sábado, abril 30, 2022

As fogueiras que se ateiam com exagerada facilidade

 

Parece que Flaubert nunca disse a icónica frase “Madame Bovary c’est moi”, mas ela expressa a ideia de haver uma identificação mais do que óbvia entre o escritor e os seus personagens, mormente pelos protagonistas dos seus romances.

Pensei nisso ao chegar a um terço de «O Naufrágio» de João Tordo, tendo em conta o tema, que começa a ser-lhe dominante: Jaime Toledo, um escritor cinquentenário a contas com um cancro em fase avançada, vê-se acusado de assédio sexual por sete mulheres, que dele se sentiram vítimas, desconstruindo-se, ficando doravante traumatizadas pela toxicidade da relação com ele mantida. E com uma delas, Alice, a primeira a denunciá-lo, até sentimos a empatia com quanto sofreu ao descrever-nos a experiência na primeira pessoa.

Nesta altura do livro ainda estou numa posição ambivalente a seu respeito até por manter essa atitude relativamente a  tal problema: se não tenho dúvidas quanto a Dominique Strauss-Kahn ou a Harvey Weinstein, que coloco facilmente no canto dos crápulas, já tenho sérias reservas relativamente a Roman Polanski, Woody Allen ou Philip Roth, todos três vítimas do fanatismo de um movimento alimentado pelas redes sociais e que tende a armar fogueiras com a exagerada facilidade com que a Inquisição o fazia.

quarta-feira, abril 27, 2022

Caixa de Memórias, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, 2020

 

Convenhamos que esperava bem mais deste filme da dupla de realizadores conhecida há dezena e meia de anos atrás, quando “A Perfect Day”  e  “Eu Quero Ver” passaram pelos ecrãs.

No Quebeque em vésperas do Natal, três gerações de mulheres da mesma família (avó/mãe/ filha) reagem diferenciadamente à inesperada chegada de uma caixa com uma multiplicidade variada de documentos oriundos da amiga de uma delas, cuja notícia da morte brutal num acidente de viação acaba por ser esclarecida.

Maia proíbe liminarmente a filha, Alex, de ver o conteúdo dessa caixa mas, a contas com o desconhecimento que a mãe lhe impõe, a adolescente aproveita todas as oportunidades para vasculhar os textos, as fotografias e os filmes, que a surpreendem quanto à personalidade de quem hoje lhe parece tão diferente daquela adolescente a viver em pleno a guerra civil libanesa.

Às tantas cria-se algum suspense em torno de um suposto mistério, que envolveria a morte do avô de Alex, mas até este é pífio, porquanto apenas se intentou substituir por assassinato político aquilo que fora um mero suicídio de quem desistira de viver tão só se vira afastado da escola onde lecionava alunos, que pretendia avessos a lutas fratricidas.

Há também a relação amorosa de Maia com um tal Raja, que o pai proibia por o saber filiado numa das milícias responsáveis pela destruição da cidade. É ele quem mãe e filha vão reencontrar em Beirute, quando ali se deslocam para uma cerimónia fúnebre em homenagem à morta. E sempre com a avó de Alex a acompanhar à distância o  happy ending, que só o pudor da dupla de realizadores impede de revestir de cores ridiculamente xaroposas  num berrante cor-de-rosa. 

terça-feira, abril 26, 2022

To the Moon, Tadhg O’Sullivan, 2021

 

Todos lembramos o final de “Cinema Paraíso” de Tornatore em que era desvendada a bobine de pedaços de filmes censurados, neles vendo-se casais a multiplicarem-se em apaixonados beijos.

Esse tipo de montagem de extratos de filmes veio-me à mente ao ver este filme do irlandês Tadhg O’Sullivan, que juntou dezenas de imagens de origens diversas, em todas elas manifestando-se o fascínio suscitado pela Lua. A coerência é-lhes conferida através de uma montagem sonora, que a todas interliga num registo poético e hipnótico. Resulta assim um filme de setenta minutos de fruição em estado puro com momentos de superlativo deslumbre. Que dispensam encómios detalhados, porque é experiência visual que nos deixa sem palavras...

João Tordo, Dulce Maria Cardoso, Murakami e Flaubert

 

1. Avançamos rapidamente no mais recente romance de João Tordo confirmando a sua capacidade para prender-nos com histórias capazes de suscitarem-nos o anseio de lhes sabermos os desenlaces.

Em «O Naufrágio» um escritor quinquagenário, há dez anos sem inspiração para escrever novos romances, e vivendo dos direitos dos muitos anteriormente publicados, enfrenta duas ameaças imediatas à sobrevivência: um cancro para que não parece haver possível remissão e a campanha desencadeada por sete réplicas nacionais do movimento #MeToo, que lhe desfazem a reputação por conta do assédio sexual a que as terá sujeito. Para onde Tordo nos encaminhará a partir deste contexto, depressa iremos descobri-lo.

2. Numa crónica Dulce Maria Cardoso conta-nos uma daquelas novidades que, mesmo ambíguas na veracidade, não deixam de ser bem esgalhadas: os jacarandás de Lisboa seriam os únicos a florescerem duas vezes, uma correspondendo à nossa primavera no hemisfério norte, a outra à do sul, que se terá mantido incrustada na sua memória vegetal.

3. Igualmente de leitura fácil - mas exigente o bastante para não ser confundida com a literatura light! -, está o universo de Haruki Murakami, um daqueles previsíveis Nobéis que, provavelmente, nunca o galardoarão. Revisito «Kafka à Beira-mar» para reencontrar Kafka Tamura, o miúdo de quinze anos saído de Tóquio para uma busca existencial na ilha de Xicoco, que o liberte da maldição edipiana de deitar-se com a mãe e matar o pai. Essa progenitora, que o faz sofrer, por dele ter prescindido, quando era muito jovem, pode ser a menina Saeki, que descobre como bibliotecária e por quem se enamora. A visita a um templo xintoísta e à floresta próxima onde residem os espíritos dos antepassados podem facultar-lhe respostas, que ele também procurara junto de Nakata, um velho capaz de comunicar com os gatos.

4. Um dos conselhos mais interessantes que um pai deu a um filho foi o de Flaubert que, em 1840, lhe pagou um périplo pelo sudoeste francês como prémio pelo seu recém-obtido diploma do liceu. Achille Flaubert, que era cirurgião-chefe do hospital de Rouen, instou o filho a não viajar como um vulgar caixeiro-viajante, observando tudo quanto pudesse.

Aos 18 anos, porém, o jovem Flaubert mostrava-se sarcástico e, ao chegar a Biarritz, desilude-se com a falta de banhistas em trajes mais reveladores das concupiscentes formas só seguindo verdadeiramente o conselho paterno, quando demandou os Pirinéus e se extasiou com a paisagem. Apesar de já alimentar uma perspetiva muito crítica em relação aos costumes burgueses - que doravante cuidaria de ilustrar! - Flaubert vive momentaneamente a contradição entre a tentação realista e o romantismo assente nessa presença insinuante da natureza dentro de si. 

sábado, abril 23, 2022

Hayao Miyazaki em três filmes

 

A melhor abordagem onírica ao Japão tradicional povoado de universos poéticos  mágicos, devemo-la ao mestre Miyazaki, realizador de animação que, amiúde, opta por protagonistas femininas. Por exemplo a órfã Sheeta, protegida por um cristal mágico, que traz ao pescoço, e decidida a buscar refúgio na cidade mítica de Laputa, escapando assim à perseguição do sinistro coronel Muska. Como modelo para esse «Castelo no Céu» - título do filme rodado em 1986 - Miyazaki socorreu-se da fortaleza de Ono-shi e do singular fenómeno atmosférico, que amiúde, a deixam envolta em brumas como se pairasse nas alturas.

Outro exemplo é o de San em «A Princesa Mononoke» (1997), que ajuda o príncipe Ashitaka a vencer uma temível maldição e a salvar uma floresta com a ajuda dos kodamas, os espíritos aí escondidos entre as raízes gigantes e as árvores frondosas. Ou ainda o de Chihiro, a miúda de dez anos, que vira os pais transformarem-se em porcos ao refastelarem-se com uma refeição numa mesa aparentemente sem ninguém, que lhes surgira no caminho. Datado de 2001, esse «A Viagem de Chihiro» é uma viagem iniciática, que Miyzaki cria a partir do albergue termal de Shimo Onsen, confirmando a apetência por cenários inspirados nos que são bem reais.

Prolixa, a filmografia de Miyazaki possibilitaria muitas outras referências, mas estas permitem a generalização quanto à riqueza imaginativa das suas histórias traduzidas numa concretização estilística, que lhe é própria, e admite comparações com os seus menos talentosos imitadores. 

sexta-feira, abril 22, 2022

To Be ou not to Be, Ernst Lubitsch, 1942

 

O que se pode filmar sobre uma guerra em curso e cujo resultado se desconhece? Porque, sabemo-lo bem, a sua apreciação final dependerá sempre de quem for o vencedor e doravante impuser a sua versão como a mais justa! A questão põe-se hoje a propósito do conflito na Ucrânia - mas não só, porque outros palcos de guerra estão intensificados, mesmo que esquecidos nos telejornais, apenas interessados nos que ocorrem entre caucasianos.

Nos anos 40 Chaplin com «O Ditador» e Lubitsch com «Ser ou Não Ser» foram dois exemplos maiores de como responder a essa pergunta, segundo o modelo definido por Memmi como sendo o do desesperado que, à falta de outra solução, ri. Por isso é lendária a galhofa verificada em muitas noites no gueto de Varsóvia enquanto os nazis o cercavam, prontos para o arrasarem.

Constata-se porém que, se Chaplin e Lubitsch suspeitavam de quão dramáticos estavam a ser aqueles tempos para milhões de pessoas, não podiam imaginar a dimensão dos crimes cometidos pelos nazis nessa mesma altura, mesmo se os campos de extermínio ainda não se tivessem convertido em bem organizadas linhas de produção. Por isso mesmo olha-se para o do primeiro e retém-se, sobretudo, o discurso final, o do sósia do ditador, a enunciar um libelo vibrante pela liberdade, pela democracia e - não tenhamos pejo em considera-lo! -  pelo socialismo, que a todos equilibrasse nos rendimentos e demais condições sociais.

O filme de Lubitsch é mais elegantemente frívolo, embora revelador de quanto muitos se escondiam num casulo, como era o Grande Teatro de Varsóvia, e distraindo-se com os flirts amorosos e seus equívocos.

Os soldados nazis eram apresentados como marionetas  e nisso mesmo assentava boa parte da estratégia para provocar o riso.  Mesmo que no final ficasse a mensagem pretendida a partir da frase de Hamlet: havia que ser-se livre e humano. 

sexta-feira, abril 15, 2022

O Grande Museu Egípcio, Jeremy Frei, 2020

 

É a velha história da galinha da vizinha: no mesmo dia em que revisitei o Mauritshuis em Haia, vi à noite este documentário de Jeremy Frei sobre o enorme museu construído no Planalto de Gizé em frente às Pirâmides e salivei de gula pela improvável possibilidade de algum dia o vir a visitar depois da sua (agora) projetada inauguração em novembro deste ano.

Mas como ficar indiferente a uma tão detalhada informação sobre o seu projeto arquitetónico da autoria do gabinete de arquitetos Heneghan Peng? Quer pela fachada de vidro, que permite uma perspetiva incrível das três obras milenares, quer na forma como com elas se criou uma triangulação a partir das paredes do novo edifício e da sua mediana, quer ainda com o alabastro que as revestem numa justaposição de outros triângulos maiores e menores, quer enfim pelos enormes jardins destinados a garantir aos cairotas o espaço público de que estão tão carecidos, tudo se conjuga para considerar este um dos mais incontornáveis museus do mundo a visitar.  Se desconhecia até agora o talento de Shi-Fu Peng e de Róisin Heneghan decerto os terei na mira como arquitetos cuja produção importa acompanhar.

Há depois o mais importante: as obras expostas dentro e fora do Museu. No átrio interior está a gigantesca estátua de Ramsés II, que Nasser mandara instalar numa das praças da capital e ai acabara desvalorizada por todas as construções depois erguidas à sua volta. E há o espólio encontrado por Howard Carter no túmulo de Tutankhamon, depois de competentemente restaurado pelo laboratório instalado, igualmente, na área adjacente à do museu, mas quase passado despercebido por ter quase toda a sua volumetria debaixo do chão.

Não é que seja cómoda, muito menos financeiramente comportável, a viagem ao Egito, que ainda suporta a ditadura de el-Sisi - embora a suposta democracia caótica dos Irmãos Muçulmanos não tenha sido melhor! - e onde nada se alterou que resolvesse os problemas sociais aí existentes. Mas que dá vontade de lá voltar depois de terem passado tantos anos sobre lá ter estado, lá isso dá...

quarta-feira, abril 13, 2022

Dora Maar: Entre a Luz e a Sombra, Marie-Eve de Grave , 2019

 

Confesso que a diabolização de Pablo Picasso por conta da vitimização das suas mulheres é tema que me repugna, porque tantos outros artistas foram tão misóginos quanto ele, mas por não terem pintado Guernica ou a Pomba da Paz nem um beliscão levaram quanto a essa conduta.

Dora Maar foi tida como uma das mais pungentes vítimas do artista. Ela foi a mulher que chora em múltiplas representações, e noutras variações, que num total ascenderiam a cinco centenas de retratos, tornando-a na musa que mais o inspirou.

Se outra virtude não tivesse, o documentário de Marie-Eve de Grave apresentaria esta: antes de Picasso, Dora Maar teve uma existência multifacetada como um dos principais rostos e criadores da estética surrealista. Quer como modelo de Man Ray, quer como fotógrafa, criou um rico portfolio de obras, que justificaram plenamente a retrospetiva que o Centro Pompidou lhe dedicou há cerca de dois anos.

Podemo-nos interrogar sobre o que se terá passado com ela para, depois de substituída nos favores do mestre, pela mais juvenil Françoise Gilot, que tenha caído num precipício mental, que a levou ao manicómio e, depois, à condição de fervorosa católica?

Mas não se vislumbram razões para que Picasso tenha tido um papel determinante numa deriva, que viria depois a revelar-se trágica na forma como foi encontrado o seu apartamento parisiense quando morreu. Mesmo que logo depois da rutura entre os dois, ela lhe tenha copiado o estilo e dado sequência a algumas das suas obras.

Podemos conjeturar até que ponto a aposta surrealista já não comportava mentalmente algo de instável na jovem desenraizada, que passara a infância entre a França natal e a Argentina, depois voltando definitivamente a casa quando o tão adorado pai a deixara órfã na adolescência. E de quem Picasso mais não constituíra do que uma vaga réplica...

terça-feira, abril 12, 2022

Abraça-me com Força, Mathieu Amalric, 2021

 

Numa breve sinopse sobre o filme Amalric explicava que «Serre-moi três fort» era sobre uma mulher que parecia ir-se embora. E, de facto, é essa a ilusão sentida pelo espectador, quando vê Clarisse abandonar a casa familiar enquanto o marido e os filhos estão a dormir, para iniciar uma deambulação caótica por territórios vários, desde o mar, que quer rever, às montanhas onde a verdadeira realidade começa a restabelecer-se. Porque o parecer começa a tornar-se numa suspeição de outra coisa, quando o filme vai nos vinte minutos e se acumulam outros sinais. O que estamos a ver passa a ser entendido como uma mistura de realidades, desde a do dia-a-dia de uma mulher na catarse do luto, até à recriação imaginária, entre memórias e efabulações, do que teria sido a continuidade normal da sua existência  acaso não tivesse ocorrido a tragédia: num passeio matinal, o marido e os filhos tinham sido engolidos por uma avalanche na montanha e só o degelo da primavera seguinte permitirá resgatar-lhes os corpos.

Amalric criou uma intriga envolvente a partir da peça de Claudine Galea, que - diz quem a leu - era bastante linear na estrutura da história, dissemelhando-se em absoluto do prodigioso trabalho de reconstrução inscrito num argumento que muito deverá depois à montagem - sobretudo sonora! - que permite transpor esse passo entre a aparência e a realidade. E onde não faltam momentos constrangedores, muitos dos quais adivinhamos devidos ao imaginário da personagem Clarisse. Embora não nos custe a aceitar que, por exemplo, uma mulher a contas com tal sofrimento se ponha a perseguir uma jovem adolescente em quem vê a réplica da filha, quando ocorre o concurso de piano a que ela deveria ter comparecido.

Chega-se ao fim do filme com a sensação de não residir nele a perfeição construtiva, que Amalric desejaria atingir: à oitava tentativa o ator-realizador ainda não encontrou acesso ao pináculo, que parece perseguir a cada tentativa. Mas que este é um filme surpreendente, a pressupor a possibilidade de só melhor ser compreendido numa segunda, terceira, sabe-se lá se quarta revisão, conclui-se que sim! 

segunda-feira, abril 04, 2022

Muito suor para conseguir a obra-prima!

 

A propósito do bicentenário do nascimento de Flaubert, François Busnel dedicou um dos seus programas ao autor de «Madame Bovary», reavivando-me a vontade de aos seus romances regressar. Não tanto pelo conteúdo conservador, mesmo que cáustico em relação aos costumes aburguesados dos seus contemporâneos, mas para lhe apreciar o feminismo avant la lettre, que duas das convidadas para a ocasião lhe emprestaram.

É certo que Flaubert disse cobras e lagartos da Comuna de Paris, mas também há que levar a benefício do saldo a sua necessidade de sobrepor o que se diz ao como se diz! Ou seja, o conteúdo das intrigas poderia ser banal, mas com uma aperfeiçoada construção das frases, a possibilidade de alcançar o estatuto de obra-prima impunha-se. E se Flaubert trabalhou afanosamente para que tal acontecesse: para aquilo que resultou no seu mais célebre romance, escreveu e riscou mais de quatro mil páginas durante cinco anos, levando a obsessão em chegar-lhe ao fim à sobrecarga de, em muitos dias, dedicar a ele dezoito horas de esforço.

Se não o respeitarmos por isso, que mais precisaríamos para tal?