terça-feira, maio 17, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «Noites de Cocaína» de J.G. Ballard (I)

Apesar de muito insuficientemente publicado em Portugal, J.G. Ballard é dos autores britânicos que leio com maior prazer. Além da imaginação prodigiosa existem nos seus romances ambiências de tensão, que muito devem ao talento para as conseguir criar nos encontros dos protagonistas com sucessivos e imprevisíveis interlocutores.
É isso mesmo que está a suceder com «Noites de Cocaína», quando já avanço na segunda metade das suas trezentas páginas.
O parágrafo inicial dá logo o tom para o que se seguirá:
Atravessar fronteiras é a minha profissão. Essas faixas de terra-de-ninguém entre dois postos de controlo parecem sempre zonas tão cheias de promessas, ricas de possibilidades de novas vidas, novos cheiros, novos afetos. E, ao mesmo tempo, desencadeiam um reflexo de pouco-à-vontade que nunca fui capaz de reprimir. Enquanto os funcionários da alfândega me revistam as malas, sinto-os a tentarem desembalar-me o espírito e revelar um contrabando ilícito de sonhos e recordações proibidos. Mas mesmo nessas alturas há os prazeres especiais de ser exposto, que são bem capazes de ter feito de mim um turista profissional. Ganho a vida como autor de livros de viagens, mas aceito que isso pouco mais é do que um disfarce. A minha verdadeira bagagem raramente está fechada à chave, as linguetas dos fechos só desejam que alguém as faça saltar” (pág.7)
O narrador chama-se Charles Prentice e acorre à Costa Brava, porque o irmão mais novo, acaba de ser preso, acusado do incêndio da mansão dos Hollinger, onde terão morrido cinco pessoas. E o mais estranho, para o que dele conhece, Frank deu-se como culpado.
Até então sabia-o à frente do Clube Náutico de Estrella do Mar, um desses aldeamentos onde reformados de diversas proveniências costumam consumir os seus últimos anos de vida, ansiando serenidade, mas sobretudo  um clima particularmente benévolo.
Há em Charles o reflexo de proteção, que o levara a cuidar do irmão, quando a mãe de ambos se suicidara depois de longas e sucessivas depressões. Desde então nunca mais conseguira viver num lugar que chamasse verdadeiramente seu, compreendendo-se assim a escolha de uma profissão adequada ao seu sentido de errância.
Porque Frank lhe confidenciara só ser entendível a sua culpabilidade, Charles apresta-se a sedentarizar-se durante algumas semanas no apartamento do irmão, disposto a encontrar os fundamentos da sua inocência.
É assim que, depois de se encontrar com o inspetor Cabrera, responsável pela prisão de Frank, e Danvilla, o advogado incumbido da sua defesa, Charles está pronto para ir conhecer o mundo peculiar de Estrella de Mar.

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