sábado, fevereiro 27, 2021

(DIM) Conteúdos ou Filmes?

 

1. Não é que Martin Scorcese se tenha poupado a colaborar com as plataformas, que critica no artigo da Harper’s Magazine de março -  Il Maestro: Federico Fellini and the lost magic of cinema  - mas ele tem plena razão quando aventa a possibilidade do cinema desaparecer por obra e graça da Netflix, da HBO, da Amazon, da Apple e outras ofertas de filmes para ver em casa. Com uma disponibilidade tão variada de imagens cinematográficas quem ainda arriscará idas às salas de cinema quando elas reabrirem? Os cinéfilos não deixarão de comparecer ás salas em que veem concretizado o ritual de verem filmes projetados em ecrãs onde escapem ao som das pipocas, mas os outros, os que foram adquirindo hábitos caseiros de consumirem imagens que não lhes deem grande trabalho às meninges, será que voltarão?

Scorcese não tem grande fé nesse regresso e acredita num antes e num depois da pandemia. Mas reconhece que, nessas plataformas, os filmes transformaram-se em conteúdos mais ou menos estereotipados, raramente imbuídos da originalidade e beleza dos objetos artísticos. E, de facto, mesmo pensando em sucessos como Roma, O Irlandês, Da 5 Bloods ou, mais recentemente, Mank, alguém sugere que se situarão nas filmografias respetivamente de Alfonso Cuáron, do citado Scorcese, de Spike Lee ou de David Fincher ao mesmo nível de importância dos filmes por eles rodados para cinema? Não nos andamos a iludir com o consumo de filmes em streming, presumindo dar-lhes a mesma importância dos que atribuímos aos que costumamos ver em sala sem que isso faça algum sentido?

Enquanto arte o cinema já passou por muitos desafios. O aparecimento da televisão chegou a justificar muitas previsões quanto ao fim da exibição de filmes em salas de cinema. Depois, com as emissões a cores esses vaticínios repetiram-se. De cada uma dessas vezes o cinema reinventou-se, soube resistir aos desafios, mesmo que perdendo a condição de grande espetáculo popular que chegou a justificar enormes plateias e balcões capazes de albergarem centenas, senão mesmo mais de mil pessoas em cada sessão.

Talvez a solução resida no engenho dos programadores em oferecerem aquilo que os algoritmos com que as plataformas detetam o «gosto» das maiorias não conseguem imaginar. Por exemplo o sucesso recente dos festivais de cinema tipo Indie ou DocLisboa com um tipo de filmes que nada têm a ver com essas maiorias. E continuando a cuidar do cinema como oferta artística em vez de os disponibilizarem nessa lógica de conteúdos estandardizados.

Talvez o cinema possa replicar a célebre frase de Mark Twain, quando houve quem se precipitasse a noticiar-lhe o passamento. Na realidade os receios de Martin Scorcese podem estar profundamente exagerados...

2. Vale a pena, a essa luz, apreciar um dos mais recentes títulos disponibilizados pela Netflix: Tudo pelo Vosso Bem de J. Blakeson até justificava, à partida, o interesse por abordar um escândalo real ocorrido nos Estados Unidos, quando foram desmascarados e condenados em tribunal os cúmplices de uma rede de assistentes sociais, médicos, donos de lares de terceira idade e juízes, que davam idosos endinheirados como senis, colocando-os sob a tutela estatal, para lhes esvaziar as contas bancárias e vender-lhes as propriedades ao mesmo tempo, que vedavam o acesso ao convívio com os familiares.

É desse ponto de partida, que o filme parte, mas o que se segue é ideologicamente repulsivo, porque não se visa aqui denunciar esse esquema fraudulento e demonstrar como ele foi desmascarado e erradicado. Blakeson, que não demonstrara grande talento até aqui, quer demonstrar a sua «verdade»: numa sociedade onde alguns são presas e os outros predadores, mais vale ser como estes  por não haver outra forma para ascender socialmente e fugir da pobreza.

A partir daí passa a valer tudo não havendo quem, de entre os personagens, tenha o menor escrúpulo. Nem mesmo a suposta vítima, essa Diane Wiest, que podemos lamentar ver associada a algo assim, mas demonstra que nada esqueceu ao mostrar-se particularmente demoníaca na expressão que endereça a Marla, quando lhe dá conta do erro em que incorreu ao tomá-la como alvo da sua vigarice. Moralmente abjeto, nem sequer se redime, quando acaba com a concretização de um ato de justiça. Porque a mensagem que fica é a de vivermos numa sociedade em que vale tudo pois saibamos ser «habilidosos» e poderemos enriquecer à conta dos que não conseguem evitar a condição de carne para canhão.

Se quisermos um exemplo de conteúdo sem qualquer valia artística aqui fica um eloquente exemplo... 

quinta-feira, fevereiro 25, 2021

(DIM) A Terra Vermelha, Diego Martinez Vignatti, 2015

 

Eu pecador me confesso: quando olho para o chamado cinema militante costumo pôr o espírito crítico um pouco de lado e, mesmo maniqueístas, tenho prazer em assistir a histórias em que os humilhados e ofendidos deste mundo reagem heroicamente contra quem os explora. Daí a simpatia com que encaro este filme de Diego Martinez Vignatti embora não me fosse difícil encontrar matéria para o minimizar se para tal estivesse virado. A verdade é faltarem-nos filmes, que nos mantenham acordados para as vilanias praticadas neste mundo e que fazem almejar por um outro tipo de sociedade definitivamente pós-capitalista.

Em La Tierra Roja temos um belga a comandar uma exploração de madeira na floresta argentina da região de Missiones, indiferente aos produtos agrotóxicos aplicados nos terrenos desmatados, onde crescerão espécies não autóctones destinadas à indústria da celulose. Bem tenta a amante, Ana, instiga-lo a ganhar consciência dos danos ali praticados contra a natureza, que ele mais atenção dedica à equipa de rugby, que treina nos tempos livres, e com a qual ambiciona tornar-se campeão regional.

Não é por acaso que esse jogo de equipa é escolhido para prenunciar a transformação do protagonista: se ele começa por surgir-nos como um homem que apenas presta contas a si mesmo é essa integração no coletivo, que presume ser o seu destino.

A noção do que está em causa desperta-o quando começa a sentir os sintomas das doenças, de que outras pessoas da região também se queixam. O médico a que recorre é um dos líderes da contestação ambiental à atividade da multinacional para que trabalha e também a primeira vítima dos jagunços contratados para calar a crescente contestação popular.

Essa morte não refreia a contestação, antes a empola, com novos líderes a secundarem Ana, que passa a ser o rosto mais visível dessa luta e a que Pierre acaba por aderir. Os embates com a polícia tornam-se mais violentos e, num deles, ela acaba por ser assassinada.

Embora Vignatti deixe então de ser tão demonstrativo como até aí, presume-se que essa morte porá definitivamente em causa o negócio poluente, que a generalidade da população rejeita. Assim o pressupõe o isolamento a que é votado o governador, que servia de suporte político àquela atividade. E ganhando o jogo decisivo na final regional, Pierre confirma que as vitórias decorrem da capacidade de levar um grupo a organizar-se e a bater-se por um objetivo concreto.

Para além da história há característica que melhor definirá a persistência do filme na memória de quem o vê: o engenhoso trabalho de sonoplastia, que nos leva a dar singular importância aos sons do crepitar do fogo, das máquinas a trabalharem, dos troncos das árvores a estalarem antes de se abaterem no solo, dos gritos dos homens e dos animais.

É sem remorso que esqueci o que poderia não ser tão encomiástico no filme, porque no fundo fica a sensação de ninguém poder calar a voz à classe operária! 

A diferença entre literatura e Literatura

 

Andava pelos meus vinte e poucos anos, quando comecei a ser assíduo leitor dos romances de Stephen King. Fazia longos períodos de embarque no alto mar e a leitura por eles proporcionada era ideal naqueles dias de esforços mais exigentes em que a cabeça pedia para não ser confrontada com ideias complexas ou prosas rebuscadas.´

Já aqui lembrei a noite em que saí de Buenos Aires em direção a Mar de la Plata e passado o jantar, peguei na versão espanhola de Cujo, acabada de adquirir numa livraria da Avenida 9 de Julho, só o largando na última página, quando estava a ser chamado para as manobras de entrada no porto de escala na manhã seguinte.

Desde então foram muitos os livros que dele li, muitos os filmes deles retirados que vi, mais ou menos fiéis ao que, enquanto leitor criara no meu imaginário, ganhando simpatia por quem, politicamente, se comprometia com a agenda política do Partido Democrático.

Acontece, porém, que o enfado se foi instalando, e prevalecendo a ideia de sempre encontrar mais do mesmo. E, pior ainda, com o escritor a dar-se ares doutorais de quem muito tem a ensinar aos aprendizes de feiticeiro, igualmente, decididos a replicar-lhe os passos na criação literária. Não sendo um grande escritor - da estatura de um Philip Roth, de um Don DeLillo ou de um Paul Auster só para referir três dos que mais me agradam na literatura norte-americana contemporânea - King passou a comportar-se como se assim fosse.

Que escreve com a rapidez do bip bip a escapar-se das armadilhas do coiote ninguém duvida. Assim como encontrou engenho de fazer coincidir os fins dos capítulos com os momentos de maior ansiedade ou tensão sentidos pelo leitor. Nas suas histórias o quotidiano mais banal transforma-se num espaço de inquietante estranheza.

O problema é que o seu método tende a repetir-se sem surpresas: uma situação inicial traumatizante, duzentas ou trezentas páginas em que nada de relevante se passa a não ser as redundantes caracterizações dos espaços sempre habitados por personagens estereotipados, sem grande substância, e um final em crescendo numa intensidade que coincide com as derradeiras páginas, se não mesmo com a derradeira.

Que continua a ser leitura agradável para momentos em que as meninges requeiram maior lentidão nos fluxos entre os neurónios, não ignoro. Que seja literatura com maiúscula, decerto que não!