segunda-feira, maio 16, 2016

DIÁRIO DAS IMAGENS EM MOVIMENTO: «I, Daniel Blake» de Ken Loach

De entre os filmes que têm estado a ser apresentados em Cannes um dos que mais me interessa é “I, Daniel Blake” do octogenário realizador inglês Ken Loach.
Vem de antes do 25 de abril a minha curiosidade pelas suas propostas cinematográficas, quando lhe conhecia a denúncia da prática de uma psiquiatria destrutiva capaz de reduzir uma jovem saída da adolescência a um estado quase vegetal («Vida em Família»). Nestes quarenta e cinco anos, entretanto, decorridos, nunca ele deixou de ser um cineasta de causas, fazendo da criatividade uma arma contra as iniquidades e injustiças.
No filme deste ano ele regressa ao tema dos desfavorecidos, que a sociedade inglesa tende a silenciar, ou seja os que foram vítimas da globalização e das políticas austeritárias.
Quase quixotesco no seu combate de sempre, sempre recusando ceder à facilidade, Ken Loach traça aqui uma espécie de testamento porque, se já no filme precedente, aventara a possibilidade de se tratar do derradeiro, é muito possível que seja «I, Daniel Blake” a constituir esse marco definitivo.
A razão para ter investido um último esforço na realização deste filme talvez se explique pelo facto de Daniel Blake ser um alter ego de si próprio. Trata-se de um velho indignado, decidido a bater-se pelas suas convicções até mais não poder. Mesmo sabendo-se num combate desigual. De um lado temos um carpinteiro viúvo e doente do coração, impossibilitado de continuar a trabalhar. Do outro uma administração semiprivatizada (ao gosto do que pretenderia Mota Soares aqui instituir!), que entrou numa deriva persecutória e perversa contra os «subsidiados», arranjando todos os alibis para os privar de qualquer apoio social.
Dos telefonemas intermináveis aos pedidos contraditórios, das respostas obtusas às situações absurdas, «I, Daniel Blake» insere-nos num calvário kafkiano.
Às vezes quase chegámos à dimensão da comédia tão ridículas são as exigências administrativas, que o protagonista desmonta na sua insensatez. Mas nunca Loach nos deixa perder de vista o facto de se tratar de uma questão de vida ou de morte, em que a fome e a miséria, as humilhações e o desespero da exclusão estão omnipresentes.
As personagens vão resistindo consoante podem, com desalento contínuo, mas igualmente com um enorme sentido de dignidade.
Em Cannes a imprensa incensou as interpretações de Dave Johns no papel principal e da atriz, que interpreta o papel de uma mãe solteira a quem lhe vale a solidariedade daquele desconhecido, que recusa ser visto como “cliente” ou “utilizador” porque sente-se no direito de ser tratado como um cidadão.

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