quinta-feira, junho 29, 2023

E lá temos de pensar na Maldita!

 

A dose quase diária dos documentários do Philippe Gougler na RTP2 reafirma a pertinência da metáfora óbvia da comparação das viagens de comboio com o curso da vida com tudo o que ela comporta. Porque vai-se de um ponto de partida para outro de chegada encontrando-se gente antes desconhecida, mas passível de suscitar empatia ou indiferença, e deparando com percalços, que podem parecer quase intransponíveis.

Ontem, no México, era incontornável o tema dos rituais dos dias dos Finados, que homenageiam os mortos com alegria e proximidade, porque focalizados nos próprios cemitérios.

Associando outro documentário sobre as crenças dos cambojanos, que se imaginam rodeados de fantasmas, vemo-nos sugestionados pela necessidade de pessoas de culturas diversas acreditarem numa qualquer existência pós-morte. Algo inimaginável à luz dos nossos conhecimentos científicos, porque é o Nada a fazer-se inevitável. Hoje está-se cá, amanhã deixa-se de estar, como dizia o Saramago numa cena do filme do Miguel Gonçalves Mendes- Por muito que tanto gostássemos, que a vida não se cingisse à limitada existência. 

domingo, junho 25, 2023

Um problema mais sério do que todas as guerras

 

Estaremos próximos do ponto de não retorno perante os aumentos de temperatura, que vão muito além do expectável depois de sucessivas conferências destinadas a reduzi-los? Assim parece dada a degradação progressiva da situação, ano após ano! Mas há quem contraponha inovações tecnológicas recentes para mitigar, se não mesmo combater, os efeitos dessas alterações climáticas, embora se saiba, que as emissões de carbono, entretanto acumuladas na atmosfera, continuarão a produzir efeitos catastróficos, mesmo se as conseguirmos estancar a médio prazo.

Cresce o consenso - apenas negado por uns quantos estarolas! - da continuidade da civilização humana depender da alteração da dinâmica climática atual. E, tanto quanto possível, arrefecer o planeta.

Sobretudo a partir da Revolução Industrial, o Homem deixou de habitar a Terra para a transformar, assumindo-se numa espécie de gestor cujas decisões - associáveis ao sistema económico em que assenta a sua organização! - redundou em fenómenos climáticos extremos.

As mentalidades andam a mudar rapidamente pela causa-efeito entre as tragédias ligadas a tempestades, incêndios e secas e esse aquecimento global. Que ligar a ignição do carro ou apanhar um avião, significa emitir dióxido de carbono para a atmosfera e contribuir para os novos records de temperatura em todas as coordenadas geográficas.  Por isso, embora o grande capital e os políticos tardem em assumi-lo, importa abandonar o tipo de cultura consumista em que vivemos de molde a garantir um quotidiano livre de emissões de CO2.

A boa notícia é sabermos como o conseguir graças às energias renováveis, que conseguem produzir eletricidade a custo rentável em 2/3 do planeta. Mesmo com uns quantos obstáculos por remover no percurso, teremos diante de nós uma sociedade liberta das emissões de carbono para a atmosfera. Mas as repercussões das aí acumuladas justificam que os cientistas abrissem outra frente de combate:  o do arrefecimento do planeta. Por exemplo captando esse carbono e transformando-o num recurso útil, capaz de nos proteger do Sol. Apenas uma das possibilidades para regular para baixo o termostato planetário, sempre passando por estancar as atuais emissões e eliminar o carbono das muitas gigatoneladas de carvão e hidrocarbonetos ardidas todos os anos e lançado para o ar que respiramos.

quarta-feira, junho 21, 2023

A vertigem e a travagem do tempo

 

1. Nascido numa família privilegiada não seria lógica a atração de Gus Van Sant pelos ambientes marginais acaso lhe ignorássemos a identidade sexual, que justificou a homossexualidade como tema explícito, ou latente, em muitos dos seus filmes.

Revisitando Paranoid Park, que rodou em 2007 com atores não profissionais e baixo orçamento, está lá outra das suas obsessões: a da adolescência como época determinante na vida de cada um por ser quando a personalidade ainda não se definiu e o futuro permanece em aberto. De alguma forma o que já abordara nas derivas dos personagens de Drugstore Cowboy em 1989 e My Own Private Idaho em 1991, que também tinham Portland como destino, a cidade em que rodaria o filme agora revisto e integra uma espécie de trilogia de reencontro com a própria adolescência ali vivida nos anos sessenta.

2. Louis Botha - que tem o mesmo nome de um dos mais sinistros governantes sul-africanos, quando o apartheid estava a afirmar-se como sistema de opressão da maioria da população -, é um dos mais interessantes fotógrafos atuais, captando imagens com que tenta pintar o tempo com a luz. O título de um dos seus álbuns - “Slow down, look again” - constitui em si mesmo todo um processo de intenções criativas. É que, embora privilegiando o Karoo, no interior leste sul-africano, como espaço da sua eleição e tão aridamente plano quanto as paisagens do Texas, do Novo México ou do Arizona, não deixa de se fixar igualmente na população mestiça, que aí vai sobrevivendo a dar tratos à imaginação para contornar a falta de água.

3. No verão de 1953 uma rapariga de 18 anos aborrecia-se de morte nas praias atlânticas de Hossegor e encontrava como alternativa a escrita de um romance, que logo se transformaria num enorme sucesso literário: Bonjour Tristesse.

François Quoirez ainda desconhecia a Côte d’Azur, mas idealizava-a como cenário para as inquietações de uma rapariga a contas com os meandros da sua sexualidade.

As incoerências eram óbvias com a referência aos banhos nas águas frias às onze da manhã ou aos vastos areais em que as costas mediterrânicas são bem mais parcos. Mas a trama adequava-se às preocupações da época e o romance vendeu-se como pãezinhos, logo traduzindo-se numa adaptação hollywoodiana a cargo de um dos seus mais conceituados realizadores.

Quando em 1954 a rapariga já descartara completamente o apelido verdadeiro substituindo-o pelo de Sagan, que estava nas bocas do mundo e a precipitavam no que designava como a “grande corrida”.

Terá sido esse o último verão em que a família a conseguiu arrastar para a praia da costa das Landes, porque Sagan logo optou definitivamente pela que fantasiara no ano anterior. E onde mergulharia, acelerador a fundo, na vida adulta com todas as ilusões e conflitos, que tornariam a sua biografia numa sucessão de episódios mediáticos, poucas vezes pelos melhores motivos. 

terça-feira, junho 20, 2023

«Talismã, a desordem natural das coisas» de Mário Zambujal

 

Logo no nome - Pablo Luís Martinez da Silva - tem que se lhe diga: nascido numa família de origens galegas radicada em Lisboa, nascera a norte do rio Minho por vontade da mãe, que o queria ligado às raízes familiares. Mas é nas festas populares, que o destino se altera durante umas semanas, quando o mágico encontro com uma esbelta Diana, que acabara de perder um sapato no meio da multidão, o leva a procura-la por toda a cidade e envolver-se numa catadupa de vicissitudes, qual delas a mais singular.

O reboliço nos dias é tal que de pouco lhe importa ter sido despedido da agência de viagens em que ganhava o sustento, ou abandonado pela namorada de ocasião, que lhe vinha aquecendo o leito. Entre mafiosos e cabarés passando por assaltantes de veículos de transportes de valores lá vai Pablo prosseguindo a busca da bela Diana, só a vislumbrando por breves momentos na confusão de uma fuga através de um centro comercial.

Como saldo final acaba num hospital ferido numa perna e a concluir que essa coisa dos talismãs, prezados por muitos dos que com ele se cruzam, parecem aleatórios nos resultados para ele nada ajudando.

Regressei à leitura de obras de Mário Zambujal para reencontrar a sua fórmula de sucesso: a ironia maliciosa, que faz sorrir e passar uns bons momentos sem grandes pretensões de encontrar respostas para a sempiterna questão do sentido da Vida. Ou, se calhar, até está implícita nestes percalços vivenciados pelo azougado Pablo!

sábado, junho 17, 2023

Apocalipses em perspetiva

 

É uma hipótese que os astrónomos colocam: o que sucederá quando a estrela Betelgeuse explodir a seiscentos e quarenta anos-luz da Terra e enviar-nos uma prodigiosa quantidade de raios gama? Se é que isso não sucedeu já e apenas falta chegar essa evidência aos nossos radiotelescópios? E, pior ainda, quando for a WR104, que está a sete mil e quinhentos anos-luz de distância e, aparentemente, mais próxima da inevitável implosão?

Não podemos esquecer que existem testemunhos paleontológicos de uma extinção em massa dos organismos então existentes na Terra e a causa para que os cientistas se inclinam é a de uma poderosa projeção de raios gama sobre o planeta.

Numa altura em que a mais provável distopia provocada pelas alterações climáticas não suscita o clamor mundial necessário para que parem todas as guerras e se promova um esforço mundial pela redução das emissões poluentes para a atmosfera, parece estulta a preocupação científica com os potenciais apocalipses provenientes do espaço mais distante. Mas convenhamos ser necessária outra cultura e, sobretudo, outro sistema económico pós-capitalista, que evite os cenários catastróficos que se imaginam possíveis. E para eles se encontrem as adequadas soluções! 

sexta-feira, junho 16, 2023

Um quase ignorado desastre ecológico

 

Impressionante o desastre ecológico em curso no Líbano: as centenárias florestas de cedros, que minimizam as elevadas temperaturas da região, incluindo as dos países circundantes, estão a desaparecer em fumo, porque as pessoas carecem de lenha para se aquecerem e as mafias encontraram naquele recurso outra fonte suplementar de rendimentos.

Num país falido desde a explosão do porto de Beirute em 2020 , que apenas piorou o que as guerras civis e a incompetência de sucessivos governos tinham plantado nas décadas anteriores, a antiga Suíça do Médio Oriente converteu-se numa distopia onde a população vive miseravelmente e sem esperança. Mesmo desmentindo-o o esforço quixotesco de um médico sexagenário, que congrega voluntários, para replantar árvores nas colinas onde elas desapareceram...

sábado, junho 10, 2023

A perda, a mortalidade

 

Está quase a fechar a Feira do Livro deste ano e foi natural interessar-me, de entre os lançamentos mais recentes, pelos que têm a ver com os temas da mortalidade, efeito natural da idade avançada e da doença, que assombram os dias cá em casa.

Quanta saudade dos tempos em que, miúdo, ia em busca de livros de aventuras ou ficção científica, seguindo-se os clássicos de leitura obrigatória, e logo os romances - preferencialmente de língua lusa! - que reportavam e questionavam a história recente ou o turbulento presente em que os valores se viravam do avesso.

Desta vez olho com interesse para os “ses” de que são feitas as biografias , tal como os enfatizou Brigitte Giraud em «Viver Depressa» a respeito da perda do marido há um quarto de século num acidente de mota, ou Anabela Mota Ribeiro noutro exercício de autoficção, «O Quarto do Bebé», mesmo que atribuindo a uma personagem chamada Ester, o que sabe sobre não passar pela maternidade , mormente por causa de um cancro, que lhe apressa o relógio biológico de forma irreversível.

Felizmente temos o matemático Celso Costa, vencedor do Prémio Leya, a dar-nos conta das pessoas extraordinárias conhecidas nas sucessivas fases do seu percurso académico.

Se, à partida não sentira grande propensão para conhecer «A Arte de Driblar Destinos», a entrevista dada a Luis Caetano na Antena 2, decidiu-me a infletir a decisão. Porque parece mesmo valer a pena esse otimismo perante os obstáculos, mesmo sabendo insuficiente essa arte para driblar aqueles que, intimamente, nos esperam... 

quarta-feira, junho 07, 2023

Vista de Delft

 

Marcel Proust considerou-o o mais belo quadro alguma vez criado e multiplicou-lhe referências quando foi à procura do tempo perdido enquanto deglutia as pequenas madalenas. Na época desvanecera-se a recordação de Johannes Vermeer, durante duzentos anos ignorado como um dos mais talentosos pintores da arte neerlandesa setecentista. Foi necessário que um jornalista francês descobrisse o quadro na Mauritshuis, e o enaltecesse, para que a intelectualidade parisiense descobrisse a sua excecionalidade e promovesse a procura de outras obras do mestre.

Não terá sido suficiente para salvar muitas obras entretanto desaparecidas, mas restam trinta e poucas para nos continuarem a encantar...

O perfume de Zanzibar

 

Não fosse o Nobel e dificilmente me sentiria tentado a descobrir o universo literário de Abdulrazak Gurnah, mesmo sabendo-o relacionado com Zanzibar, que continua a ser um dos mais fascinantes sítios onde pousei os pés. É que, sabendo-o exilado da terra natal por não se identificar com os rumos revolucionários do período pós-independência, emitiria a seu respeito fundamentadas dúvidas. Injustas, está-se bem a ver que sim, porque Junto ao Mar revela-se uma fascinante abordagem desse período histórico em que houve quem beneficiasse da viragem política para reverter as injustiças de que fora alvo durante o período colonial.

 Numa pequena cidade costeira de Inglaterra dois personagens de gerações distintas - o velho Saleh Omar e Latif Mahmud, que o reconhece como causador da ruína da sua família -, olham para esse passado turbulento em que ter origem árabe, ou a tez negra, poderia justificar aleatórios versos e reversos da História. Que se exprimem em duas versões distintas, porque assim a têm esse velho apostado em garantir exílio para os seus anos crepusculares e o interlocutor, mais jovem, a quem os serviços sociais britânicos incumbem de conhecer a biografia e as motivações desse recém-chegado ao aeroporto de Gatwick dotado de um falso passaporte e dizendo-se incapaz de falar ou entender o inglês.

É esse recém-chegado quem, logo a começar o romance, confessa a frequente e inesperada evocação do perfume da ilha, quando dela já está tão distante...

segunda-feira, junho 05, 2023

A Batalha de Midway, Jack Smight, 1976

 

Nos anos 70 os estúdios norte-americanos davam tratos à imaginação para contornarem a razia dada pelas televisões ao número de espectadores, que costumavam encher as salas de cinema, comummente com muitas centenas de lugares disponíveis. O Sensurround foi uma das inovações apresentadas como capazes de suscitarem emoções inacessíveis nas salas dos telespectadores e foi, na altura, um dos motivos para acorrermos a esta reconstituição honesta da Batalha de Midway com a participação de muitas vedetas de Hollywood e dos estúdios japoneses a interpretarem a intriga convencional, ainda que complementada com imagens documentais.

À distância de quase meio século o filme cheira a mofo, embora não deixe de ser representativo da forma como o cinema então evoluía. E que nada viria a ter com este tipo de superproduções para as quais os recursos da tecnologia digital ainda não encontrara forma de lhes mitigar os dispendiosos orçamentos. 

Algures no Oregon

 

Ao regressar a Voo Sobre um Ninho de Cucos esquecera que a instituição psiquiátrica onde McMurphy era internado para escapar à prisão, mas enfrentava a pérfida enfermeira Ratched, ficava no Oregon, terra natal de Ken Kesey.

O escritor servira de assistente num desses estabelecimentos enquanto estudava e descobria os “paraísos artificiais”, mas mantendo-se lúcido o bastante para suspeitar não serem tão loucos quanto pareciam os que aí viviam enclausurados.

Assim como não sei se alguma vez associara a Salém das bruxas de Arthur Miller à capital desse mesmo Estado norte-americano da costa do Pacífico, encaixado entre a Califórnia e Washington e conhecido pela beleza da sua natureza selvagem.

sexta-feira, junho 02, 2023

A relação complexa de Le Clézio com a cidade natal

 

Amor e ódio é o que Jean Marie Gustave Le Clézio sente por Nice, a cidade onde nasceu em abril de 1940, quando a família de origem bretã, mas instalada na ilha Maurícia desde o século XVIII, se exilou no início da Segunda Guerra Mundial.

Nobel da Literatura há quinze anos encontramos esse espaço natal a servir-lhe de cenário às narrativas em, pelo menos, duas obras: em Le Procès-verbal (1963), primeiro romance com que logo se viu galardoado com o prestigiado Prémio Renaudot, e na coletânea de novelas Mondo et autres histoires (1978).

Adam Pollo e Mondo permitem-lhe dar da cidade um olhar moderno sem cedência aos estereótipos com que outros a descreveram. E constituem alter egos do adolescente solitário, que percorria o Passeio dos Ingleses e o imbrincado labirinto da urbe, buscando um sentido para aquilo que dificilmente parecia ter.

O primeiro anda a fugir de algo numa obsessão paranoica em que o perigo espreita a cada instante. O segundo é um emigrante, que estranha o cenário consumista das montras da cidade e encontra maior empatia nos mendigos ou artistas ambulantes com quem se cruza até encontrar uma espécie de coio protetor no jardim abandonado de uma vivenda da periferia. Mas, quer Adam, quer Mondo, acabam as suas deambulações à beira-mar como que confirmando a vocação viajante de quem os imaginou e fez seus personagens como reflexo de si mesmo. Aquele que dali partiu para ficcionar tantas e tão diversas geografias.