpabilidade nela coexistem.  Talvez tudo se tenha cingido a uma adolescente do tipo «cabeça no ar», que prolongou na idade adulta a mesma atração pelas situações de intensa adrenalina. A aventura no Califado pode-lhe ter parecido aliciante, tanto mais que o companheiro, marroquino também ele entusiasmado pela possibilidade de sacudir o tédio dos dias sempre iguais, depressa levara a tentação de partir para o Médio Oriente para uma concretização impensada.

No local ele terá desmascarado a sua personalidade mais sombria agredindo-a amiúde e forçando-a a comprar as escravas sexuais com que satisfazia os mais básicos instintos. Ela arrependendo-se de todo aquele envolvimento e lançando pedidos de salvação à irmã, por quem Joshua iniciara o projeto de filme.

Quem acaba por revelar notável maturidade e inteligência emocional é Matthew, que viu muitas mortes ocorrerem á sua frente e encontrou o estado de espírito mais eficaz para sobreviver ao desvario circundante. Aos 13 anos, e a viver com o pai, olha para esses anos com o distanciamento de quem deles se sente liberto.

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Um dos muitos que a História subalternizou

 

Ao lermos os relatos sobre a viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães é fácil a tentação de querermos saber mais sobre Juan Sebastian Elcano, o comandante da frota, que conseguiu terminar a expedição com o único navio dela sobrevivente e acabou quase esquecido pela História.  Porque tem algo de singular a sua queda em desgraça, quando participou do motim que quase podia ter deitado a perder os objetivos de Magalhães - que não era a da volta ao mundo, mas tão-só a de alcançar as Molucas por outra rota, que não a dos portugueses -  escapando à condenação à morte apenas pelo facto daquele não ficar desfalcado de quem tão bem conhecia a arte de navegar como era o caso do  basco. Mas, nos relatos da viagem, Elcano ficou dois anos esquecido até assumir-se como improvável salvador da pátria, quando os superiores hierárquicos foram chacinados numa batalha com os que habitavam uma das muitas ilhas do arquipélago filipino.

Imprevidente, igualmente, em cuidar da posteridade, Elcano não contratou nenhum cronista para lhe fixar a história em forma de relato escrito, logo voltando a viajar para o oceano Pacífico em prol de uma fortuna, que não alcançaria, porque também ali teria encontro marcado a morte.

Em Elcano encontramos aquele tipo de protagonistas da História cujo trágico destino muito deve à sua própria imprevidência. A mesma que sempre o aproximou mais da morte do que da celebrada vida. 

domingo, dezembro 26, 2021

Vanguardas e tentações fascistas

 

É inevitável pensar na conhecida frase de Samuel Johnson, proferida numa tarde de abril de 1775 - “o patriotismo é o último refúgio do canalha” - quando se pensa no comportamento do grupo vienense liderado por Anton Schönberg e também integrando Alban Berg e Anton Webern, quando o atentado de Serajevo deu o esperado pretexto para a Europa mergulhar na Primeira Guerra Mundial. Apesar de todos eles estarem envolvidos na vanguarda artística, que pretendia substituir a música tonal, até então canónica,  e viria a expressar-se no dodecafonismo na década seguinte, a ideologia mantinha-os presos ao que de mais conservador existia, levando todos a oferecerem-se para o exército austro-húngaro, quando as declarações de guerra se sucederam. Maniqueísta, como o são todos os patriotas, Schönberg via no conflito a melhor forma de “esmagar os bárbaros”.

A desilusão não tardaria: afinal a guerra, que apenas duraria umas semanas, prolongar-se-ia por meses e, depois, anos a fio. Os projetados combates homem-a-homem, que exaltariam os pendores viris dos beligerantes, viram-se substituídos pelos troares dos canhões, que matavam os artilheiros nas trincheiras, quase sem darem pelo tão inopinado fim. E fez caminho a demonstração dos mais lúcidos quanto a tratar-se de conflito do exclusivo interesse dos grandes capitalistas, que se serviam das populações como meras carnes para canhão.

Anos depois, quando ambos já se tinham transferido para o campo dos pacifistas, Schönberg haveria de convidar Maurice Ravel para com ele atuar em Viena, numa cumplicidade de quem guerreara em campos opostos, já que o compositor do «Bolero» fora condutor de transportes de tropas e também testemunhara a carnificina, que à generalidade dos artistas tanto impressionaria. Embora, quando essa realidade se tornou óbvia, muitos dos vanguardistas não deixaram de continuar a merecer-se implicados pela citação de Johnson já que alguns deles - particularmente Marinetti com Mussolini - aprestaram-se a dar caução intelectual aos fascismos emergentes. E não esqueçamos que também Fernando Pessoa se embeiçou do Presidente-Rei Sidónio Pais ou Almada Negreiros aceitou cargo político na estrutura do Estado Novo. 

sexta-feira, dezembro 24, 2021

Ver mais longe graças a prodigioso feito de engenharia

 

Será imensa a expetativa sobre o  que o telescópio James Webb nos facultará daqui a seis meses, quando abrir o espelho de 6,5 metros, protegido por um escudo do tamanho de um campo de ténis, e passar a dar-nos o aspeto do distante universo tal qual nunca o vimos até agora.

Para quem cresceu a olhar para os céus enquanto lia os romances da coleção Argonauta, antes de apostar em ensaios científicos mais consistentes com a realidade cósmica - mesmo que com menos imaginação!, - será inevitável acompanhar atentamente os meses vindouros  para saber o que será revelado pelo telescópio, cem vezes mais potente do que o Hubble, a ser enviado amanhã para o espaço a partir da Guiana Francesa.

Se jamais cumprirei o sonho de ver a Terra de longe, tal qual a testemunharam Armstrong, Collins e Aldrin da órbita da Lua, sempre terei um vislumbre daquilo que saberão as minhas netas e todos os que delas recolherem herança genética, quando o James Webb concluir a missão de debitar os incomensuráveis dados científicos colhidos do seu contínuo labor. Quase por certo para se ver substituído por outro ainda capaz de mais se aproximar-se do momento do Big Bang. 

Envelhecer. Oh envelhecer!

 

Durou três anos a aventura polinésia de Jacques Brel, encetada quando a projetada volta ao mundo no seu veleiro foi interrompida pela definitiva paragem numa baía de Hiva Oa, uma das seis ilhas habitadas das doze que compõem o arquipélago polinésio das Marquesas. Por essa altura ele teria a provável expetativa de superar o cancro fatal, ou pelo menos travá-lo durante o tempo bastante para usufruir aquele paraíso terrestre, que depressa compreendeu ser o melhor sítio para se despedir da vida. Mas os pulmões estavam demasiado afetados para dar-lhe a pretendida ambição, embora criasse entretanto «Les Marquises», o álbum definitivo  com muitos acenos de despedida aos amigos. Mas não só, porque contém alguns dos seus temas mais belos, mesmo que outros, anteriores, continuem a superá-los em notoriedade.

Como não entender o que Brel terá sentido por essa altura, quando chegamos ao crepúsculo da vida e desconhecemos por quanto tempo pairará o sol por cima da linha do nosso horizonte? Saibamos, porém, ter a sua sabedoria de lamentar que, se é duro morrer na primavera, acabamos todos por apanhar o comboio que podemos. Porque “Mourir, cela n'est rien/ Mourir, la belle affaire/  Mais vieillir ... oh, oh, vieillir. 

quarta-feira, dezembro 22, 2021

Cinquenta anos depois ainda haverá quem torça o nariz ao melhor filme de Visconti?

 


Faz sentido dar algum crédito aos que  criticaram «Morte em Veneza» por Luchino Visconti não ter seguido tim tim por tim tim o romance original de Thomas Mann e lhe acentuar a vertente homoerótica?

Cinquenta anos depois da estreia do filme  ele continua a ser fascinante e a garantir um inaudito prazer aos que gostam de cinema e da grande música, porque nunca o Adagietto de Mahler conhecera tal notoriedade até Visconti o utilizar para servir de acompanhamento sonoro à morte do prof. Aschenbach nó melancólico areal do Lido. Doravante esse andamento da 5ª Sinfonia de Mahler extravasaria do reservado universo dos melómanos para ganhar a dimensão de uma plêiade mais vasta de seus apreciadores.

E faz sentido falar de Veneza no cinema sem citar esta obra específica? Porque, mesmo não lhe frequentando os cenários mais icónicos - ou talvez por isso mesmo, porque a cidade vai muito para além das concorridas ruas entre a Praça de São Marcos e a Ponte de Rialto, crescendo em fascínio ao delas nos afastarmos! - nenhum outro filme deu da cidade esse tal sortilégio, que levava o compositor alemão a dela escusar-se a apartar quando a cólera virara pandemia e o risco de morrer se acantonado nessa prisão se tornara real.

Hino à beleza absoluta? Sem dúvida que aí Visconti e o autor do romance encontram-se sem reservas. Se Thomas Mann, cujas predisposições fantasmáticas eram bem mais reservadas do que as do assumido realizador italiano, veria em Tadzio mais do que o pretendido símbolo de algo inalcançável nunca o saberemos.

A realidade é que as décadas vão passando e os personagens interpretados por Dirk Bogarde, Bjorn Andresen e Silvana Mangano continuam na memória como protagonistas de um daqueles clássicos de cinema a que sempre regressaremos com prazer. Porque é filme em que, cada revisita, implica nele descobrirmos os pormenores, que nos tinham passado despercebidos nas anteriores apreciações. E esse é decerto um dos mais insuspeitos reveladores quanto à valia incontestada de uma obra-prima...

 

terça-feira, dezembro 21, 2021

Da prosápia de, sem razão, ser único cabeça de cartaz

 

Rodado em 1951, mas só estreado no ano seguinte, por a Paramouth recear a reação do público perante um argumento pouco condescendente para o personagem interpretado por Dean Martin, «The Stooge» («O Estoira Vergas») foi o filme que Jerry Lewis preferiu de entre os que interpretou em dupla com o transitório parceiro. Talvez porque demonstrava que, embora crooner competente, Martin era ator de limitadas competências ao contrário de quem aliava a interpretação à criação de argumentos (caso deste embora não creditado no genérico) e à sua realização. Para a História fica até a razão, porque a dupla se veio a desfazer: perante a descontraída forma como Dean Martin geria a carreira, o maníaco Lewis apostou em fazê-la a solo iniciando aquela que viria a ser a melhor fase da sua filmografia.

Nesta história rodada por Norman Taurog temos um ator de revista com nenhum sucesso, quando sozinho em palco, só o encontrando quando acolitado de comparsa capaz de realçar o lado involuntariamente cómico da sua interligação. Bill Miller - assim se chama o personagem interpretado por Martin - é um daqueles exemplos do princípio de Peter, chegados muito acima do limiar das competências, mas sem o reconhecer. Ao invés, prosápia não lhe falta, mesmo pondo em causa a relação conjugal estabelecida com Mary, que não tarda a sentir-lhe o egoísmo ao ver-se refletida na forma injusta como trata Ted Rogers, o humilde e atrapalhado parceiro sem dar-se conta de ser este o fulcro do seu sucesso, mesmo não lhe dando direito a emparceirar com ele nos cartazes.

Claro que a moralidade acaba por sobrepor-se ao autismo de Bill com o happy ending num dos palcos mais importantes da Broadway. Há setenta anos não se poderia pensar em solução diferente para este tipo de comédias, que afloravam temas pertinentes, mas os dulcificavam em variantes - neste caso duplas! - da fórmula boy meets girl. Mesmo que se justifique a constatação de uma ambígua atração do personagem de Lewis pelo companheiro a quem demonstra uma quase canina devoção...

domingo, dezembro 19, 2021

The Kid, cem anos depois

 

Regresso a Chaplin com o prazer de sempre e sob os mais anódinos pretextos. Por exemplo o de passarem cem anos sobre a estreia de «The Kid», o filme por muitos considerados como primeira-longa-metragem do ator-realizador, mas quase não durando uma hora.

Divertido nos imaginativos sketches, que não ganharam qualquer caruncho - mesmo que doravante muito glosados! - o filme tem o lado sombrio por espelhar os demónios passados do seu criador e os que continuavam a assolá-lo por essa altura.

Em época de ruturas - desde a conjugal, quer a que mantinha com os seus produtores - Chaplin cria uma evidente homenagem à mãe nessa personagem, que abandona o filho depois de ter contra si o seu “único pecado” anunciado logo na legenda de abertura.

Havia também o desejo de paternidade por parte de quem acabara de perder o filho de três anos, quando tinham apenas decorrido duas semanas desde o começo das filmagens. Daí a empatia profunda entre o pai e o filho adotivo numa cumplicidade idealizada, que nenhuma oportunidade poderá pôr em causa. Nem sequer a que pretenderia levar o miúdo para um orfanato.

É claro que podemos sempre travar a emoção suscitada pela história com os seus acasos felizes - a forma como mãe e filho se voltarão a encontrar! - mas não são tantas as ficções, mesmo atuais, que se baseiam nessas coincidências improváveis? E não é por isso que pomos em causa a sua veracidade quando são imaginadas por Paul Auster ou Haruki Murakami.

Cem anos depois este continuará a ser um dos meus mais jubilatórios prazeres cinéfilos.



sábado, dezembro 18, 2021

A Dido que me serve de referência

 

Se me questionarem qual a ária de ópera, que mais prefiro, poucas dúvidas me ficam quanto a logo referir a "When I am laid in earth" de Purcell. E contar com a versão de Anna Netrebko para a Deutsche  Gramophone é luxo, que me leva aos píncaros, mesmo vendo a soprano a «encorpar-se» ao nível da silhuetas «caballetiana», que tão pouca credibilidade dá aos seus papéis de belas de serviço nas óperas veristas. Mas nada que um nom encenador não consiga disfarçar com iluminação e guarda-roupa, realçando-lhe o que de superlativo tem: a prodigiosa voz.

quinta-feira, dezembro 16, 2021

Mahmoud Saïd, o pai da moderna pintura egípcia

 

Olhamos para as obras de Mahmoud Saïd e é o Egito multifacetado, que se nos depara, sobretudo se dele conservamos a imagem recolhida a meio dos anos setenta, quando o Canal do Suez voltou a reabrir e permitiu-nos conhecer a destruição perpetrada pelo exército israelita numa sucessão de guerras, que começaram por ser de agressão ao seu território tal qual reconhecido pela ONU em 1948, mas depois revertida numa expansão para fronteiras internacionalmente ilegítimas.

Há o esquiço com o gato branco a lembrar quanto o animal doméstico é mimado nessa singular geografia desde os tempos dos faraós. E também as mulheres sofisticadas com quem Saïd conviveu na cosmopolita Alexandria onde nasceu em 1897. Completamente diversas das outras, as dos bairros populares do Cairo onde mergulhou de bom grado a partir de 1913, quando a endinheirada família o mandou estudar Direito para seguir as pisadas do progenitor, um primeiro-ministro aparentado à família real, já que a rainha Farida era sua sobrinha.

Embora influenciado pela arte ocidental, Saïd iniciaria uma ininterrupta obra pictórica, que não obedeceu a escolas, nem se quis seguidora de nenhum mestre. Daí nada dever ao orientalismo, que tanto inspirara artistas europeus, ciosos de tomarem o sueste mediterrânico como cenário exótico.

Rejeitando essa convenção, Saïd testemunhou o fascínio por uma cultura genuína e consistente como a que recolheu junto das confrarias sufis, cujos rituais de cânticos e danças ilustrou num quadro particularmente icónico por tudo nele sugerir o movimento circular dos corpos dos dervixes e o ritmo que os comanda.

Só se libertando dos deveres de magistrado para dedicar-se por inteiro à pintura  a partir de 1947, Saïd instalou-se numa casa à beira do Nilo. E foi o rio motivo de muitos quadros em que procurou o brilho interior em si imbuído, mais do que os reflexos da luz à sua superfície. O azul meio-esverdeado, que utilizou para, em infinitos matizes, o ilustrar, foi fruto de uma paleta de cores ainda hoje objeto de discussões entre os especialistas, que não sabem como o criou. Um segredo sobre o qual ninguém o questionou e por isso o acompanhou, quando da vida se despediu em abril de 1964. 





segunda-feira, dezembro 13, 2021

O Livro B novamente disponível nas livrarias

 

Tem sido excelente notícia a da reedição de obras da antiga coleção do Livro B, que costumava ler há décadas, quando o fantástico me interessava bem mais do que hoje e aqueles livrinhos de capa preta e páginas azuladas me devolviam ao universo criativo de muitos dos melhores escritores do género, quer do princípio do século XX, quer do anterior.

No caso de «O Rei de Amarelo», que a E-Primatur relançou novamente nas livrarias, temos mais do que um romance sobre um fenómeno sobrenatural: a possibilidade de alguém morrer por fazer algo de tão anódino como ler uma peça teatral ou mergulhar numa estranha solução conservada numa banheira. Pelo extrato aqui aduzido de um dos contos da antologia fica a noção de quão bem escrito está, muito embora o suspeito Lovecraft apontasse a Robert W. Chambers a possibilidade de escrever bem melhor do que aquilo que acabava por publicar. Se calhar o visado deu-lhe razão, porque logo abandonou o género e quis fazer nome numa suposta formulação académica do romance histórico. Mas neste caso em concreto - o do título que melhor terá contribuído para a sua razoável posteridade - suscita-se o prazer da leitura enquanto entretenimento inteligente em que sobretudo se admira a imaginação com que se pode dar versão alternativa à nossa comezinha realidade.

 

Extrato de «O Rei de Amarelo»:

Embora não percebesse nada de química, eu ouvia fascinado. Ele pegou num lírio japonês, que Geneviève trouxera essa manhã de Notre-Dame, e depositou-o num recipiente. Nesse mesmo instante, o líquido perdeu a sua nitidez cristalina. Em segundos, o lírio foi envolvido por uma espuma branca semelhante a leite, a qual desapareceu deixando um fluido opalescente. Sobre a superfície sobrepuseram-se tonalidades de laranja e carmesim, e então o que parecia ser um raio puro de luz solar projetou-se a partir do fundo, onde o lírio repousava. No mesmo instante, mergulhou a mão no recipiente e retirou a flor.

— Não há nenhum perigo — explicou — se conseguir escolher o momento certo. Aquele raio dourado é o sinal.

Aproximou o lírio de mim e eu peguei-lhe. Tinha-se transformado em pedra, no mais puro mármore.

— Veja — disse —, sem qualquer falha. Que escultor poderia reproduzi-lo?

O mármore era branco como a neve, mas nas suas profundezas os veios do lírio estavam tingidos de um pálido azul-marinho, e um leve rubor permanecia bem profundo no seu coração.

— Não me pergunte a razão para tal — sorria perante o meu espanto. — Não percebo porque motivo os veios e o coração ficam tingidos, mas acontece sempre o mesmo. Ontem experimentei com um dos peixes dourados de Geneviève – ali está.

O peixe parecia esculpido em mármore. Mas se o aproximássemos da luz, a pedra via-se maravilhosamente cheia de estrias de um pálido azul-marinho, e algures do interior surgia uma luz rosada como a que repousa na opala. Olhei para o recipiente. Uma vez mais, parecia repleto do mais puro cristal.

— E se eventualmente o tocasse agora? — perguntei.

— Não sei — respondeu. Mas é melhor que não tente.

— Ainda há uma coisa que me deixa curioso: de onde veio o raio de sol.

— Parecia um raio de sol, de verdade — exclamou. — Não sei, aparece sempre que submerjo qualquer coisa viva — prosseguiu, sorrindo. — Talvez seja a centelha vital da criatura a escapar para a fonte de onde teve origem.

sábado, dezembro 11, 2021

Schönberg ou Stravinsky?

 

Fará algum sentido discutir o valor de um comparativamente com o do outro? Ou sobre qual melhor representaria o futuro da música do futuro, alimentando o debate entre a música tonal ou a atonal?

A filha do compositor austríaco considera absurdos os comentários dos que vão às salas de concertos e dizem nada compreender da música do pai. Mas interroga com pertinência: a música é para ser compreendida ou sentida? Leonard Bernstein, que muito defendeu a sua obra, considerava-a expressão do que poderia ser algo oriundo de outro planeta, quiçá universo.

A verdade é que ouvir «Pierrot Lunaire» implica uma disponibilidade para o diferente, para o novo, que não se coaduna com quem apenas deseja a facilidade dos sons canónicos de épocas anteriores. Pode-se preferir milhentas outras peças eruditas, mas desafiarmo-nos a escutar a obra do criador do dodecafonismo implica disponibilizarmo-nos para a surpresa, para a capacidade para de sairmos da zona de conforto das nossas certezas e preferências.

Hoje em dia é mais fácil apreciar a música de Stravinsky do que daquele que vivia a escassos 12 quilómetros em Los Angeles, mas contra quem os admiradores de um e de outro tinham cavado abismos de rivalidade. Mas não fora «A Sagração da Primavera»  também alvo de violenta pateada, quando se estreara em Paris em 1913? Não suscitara até a desconfiança em Diaghilev que, porém, tanto contribuíra para o prestígio do compatriota, quando estreara o «Pássaro de Fogo»  com os seus Ballets Russes?

A atitude mais judiciosa é não tomar partido por Schönberg ou por Stravinsky, quando se colocam os dois par a par para preterir um em relação ao outro. Mesmo que tenha inócua, mas singular discrepância com o primeiro: enquanto para ele a sexta-feira 13 de julho - a de  1951 - significou o fim de tudo, a seguinte - a de 1956 - representaria precisamente o começo de quanto depois tenho vivido.