sexta-feira, dezembro 30, 2022

A clonagem de quem se perdeu

 

Nunca fui um entusiasta dos filmes de, e com, Julie Delpy. Passei por uns quantos e nenhum me deixou recordação digna de evocar enquanto experiência memorável. Razão para ter limitado as expetativas quando iniciei a descoberta de Zoe, o filme que rodou em 2018 e estreou de forma quase clandestina no ano seguinte, furtando-o ao circuito prestigiado dos festivais de cinema. Talvez por pudor perante um tema muito pessoal já que Delpy verteu para o ecrã a má experiência de custódia partilhada do filho Leo, quando se divorciou do compositor Marc Streitenfeld em 2012?

 Na primeira das três partes em que o filme se divide é esse o tema: o relacionamento tumultuoso entre Isabelle e James apesar de se obrigarem a conviver por partilharem a custódia da filha Zoe de sete anos.

Será essa a parte mais interessante do filme, que perde interesse, quando a miúda morre depois de uma hemorragia cerebral causada por uma queda num parque infantil. A partir daí, e a pretexto de almejar a recriação da filha por clonagem, Isabelle percorrerá uma via sacra, indo além das fronteiras da legalidade, para ver-se devolvida de quem não terá amado tanto quanto pretendera, demasiado ocupada profissionalmente e com o novo amante.

Escusando-se à abordagem ética a respeito da clonagem de pessoas - aqui só tangencialmente referenciada! - o filme tem a ver com o relacionamento entre pais e filhos, quando a relação conjugal se estilhaça e as crianças ficam na terra-de-ninguém entre a casa de um e a de outro. Com o egoísmo maternal a sobrepor-se ao do parceiro, que sempre utilizara a filha como pretexto para culpabilizar e menorizar quem decidira mandá-lo passear.

Acabando em registo de ficção científica, Zoe nada acrescenta à pretérita opinião sobre o talento da sua realizadora. 

quinta-feira, dezembro 29, 2022

Não saber que fazer com tão complicada espada

 

Nada sabia sobre Coisas de Homens, o filme que Lucas Belvaux assinou em 2020 e tendo os traumas da guerra da Argélia como pretexto para as desavenças entre os habitantes de uma pequena vila de província. O alibi para investir uma hora e três quartos na sua apreciação residia no elenco, que integrava três muito meritórios atores do cinema gaulês: Gérard Depardieu, Catherine Frot e Jean-Pierre Darroussin.

Pena que Lucas Belvaux, ou o romance de Laurent Mauvignie em que se baseia, desperdice tanto que aflora à superfície sem o aprofundar: o papel da igreja católica na formatação dos jovens, que por ela se deixam enfeudar, a crença nos slogans patrióticos, que contradizem as memórias ainda recentes da ocupação nazi, a marialvice tacanha de quem vê o sexo feminino como instrumento de prazer (mesmo violando-o!), mas ao mesmo tempo de temor.

Mais do que a história em si deu para recordar que as consequências mentais de se ter ido à guerra matar e visto morrer marcou uma geração de franceses, também eles manchados pelos seus Wiriyamus. Mas Coisas de Homens fica como mais um exemplo de como tendo potencial para ir mais longe, uma realização inábil o deixou a léguas dessa justificada expetativa... 

Murakami em dose dupla

 

Haruki Murakami para concluir o ano literário e cinematográfico: o livro de contos O Elefante Evapora-se, o filme de Ryusuke Hamaguchi Drive My Car, que revisito por vê-lo quase unanimemente classificado como o melhor de entre quantos se estrearam em Portugal no último ano.

A um e  outro vou apreciando por vários dias para prolongar a ambiência associável ao escritor em que o sonho e a realidade se misturam numa espécie de terra de ninguém em que a lógica se dilui e a estranheza -  até mesmo a magia! -, se impõe. Todos estão sós nas subjetivas leituras do que parece ser a realidade, porque o outro, mesmo coabitando no mesmo espaço, tem a sua íntima soma de fantasmas. No fundo todos estão sós, a contas com os próprios egoísmos e sentimentos de culpa, porque o irreversível, particularmente a morte, entra no campo das probabilidades.

Que o teatro e a vida se confundam tendo o Tio Vânia como pretexto, é apenas mais uma evidência em como tudo tende a amalgamar-se num caos interior onde a procura de um sentido se revela assaz difícil. 

segunda-feira, dezembro 26, 2022

Apetece-me bisbilhotar a infância e a adolescência de Steven?

 

Francamente tenho dúvidas embora o realizador enfatize a importância de ver cinema nos ecrãs das salas escuras, de preferência sem pipocas, e com todo o antigo ritual de nos sentarmos numa plateia e rendermo-nos ao que se projeta à nossa frente.

Há muito tempo, que o cinema de Spielberg me não entusiasma, oscilando entre o piegas (A Lista de Schindler), o exaltado heroísmo (O Resgate do Soldado Ryan) ou o chato para burro (Lincoln). Se acho piada a algumas coisas (o parque dos dinossauros, as aventuras de Indiana Jones e os encontros com os extraterrestres), reservo maior admiração aos primeiros filmes, particularmente o da perseguição de um camião a um pobre vendedor ambulante (Duel). E não é de esquecer o quanto o seu Tubarão contribuiu para a caça a um animal depois colocado na lista das espécies em extinção.

Em Os Fabelman ele decidiu contar a infância e a adolescência quando, ao fascínio pelo cinema se contrapôs a separação dos pais. Os críticos não têm poupado nos elogios, mas convenhamos que têm sido eles a contribuírem para a sobrevalorização de um realizador aquém do merecimento do estatuto de autor. Por isso mesmo julgo que só verei o filme estreado neste Natal ao som de tantas trombetas nalguma tarde de domingo em casa, quando um dos canais por cabo o integrar na sua programação. Sem a ajuda de pipocas, mas porventura de uma bebida agradável, que melhor me ajude a suportar a banalidade de uma filmografia, que o tempo se encarregará de arrumar nas prateleiras das coisas obsoletas... 

sexta-feira, dezembro 23, 2022

Que há-de ser de nós?

 

Triste destino o das fotografias, que temos nos álbuns enfileirados numas prateleiras da cave. A acreditar no documentário de Joana Pontes (Visões do Império) acabarão na Feira da Ladra, ou numa das suas muitas equiparadas noutras cidades e vilas do país, sujeitas à curiosidade de colecionadores ou sociólogos interessados em delas colherem significados, que não consciencializámos quando as tirámos. Desconhecerão os nossos nomes, que vida tivemos, mas olharão para as poses com a curiosidade de refletirmos as fisionomias, os penteados, as vestimentas de uma época passada.

O digital comporta a vantagem de facilmente desaparecer nas reciclagens dos computadores, mas as fotografias em suportes físicos poderão ter vida remanescente antes de acabarem incineradas ou apodrecidas numa qualquer ETAR.

Para além da conclusão evidente de refletirem a forma como o salazarismo quis construir uma fútil narrativa sobre o seu ilusório Império, o documentário põe-nos a olhar para aquelas famílias e rostos singulares trazendo uma vez mais a consciência de quão ínfimos somos no curso da História. A glosada fórmula de Saramago tem todo o sentido: hoje estamos aqui, amanhã deixamos de estar. E, não havendo aléns redentores, num ápice seremos esquecidos.

Razão acrescida para nos agarrarmos com unhas e dentes ao presente, vivendo-o tão intensamente quanto ele no-lo possibilitar. Porque nenhuma outra oportunidade teremos para o fazermos. Pena só verdadeiramente o intuir passados os sessenta e com uma terrível doença a condicionar o tal futuro, para o qual passámos a vida a adiar os projetos, e agora a afigurar-se tão curto... 

quinta-feira, dezembro 22, 2022

Uma quimera, que virou triste realidade

 

Confesso o desconcerto perante Prazer, Camaradas!, o filme que José Filipe Costa deu a conhecer em 2019 e só agora objeto da minha atenção: em primeiro lugar pelo exercício conceptual, que exige conivência, vendo em rostos e corpos envelhecidos, os discursos e comportamentos por si tidos quarenta atrás, quando camponeses locais e quem, das cidades e, sobretudo, do estrangeiro, se lhes associava nas esperançosas experiências da Reforma Agrária.

A proposta é imaginativa, mas prolonga-se em demasia e resvala, aqui e além, para a sua própria contradição.

Mais me incomoda a dissonância entre o que desejaria ver como sopro épico de uma Revolução, quase apagada nos primórdios, em proveito da consagração de uma democracia burguesa, que mantém a exploração das mais valias de quem trabalha pelos que se arrogam seus donos e preservou no essencial o atual sistema de propriedade.

Desinteressado dos dilemas económicos e sociais - a luta de classes passa-lhe assumidamente ao lado! - José Filipe Costa terá querido explorar as “memórias de uma revolução que não foi apenas política, mas também sexual e de costumes”.

Não custa dar a mão à palmatória de ser verosímil essa demonstração em como, mudado o regime, permaneciam incólumes os papéis atribuídos aos homens e às mulheres para surpresa das raparigas alemãs ou francesas, que pressentiam óbvias capacidades de afirmação nas camponesas, mas ainda sem as verem prevalecer sobre os preconceitos dos maridos e companheiros a quem a omnipresente presença do busto de Lenine não inspirava mudanças nos costumes, que tinham sido sempre os seus.

Acabei por chegar ao genérico final - ao som de música eletrónica em vez da revolucionária, que servira de banda sonora à evocação dos tempos idos! - na ambivalência de reconhecer o mérito de uma proposta efetivamente diferente, embora preferisse a convencional na abordagem de questões, que a Revolução de Abril continua a justificar na sua pertinência...