domingo, abril 26, 2009

Prokofiev e Lina

Na audição do «A Propósito da Música» do Alexandre Delgado na Antena 2 surge a oportunidade para saber algo mais sobre a obra de Prokofiev, tendo como argumento a sua 7ª Sinfonia, composta em 1947, numa época particularmente difícil para ele e para os principais criadores soviéticos.
De facto, por essa altura, estava atiçada a luta dos ideólogos do regime contra quem apodavam de «formalistas», porque se interessariam mais pela forma do que pelo conteúdo do que faziam. Ora, para Jdanov, o responsável estalinista pelas áreas culturais, toda a obra de arte só possuiria sentido se se orientasse para a mobilização das massas em prol dos objectivos do regime.
Quem fizesse arte pela arte estaria sujeito a ser considerado um inimigo do regime. E a sofrer as inerentes consequências...
A esse título Prokofiev estava particularmente exposto, porquanto vivera durante muito tempo no estrangeiro, até regressar a Moscovo em 1936, e continuava a manter vivo um enorme prestígio além fronteiras.
Para os que lhe invejavam esses sucessos, Prokofiev era um alvo particularmente apetecível. Embora ele não lhes facilitasse a tarefa, ao acomodar-se à composição de diversas obras (consideradas menores!), que satisfariam as pretensões propagandísticas do partido!
Isso não bastou para evitar a dramática situação da sua primeira mulher, Lina, que renitentemente acedera a acompanhá-lo no regresso a Moscovo e aí viria a ser presa e acusada de espionagem. Apesar de, entretanto casado com Mira, Prokofiev jamais se livrará da consciência de culpa de ser o principal responsável pela queda em desgraça dessa mulher a quem amara e que, só em 1956, se viria a libertar dos campos de trabalho siberianos.
Prokofiev já não veria esse momento, porquanto morrera três anos antes, precisamente no mesmo dia em que José Estaline também desapareceu.
Apesar de exemplos como estes contribuírem para não alimentar grandes ilusões sobre a bondade do regime soviético, também me continuarei a insurgir contra quem insiste em o ver numa mera lógica maniqueísta sem sequer tomar o cuidado básico de situar esse tipo de injustiças no seu devido contexto histórico.
Se à distância se podem arriscar juízos de valor, no momento em que tais momentos eram vividos, nenhum governante seria capaz de vislumbrar qual a política mais eficaz no instante em que teve de a estratificar...

Fazil Say-Turkish March

A Marcha Turca foi uma das minhas portas de entrada na música clássica, ainda andava a polir os bancos das salas do liceu de Almada nos idos anos 60.
O pianista Fazil Say pega no tema e dá-lha a volta à sua maneira.
Não é do meu inteiro agrado, mas simpatizo com a intenção de fugir às convenções e dar uma nova leitura de um autêntico canone.

domingo, abril 19, 2009

Recordar Terêncio

Terêncio terá vivido apenas uns 25 ou 26 anos, mas deixou para a posteridade um conjunto de sentenças inesquecíveis, que entraram no nosso discurso com o peso daquelas coisas que sabemos que se dizem com a convicção de já terem sido ditas por alguém.
Há uns anos, quando iniciava uma pós-graduação, um professor questionava-me das razões para ali estar a fazer aquele curso em particular. E eu respondi com a pretensão de me querer sobrevalorizar em relação ao meu verdadeiro valor:
- Eu sou homem e nada do que é humano me é estranho!
O meu interlocutor, homem sapiente, exultou com a possibilidade de falar de Terêncio, o autor de tal boutade.
Não sei se já alguma vez associara tal frase a esse autor, mas ficou-me de então a obrigatoriedade em conhecer algo mais sobre este dramaturgo, que viveu em Roma no II século a.C.
Foi a oportunidade para me confrontar com outras frases de tão elevado significado quanto aquela. Por exemplo a constatação de que não existem ninguém mais próximo de cada um de nós do que nós mesmos. Lembrando que, mesmo com quem amamos e consideremos nossa alma gémea podemos encontrar uma tal identificação com nós mesmos. Devendo reconhecer que «somos orgulhosos ou humildes consoante a maneira como os negócios nos correm»
Ou das vantagens de se seguir o princípio: «Aprende com os outros a experiência que te pode ser útil».
Mas é um risco falarmos de mais, porque «quem fala o que quer ouve o que não quer» e «o obséquio produz amigos; a verdade, ódio».
Mas, mesmo neste último caso ele defende a necessidade de »experimentar todos os caminhos antes de chegar ás armas», mesmo sabendo que «a sorte sorri aos fortes».
A justiça não é muito bem vista por Terêncio que constata como a sua inflexibilidade conduz, amiúde às maiores injustiças. Até porque «tantas cabeças, quantas sentenças: cada um tem o seu modo de ver».
E, quando somos injustos ou maus, obedecemos muitas vezes aos ditames do hábito. E muitas vezes «de um mal deriva outro».
Terêncio dedicou-se também a apreciar a aquisição dos saberes: «saber como se faz uma coisa é fácil; fazê-la é que é difícil» embora «nada é tão difícil que, à força de tentativas, não tenha resolução». Contrapondo que «nada é tão fácil que, feito de má vontade, não se torne difícil».
Em tão pouco tempo de vida, pode-se dizer que Terêncio deixou escola.

Despudoradas afirmações

O discurso de Cavaco Silva em recados ao Governo tem duas vias de interpretação possível. Por um lado o da falta de pudor de quem lançou por diante um programa de privatizações, que muito aproveitou aos empresários em que se apoiava, falta ao actual Presidente da República a legitimidade moral para se afirmar agora em impoluto e virtuoso crítico das ligações da classe empresarial ao Governo.
Para quem não tem memória curta fica a noção de associar ao inquilino de Belém o paralelismo com o conhecido Frei Tomás, para quem era melhor atermo-nos ao que diz, do que ao que faz.
Mas, noutra via de interpretação desse discurso - o do bota-abaixismo, que muito justamente mereceu o repúdio do Primeiro-Ministro - importa sublinhar o papel activo assumido pelo Presidente em relação aos embates políticos próximos.
Conhecido amigo da líder da Oposição e enchendo a sua Casa Civil de gente oriunda da direita, Cavaco aparece a condicionar o livre arbítrio dos eleitores para se pronunciarem pela ratificação das políticas do Governo ou pela sua condenação. Querendo influenciar no segundo sentido.
Esta inflexão em relação a uma pretensa neutralidade apartidária acaba por comportar as suas vantagens: custaria a quem sempre considerou a sua eleição um anacronismo histórico (a exemplo de Durão, ele é o paradigma de um passado irreversível!) vir a ter de o plebiscitar para um novo mandato!

1. Haydn: The Seven Last Words of Christ / Jordi Savall

Por causa da época pascal tivemos disponíveis diversas interpretações das Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, obra composta por Joseph Haydn em 1796 a pedido de um dos principais responsáveis clericais da então riquíssima cidade de Cadiz para servir de acompanhamento musical às cerimónias religiosas da Semana Santa.
Até um ateu impenitente como me sinto tem de se render à solenidade de uma música pensada para potenciar a comoção dos crentes perante o sacrifício do seu ídolo no monte do Calvário. E conclui-se o óbvio: não é obrigatória a rendição ideológica a uma forma absurda de ver o mundo para aderir incondicionalmente à grande música!

sábado, abril 18, 2009

Recordar luta de há 40 anos

Passaram ontem quarenta anos sobre o acontecimento, que esteve na origem da Crise Coimbrã: em 17 de Abril de 1969 numa das cerimónias corta-fitas em que o regime se fazia representar por Américo Tomás e por José Hermano Saraiva, o então Presidente da Associação Académica de Coimbra, Alberto Martins, pediu para tomar a palavra em nome dos estudantes. É claro que não lhe foi concedida, acabando por ser preso naquela mesma noite.
Durante os meses seguintes as aulas estariam paradas e a cidade ocupada por polícias fardados e à paisana. Mas o impacto dessa luta estaria a criar raízes para a Revolução de Abril cinco anos depois.
Dessa época sobram memórias de quem viveu as emoções de se sentir no fio da navalha, entre o medo e a coragem de resistir. Fica a demonstração da heroicidade do actual líder parlamentar do Partido Socialista e a lembrança de como Hermano Saraiva nunca deixou de ser o que já então era: um fascista sem vergonha!

Vítimas da mentalidade salazarista

A curiosidade de um contínuo num armazém de Queluz permitiu a descoberta de mais de duas mil pastas de documentação da Presidência do Conselho de Ministros entre 1938 e 1957 e esclarece mais alguns aspectos do comportamento de Salazar à frente da ditadura do Estado Novo.
Um dos aspectos melhor esclarecidos por tal documentação é o confirmar da autoria do ditador na grande maioria das principais decisões políticas de então. Até sobre os fatos de banho autorizados nas praias portuguesas. Como agora se comprova, a decisão de só permitir fatos de uma só peça e de incrementar a vigilância dos areais pelos detestados cabos de mar proveio de tão provinciana mentalidade. A quem custava a entrada em força de alguns aspectos da modernidade de então oriundos dos estrangeiros, que aqui vinham buscar refúgio da guerra então em curso na Europa…
Para as gerações mais novas será difícil compreender o quanto perdura nos mais velhos os efeitos suscitados no período fascista pela contínua opressão aos seus anseios de liberdade.
Houve quem fizesse perdurar uma certa rebeldia e continue a indignar-se com a permanência de pequenos ditadores no seio das nossas imperfeitas democracias. E houve quem, na época salazarista, tenha enfiado a carapuça e mantenha a mentalidade de quem foi feito em ceroulas…

domingo, abril 12, 2009

Porque devem os bancos ser nacionalizados?

No «Monde Diplomatique» Serge Halimi aborda a crise económica mundial resultante da criminosa gestão dos bancos privados desde a viragem dos anos 80. Quando começaram a emprestar cada vez mais, apesar de deterem fundos próprios comparativamente menores. Hoje é fácil concluir que, no final de 2007, havia bancos a emprestarem trinta vezes mais dinheiro do que o detido nos seus depósitos.
Daí que bastou a insolvência de alguns desses créditos para todo o sistema financeiro tremer como se se tratasse de um castelo de cartas prestes a ruir.
Hoje até o insuspeito «The Economist» defende a impensável nacionalização dos bancos como forma de evitar uma previsível calamidade.
Mas, conclui Halimi: « No entanto parece, logo que os bancos forem purgados com o dinheiro dos contribuintes, deverão ser devolvidos aos seus accionistas. Tratar-se-ia, em suma, de fazer a limpeza da casa para a restituir a quem a saqueou. Mas porquê? Sistemas bancários nacionalizados impulsionaram, com custos baixos, décadas de expansão. De que balanço comparável podem de facto orgulhar-se os bancos privados?»

sábado, abril 11, 2009

A DECADÊNCIA DO CLERO

As notícias vão-no confirmando com uma regularidade, que só reitera uma tendência irreversível: há cada vez menos padres em Portugal e, à falta de quem com propriedade lhes ministre as cerimónias religiosas, os crentes sujeitam-se aos leigos e aos diáconos. Para adiar o que vai constituindo uma evolução do relacionamento com a transcendência ou com a sua definitiva rejeição.
É difícil - no nosso século tão científico e tão caracterizado pela realidade palpável em detrimento da sugerida por mitos e lendas - manter crenças metafísicas, quando tudo tende a negá-las. A começar pela forma como o Vaticano permanece de cabeça enterrada na areia e continua a rejeitar os preservativos, as experiências genéticas e até a misericordiosa eutanásia a quem nela poderá encontrar um fim para o sofrimento.
Conquanto o fim de tais crenças mistificatórias não dê ensejo à afirmação de outras tão falsas, mas muito mais preconceituosas do que estas!

sexta-feira, abril 10, 2009

Jordi Savall conducts Haydn, The Seven Last Words of the Christ - medici.tv

As Sete Últimas Palavras de Cristo, obra de Haydn, interpretada pelo Concerto das Nações sob a direcção de Jordi Savall, é um belíssimo espectáculo. A música é sóbria como convém a um tema próprio da Semana Santa.
Na Mezzo, esse espectáculo registado em Cadiz, integra imagens das procissões andaluzas em que mascarados de roxo ou de branco em estilo Ku Klux Klan assumem papel determinante.
Enquanto director de orquestra, Savall é aquilo que dele se conhece: tão competente, quanto contido!

quarta-feira, abril 08, 2009

Recordar Jacques Tati

Uma das muitas exposições actualmente a decorrer em Paris é dedicada ao realizador Jacques Tati, esse realizador que descrevia o seu método como exigindo um pouco mais de atenção e de imaginação por parte do espectador, tanto mais que, filiando-se na escola dos grandes filmes cómicos de Hollywood, ele sentia-se não como o tio, mas o sobrinho de todos esses grandes actores e realizadores.
Mas a frase que melhor poderá caracterizar Tati é aquela em que ele confessava jamais se conseguir entediar na sala de espera de um aeroporto, porquanto aí encontrava tantos motivos de atenção.

domingo, abril 05, 2009

Cornucópia: «A Tempestade»

Está a respirar-se um tempo novo. Pelo menos é o que se depreende do que vamos podendo ver nos palcos portugueses.
Semanas atrás tivemos a oportunidade de ver a proposta de uma revolução activa contra as injustiças através de «A Mãe» de Brecht na Culturgest. Agora é a Cornucópia, que leva à cena uma das peças mais optimistas de Shakespeare.
De facto, se existe opressão dos senhores sobre os escravos e sobre os espíritos, todos eles serão libertos no final, quando se corrigem todas as malfeitorias até então concretizadas.
É certo que todo o registo da peça é fantasioso com Próspero a dotar-se de meios sobrenaturais para conseguir vingar-se de quem o destronou do Ducado de Milão e quase o matou juntamente com a filha Miranda.
Ariel, o espírito por ele manipulado, será o artífice de todas as vicissitudes pelas quais se juntam na mesma ilha os súbditos do Rei de Nápoles, incluindo o jovem filho deste e o escravo Caliban, que anseia pela liberdade embora vá buscando-a em sucessivas mudanças de senhor. Na interpretação desse emblemático personagem está Nuno Lopes, uma vez mais a demonstrar o seu enorme talento em desempenho muito orientado para a sua vertente mais física.
Embora com uma vertente dramática, a peça conta com momentos de eficiente comicidade sobretudo quando surgem em cena o dispenseiro beberrão e o bobo Trinco.
Curiosa igualmente a opção de atribuir papéis muito secundários a quem já conheceu na Sala Manuela Porto desempenhos bem mais relevantes - Ricardo Aibéo, Rita Durão, Duarte Guimarães ou Márcia Breia. Demonstrando-se que os actores de excepção tanto o revelam em papéis principais como noutros mais secundários.
Uma referência ainda para o notável trabalho de Cristina Reis na concepção do espaço cénico, utilizando eficazmente a enorme profundidade da sala. Dividido em zonas diferenciadas (os navios, a gruta, a floresta, etc.) esse espaço acaba por permitir uma grande agilidade no movimento dos actores, que correm, amiúde, da boca de cena até aos bastidores, quando daquela se retiram.
A mensagem final da peça é bastante adequada a esta época: serão sempre exequíveis os nossos objectivos se para eles trabalharmos porfiadamente com toda a nossa determinação...

sábado, abril 04, 2009

ASIA ARGENTO: «O LIVRO DE JEREMIAS»

Não se trata de filme particularmente recomendável pelo tema ou pela qualidade, mas porque se tratava de uma realização de Ásia Argento subsistia alguma curiosidade para verificar se teria passado para ela algum do talento do seu conhecido pai, Dário, que em pretéritas décadas foi acumulando filmografia respeitável no género do terror.
A conclusão foi definitiva: «O Livro de Jeremias» é filme para rapidamente esquecer apesar do incómodo suscitado por essa mãe demasiado egoísta e irresponsável para se mostrar à altura dessa condição.
O filme começa com uma citação do livro bíblico, que dá lhe dá o título: «O coração é, sobretudo, tortuoso e mau. Quem o pode conhecer?».
Logo damos com um miúdo de quatro ou cinco anos retirado à custódia dos seus pais adoptivos - que reconhecidamente o amavam - para ser devolvido à verdadeira mãe.
À primeira oportunidade ele ainda foge de casa para regressar àquela que continua a considerar a sua, mas a polícia lá está para o apanhar e devolver à detestada megera.
Sem outra ideia para o reter consigo, ela levá-lo para longe, de carro, e vai induzindo-lhe comprimidos de efeitos alucinantes.
Quando acorda na manhã seguinte, Jeremias dá consigo num sórdido quarto de hotel, aonde a mãe incita o cliente dessa noite a açoitá-lo por ter urinado na cama.
Nas semanas seguintes Jeremias entra numa vertigem de emoções num ambiente em que o sexo, as drogas e o álcool estão sempre presentes. Quando a mãe casa com um namorado de passagem, abandonam-no para irem passar um fim-de-semana a Atlantic City.
No regresso a casa, sozinho , porque Sarah já o abandonou, o efémero padrasto viola Jeremias, que vai parar ao hospital para ser operado ao arrombado traseiro.
Entregue à custódia da avó materna, que vive na Virgínia num ambiente claustrofóbico, porque regido pelo fundamentalismo religioso do marido, Jeremias adapta-se às regras desse novo lar aprendendo a usar a mentira como forma de sobreviver à ameaça de sucessivos castigos.
Três anos depois, Sarah volta para o raptar, levando-o consigo no camião, que partilha com o proxeneta de serviço. A sua deriva mental está cada vez mais incontrolável. Mas, entre essa loucura e o regresso à Virgínia, o rapaz acaba por escolher a fuga com a progenitora…