domingo, setembro 30, 2018

(DIM) Ingmar Bergman no centenário do seu nascimento (II)


No mês de outubro o Cineclube Gandaia associa-se às comemorações do centenário do nascimento de Ingmar Bergman, realizador sueco que nos ofereceu algumas das obras maiores do século vinte, tendo influenciado a forma e o conteúdo do que se filmou na sua segunda metade.
Nascido em Uppsala, em 14 de julho, numa família assaz rigorosa no cumprimento dos valores luteranos, descobriria a paixão pelo cinema aos doze anos, quando visitou os estúdios da Svensk Film Industri, perto de Estocolmo, embora já aí chegasse sob o deslumbramento da lanterna mágica com que brincara na infância.
Na Universidade secundarizou o estudo da Arte e da Literatura, em que se matriculara, para dedicar-se preferencialmente à montagem de peças de Shakespeare e de Strindberg, ao mesmo tempo que escrevia críticas nos jornais. Em breve já está a escrever as suas próprias peças. Uma delas, «A Morte de Polichinelo» será a primeira a ser levada ao palco, em 1942, em plena guerra, valendo-lhe a contratação como argumentista nos estúdios de cinema que visitara doze anos antes.
«Torment», realizado pelo mestre Alf Sjöberg em 1944, tem a sua assinatura no argumento, quando conciliava o emprego na indústria do cinema com a direção do Teatro Municipal de Helsingborg.
Em 1945 começa a realizar os próprios filmes, que constituem dolorosos falhanços comerciais: «Crise» (1945), «Chove sobre o nosso amor» (1946), «Um barco para a Índia» (1947), «Música na Noite» e «Porto» (ambos de 1948). Valem-lhe os êxitos de dois filmes de Gustav Molander - «Eva» e «A Vida começa agora» (1947) - de que assina os argumentos.
Em 1949 conhece novo fracasso com «A Sede», mas «Prisão», outro dos três filmes realizados no ano anterior, leva os críticos a elogiá-lo como até então não havia sucedido.
A década de cinquenta inicia-se com a criação de um conjunto de filmes de temática trágica, mas sem criar nos espectadores a permanente sensação de angustia associada aos anteriores: «Rumo à Felicidade» (1950), «Um Verão de Amor» (1951), «Segredos de Mulheres» (1952) e «Mónica e o Desejo» (1953). Ao mesmo tempo vão-se sucedendo encenações bem sucedidas no Teatro Municipal de Malmö.
Os filmes seguintes já merecem consenso da crítica sueca, mas sobretudo da internacional, com destaque para as então influentes revistas francesas dedicadas à sétima arte: «Noites de Circo» (1953), «Uma Lição de Amor» (1954), «Sonhos de Mulheres» (1955) e «Sorrisos de uma Noite de Verão» (1955). Mas são dois filmes de 1957 a consagrarem-no como um dos maiores cineastas de todos os tempos: «O Sétimo Selo» e «Morangos Silvestres».
O êxito parece desconcertá-lo, razão que justifica uma indefinição nos temas e estilos adotados nos títulos dos anos seguintes: há o realista «No Limiar da Vida» (1958), o expressionista «O Rosto» (1958), o maneirista e medieval «A Fonte da Virgem» (1959) e o teatral « O Olho do Diabo» (1960).
Destes primeiros quinze anos de Ingmar Bergman, enquanto realizador, abordaremos «Um Verão de Amor» e «O Sétimo Selo» nas sessões do Cineclube Gandaia nas duas primeiras quintas-feiras do mês de outubro. As outras duas serão dedicadas a filmes realizados no período já abrangido pelo próximo texto, a aqui publicar, sobre o seu percurso biográfico e filmográfico.

sábado, setembro 29, 2018

(DL) «Terra Madrasta» de Jonathan Raban (1996)


«Em 1994, no vigésimo quinto aniversário da alunagem da Apollo, o Washington Post publicou os intrigantes resultados de uma sondagem recente: 20 milhões de americanos pareciam acreditar que a alunagem era uma mistificação encenada pelo Governo no deserto do Arizona, em nome dos benefícios financeiros das grandes empresas que tinham contratos com a NASA. Uma das conclusões secundárias era que as pessoas do Oeste tinham duas vezes mais tendência para aceitar esta teoria conspirativa, o que era um ótimo exemplo de como um ceticismo deformado, levado longe demais, acabava por se transformar em credulidade inocente.

E no entanto se se quisessem provas para sustentar a ideia de que o Governo se metia em contos do vigário desta amplitude, bastaria recordar o projeto de colonização das terras áridas. Em 1909, o Governo tinha realmente largado aquelas pessoas numa extensão de terra que se assemelhava suspeitosamente à superfície lunar. O projeto tinha sido apresentado ao Congresso realmente para lucro das poderosas companhias ferroviárias. Se as pessoas do Oeste manifestavam agora uma desproporcionada desconfiança no Governo e nas grandes empresas, pelo menos tinham na sua história um acontecimento que poderiam brandir triunfantemente como prova do ceticismo das suas suposições.
Saberia o Governo que a terra distribuída seria a longo prazo incultivável e que o projeto acabaria em sofrimento? Duvido muito. Tal como os seus eleitores, os políticos da era Roosevelt acreditavam fervorosamente nos poderes miraculosos da nova ciência agrícola. Os diretores das companhias ferroviárias, como Albert J. Earling e James J. Hill, estavam sob o efeito do mesmo feitiço. O espírito dominante em 1909 era o idealismo otimista, compartilhado equitativamente pelos emigrantes do Oeste e os ditos poderes.
Mas houve real falsidade no modo como o projeto foi publicitado. Os redatores (que provavelmente nunca tinham posto os olhos na pradaria) e os grafistas criaram uma região no papel, tão ilusória como a Árvore das Patacas. A linguagem e as imagens enganadoras das brochuras acabariam por dar razão aos colonos que se sentiam vítimas inocentes de um Governo que estava nas mãos dos maganões da companhia — e este sentimento de terem sido traídos haveria de se manter em ferida através de gerações.» (pág. 342-343, ed. Quetzal)

Há cento e dez anos vagas sucessivas de emigrantes acorreram às vastas extensões do Montana a pretexto de se tornarem proprietários de quintas de uma dimensão inimaginável para quem vinha da miséria que grassava pelos quatro cantos da Europa. Ante a promessa de grandes apoios, quer tecnológicos (o Manual Campbell, sobre as melhores práticas para transformar todas aquelas planícies num enorme vale verdejante), quer em créditos bancários, iludiam-se com um sonho que nunca viveriam.
Quem promovia aquela que viria a revelar-se uma enormíssima burla eram as companhias ferroviárias, desejosas de rentabilizarem o negócio, que as fizera marcar aleatoriamente no mapa as cidades, que lhe serviriam de estações para embarque e desembarque de passageiros e mercadorias.
Grande parte desses colonos zarparam tão só concluíram que a miséria ali padecida era igual ou pior do que haviam anteriormente conhecido. Mas os resistentes ganharam um tal ódio a tudo quanto viesse com o carimbo federal, que se enraizaram num comportamento abertamente fascista. As sinistras Milícias do Montana e os associados da NRA (National Rifle Association ) adotaram o Estado como terreno fértil para a sua cultura belicista. E, quer o Unabomber, quer Timothy McVeigh (autor do atentado do Oklahoma), ali foram preparando as atividades por que viriam a ser tristemente conhecidos.
Não admira que Trump não tenha ali concorrente possível, quando se recandidatar a novo mandato na Casa Branca. Ainda que amistosamente recebido por muitos anfitriões, que o ajudaram a construir a história de uma América nada consonante com a dos miríficos sonhos, Raban não deixou de sentir a silenciosa hostilidade de quantos lhe adivinharam a condição de liberal vindo de uma das elitistas cidades costeiras. A história familiar de dolorosos fracassos demorará muito tempo a aligeirar o ressabiamento de sucessivas gerações de frustrados.

sexta-feira, setembro 28, 2018

(DL) «Survivre» de Frederika Amalia Finkelstein


“Na noite de 13 de novembro compreendi que a guerra podia acontecer no meu rés-do-chão. Uma forma insuspeita de guerra. O medo e a desconfiança tornaram-se banais: vivo à espera do próximo atentado.
Na noite de 13 de novembro, uma geração viu-se a contas consigo própria: os assassinos tinham a mesma idade dos assassinados.
Sobreviver é uma homenagem a esta geração nascida com os ecrãs, sempre a eles ligada e, ainda assim, a viver numa imensa solidão.
Queremos ser livres: por vezes para o melhor, noutras para o pior”
Não é o primeiro, nem quase por certo será o último romance suscitado pelo que sucedeu no Bataclan de Paris há quase três anos. Mas Yannick Haenel, que escreve no também martirizado Charlie Hebdo, considerou-o implacável na violência com que corresponde à do mundo. A protagonista fica tão perturbada com o sucedido, que não consegue evitar a obsessão de passar o tempo ao telemóvel a olhar para as fotografias das vítimas. Custa-lhe a aprender a suportar o insuportável como solução para retomar o curso normal dos dias.
Tendo iniciado o romance quatro semanas depois desse dia de novembro e constatando que o assassino tinha, a exemplo dela, 27 anos, esta neta de judia continua a insurgir-se com a aceitação do inaceitável, como o é por exemplo a implantação de lojas da Hugo Boss nas principais avenidas das cidades, como se todos quisessem ignorado ter sido esse costureiro a criar as fardas das SS nazis.

quinta-feira, setembro 27, 2018

(DIM) “A Casa Junto ao Mar” de Robert Guédiguian (2017)


Trata-se de um dos filmes mais interessantes atualmente em exibição nas salas lisboetas e que conseguiu resistir o suficiente para, estreado há uma semana, ainda dar a oportunidade de ser visto pelo menos nesta que estamos a viver.
Novamente reunidos no restaurante junto mar, que o pai geria, três irmãos reencontram-se para recordar os encantos e as tragédias passadas, sem deixarem de se revelarem atentos por quanto se continua a passar, nomeadamente com os refugiados vindos do outro lado do horizonte, e tão mal recebidos por quem os deveria apoiar.
Há um comboio, que vai passando no viaduto quase por cima do pequeno bairro piscatório, ora para um lado, ora para o outro, lembrando que os ciclos de cada dia vão se repetindo incessantemente. Há amores que acabam, outros que se encetam - em ambos os casos com a diferença de idades a justificar uma e outra situação - e ainda os que duram toda uma vida e se concluem na partilha do definitivo desenlace.
Fica, igualmente, implícita a evidência de utopias, que se esgotaram, mas que nem por isso se pressupõem infundadas, nem que para tal se teimem com pessoas reais e no circunscrito espaço da casa.
É um filme, que começa com a lentidão da vida aparentemente estagnada e com alguns movimentos de câmara desconcertantes. Mas depressa nos ambientamos ao ritmo e sentimos que não pode ser outra a opção para desenvolver a narrativa.
Sobra ainda o facto de, a exemplo de quase todos os títulos de Guédiguian, reunir os atores e atrizes, que se têm sucedendo nos vários personagens que vem filmando: está lá Ariane Ascaride, com quem ele está casado há quarenta e três anos, mas também Jean-Pierre Darroussin e Gérard Meylan, que regressam muito novos (resgatados de filme de há várias décadas!) para nos recordarem o quão novos foram. E nós também!
 

quarta-feira, setembro 26, 2018

(DL) «Florinhas de Soror Nada - A Vida de uma Não-Santa» de Luísa Costa Gomes


Em 1991, durante uma estadia em Sines, entre duas viagens ao Golfo Pérsico para carregar crude num dos superpetroleiros então ainda existentes na frota mercante nacional, a minha mulher levou-me «Vida de Ramon», o romance que Luísa Costa Gomes acabara de publicar.  A leitura, com que me alimentei nos dias de largos mares e céus a dominarem o horizonte, deixou-me surpreendido, senão mesmo desorientado: era o tempo em que Cavaco Silva renovava a maioria absoluta como primeiro-ministro e estava atiçada a tendência para me focalizar na primazia das questões das lutas de classes e da urgência em forçar o determinismo anunciado pela minha absorção das ideias de Marx. O espanto era este: como é que, num mundo tão eivado de injustiças na distribuição de rendimentos, uma escritora escolhia como tema o percurso de um filósofo do século XIII, embora já falecido no século XIV, que muito divulgara a cultura muçulmana até assumir a soberba intenção de converter os infiéis ao catolicismo, acabando morto como mártir?

Uma abordagem aprofundada podia estabelecer paralelismos fundamentados com outros percursos mais recentes, e até bem atuais, em que gente ilustrada foi seduzida por ideias exactamente opostas daquelas que, em fase mais avançada da vida, execraram e combateram. Na época ficou-me essa análise pessoal, que desconhecia se estivera ou não nas intenções da autora, seja de forma mais consciente ou subconsciente.
Quando, meses atrás, iniciámos cá em casa a leitura em voz alta do romance «Florinhas de Soror Nada - A Vida de uma Não-Santa» voltei às questões de mais de um quarto de século atrás, muito embora elas tenham entretanto evoluído como resultado das circunstâncias, que as terão burilado. Mas cedo esse percurso de Teresa, que na puberdade anseia por imitar a dimensão martirológica da sua homónima de Ávila, evolui para uma rebeldia capaz de devolver à terra as inquietações ilusoriamente confiadas aos céus. Lemos sobre santos, que nem sequer conhecíamos, e enriquecemo-nos com uma observação aguda e irónica das realidades vivenciadas pela protagonista.
Ao longo da leitura questionamo-nos como é possível a existência de uma cultura religiosa baseada na aceitação, senão mesmo no desejo do sofrimento, como auto-estrada para o acesso facilitado à recompensa no Além. No fundo, como esse conceito de martírio, une católicos e muçulmanos (estes nas suas vertentes jiadistas!), como se a passagem por este suposto «vale de lágrimas» correspondesse a um mero detalhe no mais importante percurso da Alma pela sua imortal existência. Surpreende anotar como os dogmáticos, que consideram superior a sua crença e a querem impor aos demais, não podem compreender quanto incorrem num dos pecados, que deveriam evitar: a Soberba revelada pelo próprio Lúcifer, quando se revoltara contra Deus.
Essa Soberba é a que, ainda hoje, em Portugal, leva alguns a quererem impedir nos outros, que usem o seu corpo como queiram: interrompendo uma gravidez, casando com alguém do próprio sexo, recorrendo à morte assistida. A arrogante omnipotência dos que querem ser santos, sentindo-se superiores aos demais, é um pecado capital a denunciar, a desmascarar. E esse é um dos muitos méritos do romance de Luísa Costa Gomes, que sobre ele falará quando esta noite, pelas 21.30, o apresentar aos que comparecerem no Clube Gandaia em mais uma excelente iniciativa coordenada pelo António Fonseca.

(DIM) «A Pereira Selvagem» de Nuri Bilge Ceylan (2018)


Posso não gostar que o realizador se demita da obrigação de denunciar o regime de Erdogan, a pretexto de lhe interessarem, sobretudo, as personagens do filme. Essa tendência dos intelectuais para defenderem a arte pela arte, eximindo-se da responsabilidade enquanto cidadãos sempre me indignou. Devo igualmente considerar que, até agora, os filmes do cineasta turco nunca me entusiasmaram, suscitando-me o tédio na sua excessivamente longa narrativa. Mas, olhando para o trailer do filme estreado em Cannes no festival deste ano, somos obrigados a reconhecer a beleza inegável de muitas das cenas. Que justificam a deslocação ao cinema, quando estrear entre nós.
À partida há um jovem universitário, que decide regressar à terra natal - junto ao mar, e como tal culturalmente aberta para o exterior, para o novo! - a fim de repensar o que quer fazer na vida. A tentação da escrita é a mais forte, mas ao focalizar-se na figura do pai, não se arrisca a precipitar a tragédia? A dúvida consome-o, tanto quanto a desilusão amorosa, que lhe abre feridas maiores do que julgava poder suportar. As estações sucedem-se e a iminência da tragédia acompanha-as.
Ceylan começou por ter uma versão que duraria entre quatro horas e meia e cinco horas. A depuração para pouco mais de três horas desbastou-lhe o que considerou dispensável. E tinha três fins possíveis, dos quais conservou dois como alternativas em aberto.
A exemplo de qualquer um de nós o futuro do protagonista equivale ao modo como Ceylan vê a criação do filme: são múltiplos os carreiros, que conduzem ao rio caudaloso, que acaba por constituir a  vida. E existem muitos meandros a contornar sem que os possamos evitar...

(DL) Tomas Espedal e a relação ambígua com Bergen


A exemplo do que se passa entre nós com Lobo Antunes, existe uma campanha internacional em favor de Karl Ove Knausgård, escritor norueguês apresentado como se fosse um génio, mas de facto apenas caracterizado por um umbigo tão inchado quanto o do autor de «Memória de Elefante».
Das bandas norueguesas revela-se bem mais interessante Tomas Espedal, professor da universidade de Bergen que, a exemplo do seu sobrevalorizado compatriota, escreve sobre a monotonia, mas com uma diferença não despicienda: colocando-se à margem do centro do mundo, antes o observando com o distanciamento de quem melhor o quer entender. Por isso mesmo o terrível massacre de Utoya está omnipresente no seu título mais recente: «Bergeners».
O tempo, quase sempre cinzento e chuvoso, constitui para Espedal uma boa explicação para o desânimo, que a todos parece contagiar. Pesa sobre as consciências e fá-las sentir esmagadas, indefesas, deprimidas. Mas o excessivo bom tempo, com sol a rodos, também desconcerta por parecer tão esdrúxulo na vida de quem a ele tanto se desabituou.
A melhor solução para Espedal é sair de Bergen, cidade natal com que mantém uma relação ambígua de amor/ódio. Até diz que ela tende a melhorar sempre que ali se demora o mínimo possível. Quando, pelo contrário, os compromissos o demoram, aproveita a Natureza como paliativo até por estar acessível a curta distância da cidade.
«Bergeners» encontra explicação numa das suas páginas: após a publicação do primeiro livro, foi convocado pelo editor a ir a Oslo. Também natural de Bergen, Glydendal ter-lhe-á dito para se afastar dali tanto quanto possível, porque arriscava-se a vir a ser um «bergener». Seguindo-lhe o conselho cirandou por tantos e tantos lugares, começando o livro em Nova Iorque e concluindo-o em Berlim, vertendo para o papel um registo pessoal sobre as experiências vivenciadas longe de casa, mas escusando-se a adotar o registo do diário. O intuito aparece explicito a meio, quando diz a um amigo: «Não devemos perder-nos num universo inventado e hipotético, numa literatura falsa; o que escrevemos deve ser verdadeiro, e devemos descrever a realidade com seriedade e determinação.»

segunda-feira, setembro 24, 2018

(DIM) «Vidas Secas» de Nelson Pereira dos Santos (1963)


Em 1963, quando o Brasil ainda não se vira condenado à ditadura dos generais, Nelson Pereira Santos assinava um dos filmes mais representativos do «Cinema Novo», recorrendo para tal ao romance de Graciliano Ramos sobre uma família a contas com a sobrevivência no árido sertão. <<<<
Os realizadores davam a conhecer a pobreza extrema sofrida por muitos dos compatriotas do Nordeste, vítimas da exploração dos coronéis e das agruras de um clima hostil.

(DL) Jonathan Raban: «Terra Madrasta»


Em 1919 a grande maioria dos incautos, que haviam acorrido ao Montana, iludidos pelas promessas de ali encontrarem terras férteis para cultivarem e prosperarem, já tinham concluído que haviam caído num logro.  Embora nas décadas seguintes continuassem a surgir grandes deceções por quem julgara ver na América a Terra dos Sonhos, os pesadelos dos que perderam a saúde, e quantas vezes a vida, numa aventura que os deixara ainda mais pobres do que haviam sido no ponto de partida, data pois de muito atrás.
A chuva era escassa, a terra estéril tão só os arados removiam a camada superficial da terra, que lhes começara por parecer promissora e as «soluções» prometidas pelo Manual Campbell, apresentado como divulgação dos conhecimentos tecnologicamente mais avançados para serem bem sucedidos , revelaram-se verdadeiras aldrabices. Há precisamente cem anos um dos empresários mais odiados naquele Estado, que tinha sido promovido como o futuro celeiro dos Estados Unidos, era Hill, o dono da Great Northern Line, a companhia ferroviária responsável pela enganadora campanha publicitária. Os mais imaginativas comparavam-lhe o nome com o quase homófono «Hell», de Inferno.
Quando, seis décadas depois, Jonathan Raban percorreu essas paisagens, encontrou-as desertificadas com ranchos e aldeias fantasmas, por todos abandonados. Em Ismay, que fora vila particularmente animada no início do século XX, pôde assistir ao malogro de uma tentativa habilidosa de ressurgimento ao mudar de nome para Joe de forma a «homenagear» um dos grandes jogadores de basebol  - Joe Montana - que nem sequer se dera ao trabalho de fazer-se aparecido.
O retrato social mostrado no livro é o dessa América dos abandonados pelas detestadas autoridades federais e pelas elites das cidades costeiras, contra quem encontraram forma de se vingarem ajudando ativamente a que Trump chegasse à Casa Branca.

domingo, setembro 23, 2018

(DIM) «O Sorriso de Mona Lisa» de Mike Newell (2003)


Nem o realizador, nem a maior parte das atrizes (salve-se Maggie Gyllenhaal) me mereceriam grande crédito quando, por desfastio, comecei a espreitar para este filme de quinze anos atrás.
Confesso que a atenção, que lhe dediquei não foi muita, porque outras tarefas colaterais me iam ocupando as meninges. Mas dava para perceber que não ia perdendo grande coisa. É que, se o «Clube dos Poetas Mortos» era coisa enxuta, que exigiria outra dedicação, esta tentativa de Julia Roberts imitar Robin Williams acaba por ser coisa estapafúrdia. Porque, logo de início, qual a justificação para que uma azougada liberal californiana ambicionasse ser professora numa das mais conservadoras escolas secundárias do país, a muitos quilómetros de casa? Apenas a vontade de escapar a um namorado um bocado melga?
É certo que o filme «denuncia» o regresso a casa das mulheres que, durante a Segunda Guerra Mundial, haviam ocupado os lugares dos homens nas fábricas de todos os Estados Unidos. Em 1953, com a Guerra Fria como pano de fundo (ui que a Lucille Ball era comunista!) impõe-se às jovens adolescentes a vocação de virem a ser competentes donas-de-casa, sempre respeitadoras da vontade dos maridos. Até porque ver-se-iam brindadas com uma panóplia de eletrodomésticos reluzentes, que lhes daria a ilusão de suprema felicidade.
A pobre da Kirsten Dunst, a quem arranjam de vez em quando uns papéis, que a fazem cair em recorrentes depressões, faz aqui papel de má da fita. Denuncia a enfermeira, que fornece preservativos às colegas, conseguindo o seu despedimento. Repete a graça em relação à nova professora a quem acusa de não cumprir o programa detendo-se excessivamente na arte contemporânea. E até lixa a vida afetiva a uma colega particularmente ingénua, que perde namoro, porque enganada por quem se sente frustrada com o casamento para que a mãe a empurrara.
No final, embora despedida por não se coadunar com a mentalidade ultrapuritana da escola, a efémera professora de Wellesley vê-se vingada ao saber que duas das alunas - uma delas a arrependida delatora! - tratam de ganhar asas e partirem ao encontro do ambiente boémio de Greenwich Village.
Felizmente que a tarefa alternativa não me dava a má consciência de tempo ingloriamente perdido, mas convenhamos que, entre uma ou outra obra prima, somos abundantemente servidos de xaropadas sem nexo.

sexta-feira, setembro 21, 2018

(S) O Allegro da Música Aquática de Händel

(DIM) Viver na linha do Equador


A programação do canal ARTE de amanhã, sábado, dia 22 de setembro, apresentará as mais de dez horas do projeto «Viver na linha do Equador», série documental de  Kevin McMahon e Christian Schidlowski, que demonstra não só quão fictícia é a separação entre os dois hemisférios definida por essa linha, como tão ricos são os paraísos existentes nos 40 mil quilómetros, que ela percorre e dos quais só 20% estão emersos..
Desde tempos imemoriais que os marinheiros celebram essa passagem com praxes tão controversas quanto as dos caloiros das nossas Universidades. Felizmente que, no meu caso, essa transição só aconteceu após ano e meio passado sobre a estreia em navios mercantes, pelo que ninguém deu por essa novidade. Escapei assim a um tipo de cerimónia iniciática contra a qual sempre me declarei contrário e em que nunca viria a participar.
Maldivas, São Tomé e Príncipe, Kiribati, as ilhas Galápagos são alguns dos espaços geográficos onde os realizadores captarem os usos e costumes humanos e o estado de sustentabilidade dos ecossistemas. Em terra, no mar ou nos céus, as imagens de aprimorada alta definição dão-nos conta de como se estão a repercutir as mudanças climáticas em tais longitudes.


quinta-feira, setembro 20, 2018

Para acabar de uma vez por todas com o Invejoso, o Delirante e o Pedante


Foi François Truffaut quem disse um dia só escrever sobre os filmes de que gostava, resguardando-se no silêncio quando assim não sucedia. Há também aquela situação clássica do pai moralista que manda o filho só abrir a boca para dizer bem de alguém, poupando-se ao exercício da maledicência.

Como sempre preferi Godard a Truffaut e o meu pai nunca me deu conselhos, que justificassem que os seguisse, dou-me ao prazer de dedicar um texto de hoje a execrar três dos meus ódiozinhos de estimação, que me dão o proveito de aliviarem o fígado do desagradável excesso de bílis, sempre que dou largas aos meus maus sentimentos a seu respeito.
O primeiro é António Lobo Antunes, escritor que estimei nos primeiros romances, mas cada vez mais esconjurado à medida, que ia publicitando o seu próprio odiozinho por José Saramago. Ora, para mim, dizerem mal do autor de «Ensaio sobre a Cegueira» ainda causa maior indignação do que sentiria um fiel súbdito da Monarquia inglesa perante quem lhe quisesse afiançar alguma das pícaras estórias de alcova em que a família de Isabel II é fértil. A partir de certa altura deixei de nomear Antunes pelo nome passando a ser designado como o «Invejoso», sobretudo pela autoconfissão da raivinha mesquinha, que lhe dera ao saber que o rival ganhara o almejado Nobel.
Vale-nos que ele continua a dar provas dos seus baixos instintos como o confirma na crónica desta semana na «Visão» em que escreve preto-no-branco : “Tenho imensa inveja dos pintores porque a gente pode ver o que estão a fazer, enquanto aquilo que eu faço são palavras em folhas de papel.”
Se mais provas fossem necessárias o invejoso tratou de as reconfirmar...
Outro exemplo é o do antigo ministro da Agricultura, António Barreto, conhecido por ter dado cabo da Reforma Agrária, não hesitando em enviar contingentes policiais para desocupar à bruta os latifúndios destinados a serem devolvidos aos seus antigos exploradores. Também o ex-socialista, que se foi orientando tanto para a direita, que depois de caucionar o governo revanchista de direita liderado por Sá Carneiro, continuou no seu afã reacionário, não me admirando que um dia destes o vejamos a cotejar Carmona Rodrigues junto de Cristas ou a dar a mão ao arrivismo de Santana Lopes.
Se o chamo, porém, à colação foi por, no «Horas Extraordinárias» (RTP2) de ontem ter surgido a debitar umas tolices a propósito das fotografias feitas no Mosteiro da Batalha, mostrando-se ufano de até identificar na sua estatuária alguns índios do Brasil. Ora, tendo em conta, que o monumento foi construído entre o final do século XIV e o início do seguinte, é espantoso como o Barreto nele «viu», quem só chegaria ao conhecimento da corte portuguesa no início do século XVI.
Talvez por ser casado com a Mónica, que ainda há pouco se gabava de ter sido uma miúda toda gira há alguns anos atrás, os delírios de Barreto não deixam de ser risíveis.
Estava ainda surpreendido com a «descoberta» do sociólogo tão apreciado pela família do Pingo Doce, quando a Teresa Nicolau, ao despedir-se, faz a promoção de um livro de poemas de Vasco Graça Moura, de quem afiança sentir saudades. Aí a minha boca abriu-se de espanto:  saudades de um pedante, que dedicava grande parte do seu tempo a escrever prosas torpes sobre a esquerda em geral e os socialistas em particular? Vade retro! Não há versos nem traduções que o poupem ao merecido esquecimento.